Miguel vinha tendo o mesmo sonho há três noites seguidas.
Nele, ouvia batidas. Três toques secos. Sempre vindos de uma caixa de madeira trancada com correntes. A caixa tremia sozinha no escuro, cercada por vozes infantis chorando, pedindo ajuda.
Na quarta noite, Miguel acordou suando frio. Mas não estava sozinho.
No canto do quarto, sentado com os joelhos junto ao peito, um menino pálido, de olhos fundos e vazios, o observava em silêncio. Suas roupas pareciam antigas, sujas de terra. Havia algo de estranho no modo como sua sombra não acompanhava seus movimentos.
“Você ouviu o som também, né?”, perguntou o menino, com voz fraca.
“Qual seu nome?”, perguntou Miguel, se aproximando com cuidado.
“Não sei mais... Mas me chamavam de... Coisa.”
O coração de Miguel apertou.
“Quem te chamava assim?”
“O homem da casa azul... Ele me colocou na caixa.”
Na manhã seguinte, Miguel decidiu investigar. Perguntou por casas azuis no bairro e encontrou uma, velha e semiabandonada, na parte mais antiga da cidade. Ao forçar a entrada, foi tomado por um cheiro de mofo, podridão e algo mais... metálico. Sangue antigo.
Enquanto explorava o local, ouviu de novo: Toc. Toc. Toc.
Seguiu o som até o porão. Lá, entre caixas quebradas e bonecos velhos, encontrou uma caixa de madeira trancada com correntes, exatamente como a do sonho. O chão ao redor estava riscado com símbolos que pareciam feitos por unhas.
Miguel tocou a tampa. E a voz do menino ecoou:
“Ele trancava crianças aqui quando choravam. Dizia que só assim elas aprendiam.”
A caixa começou a tremer. As correntes vibravam sozinhas. Miguel respirou fundo e se concentrou. Visualizou a luz que usara para ajudar Camila. Mas desta vez, a sombra era mais forte. Do teto, desceu uma figura gigantesca, esquelética, com olhos ocos — o espírito do homem da casa azul.
“Você também vai pra caixa, menino curioso!”, rosnou a sombra.
Miguel caiu de joelhos, sufocado pelo peso da presença. Mas então, uma pequena mão agarrou a sua.
Era o espírito do menino. Não mais com medo.
“Não tenho mais medo dele. Não estou sozinho agora.”
O menino gritou, e a caixa explodiu em luz. As correntes se desfizeram em poeira. O espírito do homem gritou, se despedaçando como vidro quebrado.
O porão se silenciou.
O menino olhou para Miguel, agora com um sorriso.
“Obrigado. Posso ir brincar com os outros agora?”
E desapareceu.
Miguel subiu as escadas, cambaleante, sentindo a poeira do passado assentar-se atrás de si. Mais uma alma liberta. Mais um peso em seu coração.
Cada espírito que ele ajudava deixava um pedaço dentro dele. Mas também, a cada missão, ele se tornava mais forte. Mais... necessário.
Porque os vivos ainda ignoravam o mundo que sussurrava entre as paredes. Mas Miguel ouvia tudo.
E as sombras estavam apenas começando a chamá-lo.
Naquela semana, Miguel começou a ouvir risadas. Risinhos leves, infantis, vindos dos lugares mais improváveis: dentro do armário, atrás da geladeira, sob o travesseiro. Não havia dor nelas, nem medo — mas também não havia alegria.
Eram vazias.
Numa tarde nublada, ao passar por uma antiga pracinha, viu uma menina sozinha no balanço. Vestia um vestido branco e girava os pés no chão, criando círculos na areia.
“Miguel...”, disse ela, sem se virar.
Ele congelou.
“Como sabe meu nome?”
“Porque eu sonhei com você. E você veio.”
Miguel sentiu o frio na espinha — aquele frio que só vinha quando algo estava errado.
“Qual seu nome?”, perguntou.
“Lia”, ela respondeu. “Me perdi da minha mãe... Me ajuda a encontrá-la?”
A voz era doce demais. Os olhos, quando ela finalmente o encarou, não piscavam. Miguel não viu reflexo neles. Nenhum brilho.
Mesmo assim, seguiu a menina. Ela o levou até um prédio abandonado. Lá dentro, paredes riscadas com desenhos infantis. Todos mostravam uma mesma cena: uma menina sorrindo, cercada de corpos de outras crianças.
“Você desenhou isso?”, perguntou ele.
“Meus amiguinhos... Todos brincaram comigo. Mas eles sempre somem depois.”
Miguel deu um passo para trás.
“Lia, você sabe que não está viva, não sabe?”
Ela sorriu.
“Eu sei, Miguel. Mas e você? Sabe o que está fazendo aqui?”
A voz dela mudou. Tornou-se grossa, arranhada, como se várias bocas falassem ao mesmo tempo. O corpo da menina se retorceu, crescendo, alongando-se. Dos olhos saíam sombras líquidas. Não era uma criança. Nunca fora.
Era um espírito antigo, um engodo, que assumia formas infantis para atrair médiuns e alimentava-se de suas emoções — especialmente os que, como Miguel, estavam feridos.
A criatura avançou. Miguel tentou usar sua luz, como sempre fazia, mas ela foi engolida. Lia — ou o que quer que fosse — era diferente.
“Você é tão fácil, Miguel. Ainda busca sua mãe. Ainda se sente culpado. Seu coração aberto é meu banquete.”
Então, uma voz se ergueu em sua mente: “Ela não é real. Mas você é. A luz está em você, não fora.”
Era a voz de Clara.
Miguel fechou os olhos, respirou fundo, e em vez de forçar sua energia, aceitou sua dor. Abraçou o vazio, a saudade, a solidão. E dessa dor, sua luz brilhou — firme, pura, real.
A criatura gritou, sendo rasgada de dentro para fora. A ilusão se despedaçou. E o prédio silenciou, como se nunca tivesse abrigado tamanha escuridão.
Miguel saiu, cambaleando. O céu começava a clarear. As risadas cessaram.
Mas ele sabia: as sombras estavam aprendendo. E estavam começando a brincar com ele.