No coração de um bairro esquecido pela cidade, havia uma casa que todos evitavam. O mato tomava conta do quintal, as janelas viviam fechadas, e quem se aproximava dizia ouvir brigas — discussões intensas, choros, gritos abafados. Mas ninguém morava lá há mais de vinte anos.
Miguel sentiu o chamado assim que passou por aquela rua. Um frio cortante, diferente dos outros. Era como se alguém o puxasse para dentro, mas ao mesmo tempo algo o empurrasse para longe. Uma dualidade constante — convite e recusa. Quando entrou na casa, percebeu: não havia apenas um espírito ali. Havia muitos. E estavam em guerra. Quadros quebrados. Marcas de unhas nas paredes. Sangue seco no chão que ninguém jamais havia limpado. No centro da sala, três presenças se debatiam como fumaça viva. Duas forças maiores — uma carregada de culpa e arrependimento, outra de ódio e vingança — e um terceiro espírito, menor, preso entre elas. Miguel tentou se comunicar. “Quem está aqui?” A resposta veio em vozes sobrepostas: — “Eu só queria paz.” — “Ele me traiu.” — “Ela me matou!” — “Eu era só um menino!” As imagens vieram como flashes. Um homem e uma mulher, casados. Brigas constantes, traições, acusações. Um filho, pequeno, testemunhando tudo. Numa noite de fúria, a mulher matou o marido. O filho tentou intervir e morreu no fogo cruzado. Desde então, os três estavam ali — presos, presos nos seus últimos momentos. O pai implorava perdão. A mãe queria justiça. O menino, confuso, apenas chorava. Miguel entendeu: nenhum deles conseguiria partir enquanto continuassem presos ao que os destruiu. Ele tentou conversar com a mãe primeiro. Ela se recusava a ouvir. “O que ele me fez, você não entende! Eu amava ele! Mas ele me humilhou!” “E seu filho?”, Miguel respondeu. “Ele está aqui! Perdido. Morrendo de novo todos os dias.” Ela parou. Pela primeira vez, as sombras ao redor dela tremularam. A dor venceu a raiva. Do outro lado, o pai abaixou os olhos. “Eu errei. Mas nunca desejei a morte... nem a dele...” Miguel os fez olhar um para o outro. E, finalmente, olhar para o filho. O menino os observava, com olhos vazios. “Vocês gritam tanto... que eu esqueci como era o silêncio.” As sombras cederam. O pai e a mãe se ajoelharam diante do filho. E juntos, os três foram envoltos por uma luz pálida — uma reconciliação tardia, mas real. A casa silenciou. Miguel saiu dali exausto. Aqueles não eram apenas fantasmas — eram memórias vivas de tragédias humanas, repetidas eternamente até alguém interferir. Mas ele sabia: quanto mais longe ia, mais complexo se tornava o peso de sua missão. Libertar nem sempre era apenas afastar o mal. Às vezes, era juntar cacos de almas estilhaçadas. E o mundo estava cheio delas. Miguel já aprendera que nem todos os espíritos eram iguais. Alguns estavam presos por dor, outros por arrependimento. Mas havia uma terceira categoria, ainda mais perigosa: os que gostavam de estar ali. Era noite quando ele sentiu o chamado. Diferente de tudo que já havia enfrentado. Era como um eco vindo de um lugar sem tempo. Um nome sussurrado por dezenas de vozes ao mesmo tempo: “Venha. Ele quer te conhecer.” O local era uma antiga fábrica abandonada nos limites da cidade. Enferrujada, esquecida, mergulhada em sombras. Quando Miguel atravessou os portões, não estava mais no mundo dos vivos. As paredes pulsavam como se tivessem vida. Vozes choravam, riam, gritavam e murmuravam dos corredores escuros. Espíritos andavam em círculos, vagando sem rumo — mas com algo em comum: olhos vazios, dominados, apagados. No centro da fábrica, sobre um trono feito de ossos e ferro retorcido, estava ele. Alto. Impossível de descrever com exatidão. Sua forma mudava, feita de sombras densas, com olhos como buracos de vazio. Ele falava sem abrir a boca, sua voz ressoava dentro da mente de Miguel. — “Você é o escolhido. O elo. A ponte entre mundos. Mas está desperdiçando seu dom.” — “Quem é você?”, Miguel perguntou, lutando para manter-se firme. — “Sou o que nasce do rancor dos mortos. O que cresce com o ódio, o que se alimenta da dor. Sou o Rei das Sombras.” Ele não libertava espíritos. Ele os dominava. Usava a raiva dos que partiram para mantê-los presos, tornando-os seus servos — soldados numa guerra invisível contra o equilíbrio. — “Você poderia ser meu herdeiro, Miguel. Juntos, dominaríamos o outro lado. Nenhum espírito sofreria mais... Todos obedeceriam. Não haveria dor. Nem perda.” Era tentador. Uma falsa promessa de ordem no caos. Mas Miguel viu os rostos dos espíritos ao redor. Crianças, velhos, pessoas comuns. Seus olhos imploravam por libertação. — “Eu não fui marcado pela Morte para escravizar os mortos. Fui marcado para libertá-los.” O Rei rugiu. A fábrica inteira tremeu. Os espíritos avançaram, obedientes. Miguel lutou como pôde — não com força, mas com empatia. Falava com cada espírito, chamava seus nomes, lembrava suas histórias. Um a um, eles iam despertando. Luz contra escuridão. Memória contra esquecimento. O Rei das Sombras recuou. — “Você não venceu, garoto. Só adiou o inevitável. Eu estou em toda parte. Onde há dor, eu nasço.” E então desapareceu, como fumaça rasgada pelo vento. Miguel caiu de joelhos, esgotado. Sabia que aquilo era apenas o começo. Agora, tinha certeza: existia uma força por trás da desordem dos espíritos. Uma entidade que manipulava as dores do mundo. E que, um dia, voltaria.