Era fim de tarde quando Miguel sentiu o chamado. Um arrepio cortou sua espinha, e a visão ficou turva por alguns segundos. Era como se alguém sussurrasse seu nome dentro de sua mente. Clara costumava dizer que quando os mortos chamam, os vivos estremecem. E naquele dia, Miguel estremeceu.
Guiado pela sensação, ele seguiu até os arredores da cidade, onde uma floresta antiga se erguia como um monumento esquecido pelo tempo. Chamavam-na de "Mata dos Lamentos", um lugar que os moradores evitavam, repleto de lendas, desaparecimentos e histórias abafadas com medo. Ao adentrar a mata, o silêncio era absoluto — nem o canto dos pássaros, nem o som do vento entre as folhas. Apenas o eco dos próprios passos. Miguel andava com cautela, sentindo as presenças ao redor. Espíritos estavam ali. Muitos. Mas algo os mantinha calados. Subjugados. Foi então que ele viu: um altar improvisado, feito de pedras e ossos, no centro de uma clareira. Em volta, figuras espectrais ajoelhadas, imóveis, como se presas a um encantamento. Uma delas, uma jovem de vestido florido e olhos vazios, ergueu o rosto lentamente e encarou Miguel. — Você não devia estar aqui... — murmurou. — Ele acordou. — Quem é ele? — Miguel perguntou, mas a garota já se calava, como se forças invisíveis a sufocassem. Foi então que a floresta sussurrou. Não com uma voz, mas com centenas. Vozes de espíritos presos, chorando, suplicando, amaldiçoando. No centro de tudo, uma presença antiga, faminta, que se alimentava do medo e da dor. Um espírito dominante. Um pastor de almas perdidas. Miguel sabia: essa não era uma missão simples. Para libertar aquelas almas, ele teria que enfrentar o próprio comandante da floresta. Um espírito que não apenas controlava os mortos — ele os transformava em sombras. E a noite estava apenas começando. A escuridão caiu rápido, como um véu puxado com violência. Miguel sentiu o peso da floresta sobre si, como se as árvores estivessem se inclinando para observá-lo. As vozes aumentaram, agora formando um cântico indecifrável que vibrava em seus ossos. Do altar de ossos, uma sombra começou a se erguer — não uma forma definida, mas uma massa densa, negra, ondulando como fumaça viva. Olhos brancos se abriram em meio à névoa escura, e a voz grave ecoou como trovão abafado: — Você ousa desafiar meu santuário, menino da morte? Miguel sentiu o peso da presença o esmagando, mas firmou os pés no chão. Pegou do bolso o amuleto que herdara de Clara — uma pequena cruz de madeira, simples, mas carregada de fé e memória. Ela sempre lhe dizia: “O que te protege não é o símbolo, é o amor que você carrega.” A sombra riu, zombando da coragem de Miguel. — Amor? Aqui não existe amor. Apenas dor... arrependimento... e silêncio eterno. As sombras que ajoelhavam em volta começaram a se mexer, olhos vazios virando-se para Miguel. Eles avançaram como marionetes, dominados. Miguel fechou os olhos, respirou fundo e sentiu a presença de Clara ao seu lado. Ele ergueu o amuleto e gritou: — Vocês não são escravos! Se lembram de quem eram! Lutem! Por um momento, o avanço cessou. A jovem do vestido florido chorou silenciosamente. As sombras hesitaram. O espírito dominante rugiu, suas vozes se multiplicando. Miguel correu em direção ao altar, esquivando-se dos espíritos hesitantes. Cravou a cruz de madeira no chão diante do altar e, com todo o amor que restava em si, gritou o nome de Clara. Uma luz intensa explodiu do amuleto. Os espectros gritaram — alguns em dor, outros em alívio. A sombra dominante se contorceu, perdendo forma, como se queimasse de dentro para fora. — ISSO NÃO ACABOU, MENINO! — foi o último brado da entidade antes de ser engolida pela luz. As almas libertas começaram a desaparecer, uma a uma, com semblantes agora serenos. A jovem do vestido florido sorriu antes de sumir. A floresta, enfim, voltou a respirar. Miguel caiu de joelhos, exausto, com lágrimas nos olhos. Mas ao olhar para o altar destruído, percebeu que entre as cinzas havia um símbolo gravado na pedra: uma coroa com espinhos negros. Ele não sabia ainda... mas acabava de enfrentar um servo do Rei das Sombras.