Miguel nunca foi um menino comum. Abandonado duas vezes na infância e marcado pela dor, ele carrega em si o peso do mundo dos vivos - e dos mortos. Desde cedo, viu aquilo que ninguém mais via: sombras que sussurram, presenças que espreitam, verdades escondidas entre os véus do invisível. Após uma tentativa de suicídio, Miguel é beijado pela própria Morte, não para ser levado, mas para ser marcado com um propósito. Agora, entre pesadelos e visões, ele vive como um elo entre dois mundos. Sua missão? Libertar almas boas presas ao limbo e enfrentar entidades malignas que aterrorizam os vivos. Sozinho, rejeitado e com um amor impossível por sua mãe adotiva falecida, Miguel caminha pela tênue linha entre o real e o paranormal - lutando contra as trevas externas e as que habitam dentro de si. "Beijado pelas Sombras" é uma história sombria, intensa e carregada de sentimentos - uma jornada espiritual de dor, coragem e redenção.
Ler maisDesde pequeno, Miguel enxergava o mundo com olhos diferentes. Não era apenas o brilho apagado das ruas ou o silêncio ensurdecedor de uma casa vazia - era algo mais profundo. Ele via além. Via sombras que sussurravam segredos entre as frestas das portas, ouvia vozes que não pertenciam a ninguém e sentia uma presença constante caminhando ao seu lado.
Miguel foi abandonado pela mãe biológica logo após o nascimento, deixado apenas com uma manta e um nome rabiscado em um papel qualquer. Depois, foi adotado por uma família que o rejeitou ao perceber os primeiros sinais de seu dom incomum. Disseram que ele era estranho, perturbador - e o devolveram como se fosse um erro. Assim, cresceu marcado pela rejeição e pelo sentimento de ser indesejado. Aos 9 anos, foi adotado por Clara - uma mulher de alma doce, mas com os olhos sempre cansados, como se carregasse o peso do mundo. Miguel se apegou a ela de forma intensa. Não como um filho, mas como alguém que havia encontrado sua única luz no meio da escuridão. Um amor confuso, silencioso, que ele não entendia, mas que o confortava. Aos 14 anos, após anos de rejeição nas escolas, episódios paranormais que ninguém acreditava e um vazio crescente, Miguel subiu até o terraço do prédio em que morava. Lá, o mundo parecia pequeno demais para conter sua dor. Mas antes de pular, ele sentiu... um beijo. Um frio que cortou sua alma, um toque gelado nos lábios. E então, tudo ficou preto. Quando acordou, estava em seu quarto. Mas não era o mesmo. O relógio não andava, as luzes piscavam mesmo desligadas, e o espelho mostrava reflexos que não o acompanhavam. Algo o havia marcado. Ele descobriu, pouco depois, que a Morte o beijara - não para levá-lo, mas para marcá-lo. Na mesma semana, Clara morreu num acidente de carro. Miguel, agora órfão de novo, sentiu sua sanidade vacilar. E com ela, as barreiras entre o mundo dos vivos e dos mortos começaram a ruir ao seu redor. As sombras falavam com ele. Às vezes mentiam. Às vezes contavam verdades que doíam mais do que qualquer ferida física. Com o tempo, Miguel entendeu que ele era um elo. Um menino entre dois mundos, fadado a andar com um pé no real e outro no invisível. A Morte não o havia salvo - havia lhe dado uma missão. Miguel foi chamado para ajudar. Espíritos bons, perdidos, vagando sem rumo, encontravam nele uma esperança. Ele os ajudava a encontrar a paz, a atravessar para o outro lado. Mas também havia aqueles que não queriam partir. Espíritos ruins, sombras vingativas, que atormentavam os vivos. Miguel era o único que podia enfrentá-los. A cada missão, Miguel mergulhava mais fundo nesse mundo oculto. Cada alma libertada era uma cicatriz em seu espírito. Cada sombra enfrentada, um peso a mais em seus ombros. Ele andava entre os dois mundos como um guardião silencioso - rejeitado pelos vivos, temido pelos mortos. Agora, sua missão era clara. Miguel passaria a viver entre as frestas da realidade e do além, sendo enviado a diferentes lugares, cidades e casas assombradas. Sua tarefa: libertar os espíritos bons que não conseguiam seguir seu caminho, e enfrentar os que permaneciam presos ao ódio e ao medo. Muitas vezes, essas missões vinham em sonhos, outras em visões. Ele era guiado por sinais que só ele compreendia, e enfrentava forças que fariam qualquer adulto enlouquecer. Mesmo com tanto peso, Miguel ainda era só um menino tentando entender seu lugar no mundo. Um menino beijado pelas sombras da morte, mas guiado pela luz de uma missão maior: salvar aqueles que ninguém mais via, libertar os que estavam presos, e manter o equilíbrio entre os mundos. E essa, ele sabia, seria a jornada de toda a sua vida.A cidade desfeita pela guerra parecia suspensa no tempo. Telhados partidos, ruas cobertas de poeira e ecos de gritos que pareciam ter sido arrancados da própria alma do mundo. Miguel caminhava por entre os escombros com um silêncio sepulcral nos olhos, como se cada passo o levasse mais fundo nas feridas ainda abertas da realidade.Ao seu lado, Valéria mantinha a espada embainhada, mas os dedos trêmulos a denunciavam. As cicatrizes em seu braço pulsavam em tons escuros, como se ainda quisessem falar. Desde o confronto com o terceiro portador, algo nela havia mudado. Mais do que dor, era como se tivesse sido marcada por uma verdade que ainda não ousava compartilhar.— Aqui não é só destruição — murmurou Léo, examinando uma parede coberta de símbolos arcanos. — Essa cidade... ela foi deixada como aviso.Mateo se abaixou ao lado de uma criança petrificada em pedra. Uma estátua perfeita, com os olhos arregalados e a boca entreaberta em um grito silencioso.— Ou como testemunho — completou.
O silêncio era quase absoluto na casa onde Miguel e seus aliados haviam se reunido após os últimos confrontos. O ar ainda estava impregnado com a energia densa das últimas revelações. As cinzas dos dias anteriores pareciam ter deixado cicatrizes em todos, mesmo que não fossem visíveis. Miguel observava a cidade pela janela, onde os prédios tremeluziam sob uma lua opaca. Era como se o mundo estivesse segurando a respiração, aguardando o próximo passo.Valéria estava sentada ao lado de um mapa antigo que haviam recuperado na torre esquecida. Seus dedos percorriam lentamente as rotas riscadas com tinta escura. – Isso aqui... – murmurou ela – não é um mapa comum. Não apenas representa caminhos, mas também eventos.Léo, com o semblante mais carregado do que o habitual, se inclinou para observar. – Como assim?– Veja essas marcas – ela apontou. – Aparecem em pontos onde houve rupturas do véu. Como se este mapa fosse um reflexo das feridas entre os mundos.Mateo, com a voz rouca de tanto sil
O céu parecia manchado de sangue quando Miguel emergiu do santuário das sombras. Seus olhos, agora acostumados com a escuridão dos dois mundos, viam além da névoa, além da dor. Ele sentia o pulsar da cidade como um coração quebrado, tentando bater com o que lhe restava. O mundo não era mais o mesmo — e ele também não era.Ao seu lado, Valéria caminhava em silêncio. As cicatrizes em sua pele brilhavam em tons pálidos sob o luar, mas eram as que estavam na alma que mais pesavam. O grupo havia vencido a batalha contra o terceiro portador corrompido, mas o preço cobrado ainda não tinha sido totalmente revelado.Mateo permanecia recluso, inquieto, andando de um lado para o outro na velha igreja que agora servia de abrigo. Léo, por outro lado, se afastara. Dissera que precisava buscar algo — ou alguém — em meio aos destroços do antigo hospital onde sua irmã havia desaparecido.Miguel, agora mais sensível ao véu, começou a ouvir sussurros novamente. Mas desta vez, não eram apenas vozes perdi
A floresta ao redor do antigo vilarejo parecia respirar — folhas murmuravam segredos esquecidos e a neblina se movia como se tivesse vontade própria. Miguel caminhava à frente, seus olhos analisando as trilhas gastas de terra e musgo, guiado por algo que não era bússola, mas intuição. Desde a partida de Arthur, algo havia mudado no grupo. Valéria estava mais silenciosa, Léo mantinha-se em guarda, e Mateo... Mateo não havia dito uma palavra desde o confronto final. Apenas Elisa — a Fratura — parecia se tornar cada vez mais sólida, cada vez mais humana, à medida que os quilômetros se acumulavam sob seus pés. — Estamos próximos — disse Miguel, com um tom baixo. — Sinto algo. Um peso antigo. — Acha que é o quarto portador? — Valéria perguntou, afastando galhos baixos do caminho. — Não sei. Mas há algo nos observando. Léo franziu a testa, preparando a mão para invocar a luz, mas Elisa segurou seu braço. — Não é uma ameaça... é dor. Uma dor que ecoa há séculos. Eles chegaram a uma cla
O tempo parecia suspenso no limiar entre dois mundos. Desde a partida de Arthur, e a revelação do quarto portador, os ventos haviam mudado. Miguel sentia na pele a respiração do véu. Era como se o mundo real e o outro lado estivessem prestes a colidir. O grupo havia deixado a cidade esquecida e agora caminhava por um bosque que antes era só uma mancha verde no mapa, mas agora ganhava contornos surreais. As árvores sussurravam em vozes antigas, folhas que não pertenciam à estação caíam em um balé irregular, e as sombras não obedeciam à luz. — Tem certeza que ele está aqui? — perguntou Mateo, atento a cada passo. Miguel assentiu. — O véu me mostrou. Disse que ele era o único a ouvir o ciclo das estações... o único que sonhava com o tempo dançando. — Que droga isso significa? — murmurou Valéria, puxando sua adaga. Léo, sempre o mais calado, olhava para as árvores. — Significa que estamos chegando perto. Caminharam até uma clareira onde o ar mudava. Era outono num canto, inverno no o
A cidade onde ele dormia não existia em nenhum mapa físico. Era um lugar onde os sonhos se cruzavam com as memórias, uma ruína esquecida que só podia ser acessada por aqueles marcados pelo véu. Guiados por Elisa, o grupo chegou à entrada de um vilarejo chamado Aramys — abandonado, tomado por mato e silêncio. As casas ainda estavam inteiras, mas havia nelas uma quietude doentia. Como se ninguém houvesse se movido ali por séculos, e ainda assim, cada cômodo guardava o calor de presenças invisíveis. Valéria passou os dedos pela parede de uma das casas. Sentiu como se a madeira respirasse. — Esse lugar... — murmurou — está sonhando. — Não é o lugar. — respondeu Elisa. — É ele. Seus sonhos mantêm tudo isso existindo. Miguel se virou. — Então estamos... dentro da mente dele? Ela assentiu. — Em parte. A cidade é feita de ecos. Sonhos dele, memórias dele, fragmentos dos nossos mundos também. Por isso precisaremos atravessar os labirintos certos. Léo, como sempre, preferiu agir. Seguiu
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