Mundo de ficçãoIniciar sessãoAs pessoas adoram vilões. Desde que possam odiá-los de longe, sem culpa. Acham que sabem tudo sobre nós. Dizem que somos monstruosos por natureza, ou que fomos quebrados por traumas irreparáveis. Gostam de catalogar nossas dores como se fossem capítulos de um manual psicológico barato. Outros acreditam que somos mimados, arrogantes, egocêntricos; crianças mimadas em corpos de adultos dispostos a destruir o mundo só para não ouvir um "não". E, claro, há os vilões clássicos. Os criminosos. Os assassinos. Aqueles que mancham as mãos de sangue e terminam algemados, empurrados para a sombra do esquecimento, como se a prisão fosse o ponto final de todas as histórias mal contadas. Mas há um tipo de vilão que ninguém gosta de admitir que existe... O vilão que amou demais. Que cedeu, calou, esperou... E foi lentamente moído pela bondade falsa, pelos sorrisos luminosos e pelas palavras doces que escondiam lâminas. Esses vilões surgem dos clichês mais doces, aqueles que vocês veneram. A mocinha meiga, o mocinho perfeito, a casinha branca com cerca de madeira, o cachorro de nome idiota correndo entre crianças risonhas. Um retrato pintado para esconder a sujeira embaixo do tapete. E vocês... Vocês engolem isso como se fosse verdade. Desculpe se sentiu ânsia ao ler isso. Eu também senti. Foi exatamente essa náusea que me consumiu quando percebi quem eu havia me tornado. A vilã da história de Ben e Ams. Sim. A vilã. E se você está aqui apenas para me julgar, pode fechar esse livro. Mas se for corajoso o bastante para escutar antes de apontar o dedo, então fique. Eu prometo que, ao final, talvez deseje nunca ter torcido pela mocinha. Meu nome é Seo Mi-Suk. Sejam bem-vindos ao lado que ninguém quer ouvir... Sejam bem-vindos ao outro lado da história.
Ler maisMeus pais se mudaram para Nova Iorque quando eu ainda era um bebê, com poucos meses de vida. Meu pai, advogado; minha mãe, repórter de um jornal local na Coreia do Sul. Quando ela recebeu uma proposta de trabalho de uma grande emissora americana, parecia uma chance de ouro, a oportunidade de recomeçar, de crescer, de construir algo maior.
Eles largaram tudo. Amigos, família, raízes. Trocaram o conhecido pelo promissor, o conforto pelo sonho.
Maldito o dia em que ela disse sim para aquele trabalho.
Quando eu tinha apenas dois anos de vida, minha mãe foi arrancada do mundo. Não por doença, nem pelo tempo, mas pela violência crua, insensata, que invade feito tempestade e nunca pede licença.
Ela cursava o mestrado em jornalismo numa universidade conceituada, acreditando que palavras mudariam o mundo. Mas, naquele dia, foram as balas que falaram mais alto em um atentado planejado por monstros.
Quatro tiros de metralhadora, todos no peito.
Não houve fuga, não houve grito.
Encontraram-na escondida numa cabine do banheiro feminino, com as mãos entrelaçadas às de outra mulher. Ambas mortas. Ambas silenciadas.
Os assassinos não esperaram julgamento. A covardia deles foi até o fim, e tiraram a própria vida antes que a polícia pudesse nomeá-los.
Uma tragédia, foi o que os jornais disseram. Mas tragédias, por mais que te partam, têm um jeito frio de virar apenas palavras com o tempo. Eu era pequena demais para lembrar, pequena demais até para entender que faltava alguém ao meu lado. Cresci com um vazio que não sabia nomear.
A ausência da minha mãe não era um buraco, era um silêncio. Um silêncio que se escondia nas fotografias dela emolduradas na estante, nos olhos do meu pai quando ele achava que eu não estava olhando, nas perguntas que eu queria fazer, mas nunca tinha coragem.
Ela era uma sombra presente em tudo, nas festas da escola, nos aniversários, nas noites em que eu chorava sem saber o porquê. Todo mundo falava dela com uma doçura quase sagrada. Mas eu só queria saber quem ela era. Que cheiro ela tinha. Como era sua risada... Crescer sem uma mãe é como andar com um sapato que não serve. Você se acostuma, aprende a caminhar, até corre, mas algo sempre dói. Mesmo quando ninguém vê.
Benjamin tinha apenas seis anos quando seu mundo também desmoronou. O filho da mulher que morreu ao lado da minha mãe. A morte o marcou de um jeito que criança nenhuma deveria conhecer. Foi neste fatídico dia que meu pai conheceu o tio Vance. Os dois estavam juntos quando encontraram suas esposas no banheiro. No dia do funeral coletivo das vinte e três pessoas mortas, na quadra de esportes da universidade, eles descobriram que ambos tinham filhos pequenos, e ali começou uma amizade inabalável.
Cresci cercada por três homens quebrados: meu pai, tio Vance... e Benjamin.
A dor deles se entrelaçou de um modo estranho e silencioso. Meu pai e tio Vance se tornaram irmãos na tragédia, e Benjamin foi o fio que me manteve ligada a esse passado nebuloso que eu nunca vivi, mas que sempre esteve à minha volta, como um nevoeiro que nunca se dissipa completamente.
Ele sempre esteve lá. O menino de olhos tristes que sorria para mim como se eu fosse a única luz em seus dias. O menino que se deixava pintar com minhas maquiagens baratas, que inventava histórias de piratas para me distrair das noites em que meu pai chorava escondido no banheiro. O mesmo que me vestia de menino para jogar beisebol, e ria alto quando eu errava todas as bolas, só para me deixar menos frustrada.
Benjamin era meu abrigo, e eu, a lembrança viva da infância que a vida tentou arrancar dele.
A adolescência não nos separou, pelo contrário... Fizemos aulas de música juntos; ele, violão, e eu, piano. Natação, francês, culinária, e até mesmo dança de salão. Sempre estivemos juntos.
Quando ele entrou na faculdade e eu ainda penava no ensino médio, nosso laço apenas se fortaleceu. Ele me levava e buscava todos os dias no colégio, no seu carro vermelho barulhento, e me ouvia reclamar da vida como se eu fosse a pessoa mais interessante do mundo. Eu ouvia sobre suas aulas, seus professores, seus planos para o futuro. Ele me protegia do mundo com a mesma intensidade com que o enfrentava.
Eu era a irmã que ele escolheu amar como ninguém. E eu também o amava. Como se ama alguém que sempre esteve lá, antes mesmo que você soubesse o que amor significava.
Mas naquela noite, tudo começou a mudar.
Chovia muito, como em um clichê barato. Eu estava no quarto, deitada de lado na cama, com Orgulho e Preconceito aberto pela décima vez, quando ouvi a batida na janela. Três toques secos. Reconhecíveis. O nosso código.
Levantei o olhar devagar e lá estava ele, encharcado, com o cabelo colado na testa e os olhos mais escuros do que o céu lá fora. Algo estava errado.
Abri a janela sem pensar duas vezes. A partir dali, eu não era mais só a irmã mais nova. Nem ele era só o protetor. Havia algo nos olhos dele que eu nunca tinha visto antes, e que, mesmo sem entender, meu corpo reconheceu como perigo.
[][] Epílogo – 10 anos depois [][]Dez anos após aquela noite em que Leonie acordou chamando por nós, Corippo ainda permanece o nosso lar, um refúgio de pedra e paz onde as cicatrizes do passado se transformaram em memórias distantes, suavizadas pelo tempo e pelo amor.Leonie está com 17 anos agora, uma adolescente vibrante, com os cabelos escuros caindo pelos ombros e o mesmo espírito arteiro que encantava a casa quando ela era pequena. Ela herdou a teimosia de Min-ho e minha paixão por criar, mas em vez de tortas, ela pinta; Telas cheias de cores vivas que capturam os Alpes, o rio Verzasca e as histórias que inventava sobre fadas e dragões. Sua risada ainda ecoa pelas ruas de paralelepípedos, e ela agora ajuda na padaria de dona Claire, que, apesar dos cabelos ainda mais brancos, continua nos mimando com donuts açucarados.Nosso segundo filho, Elias, chegou dois anos após aquela noite selvagem com Min-ho. O parto foi tranquilo, ao contrário do que temíamos, e ele nasceu forte, com o
O tempo voou como um foguete. Leonie, agora com sete anos, era uma força da natureza; uma menina de cabelos escuros e cheios como os meus, olhos profundos como os de Min-ho, e uma língua afiada que nos fazia rir e suspirar. Ela falava sem parar, contando histórias inventadas sobre fadas nas florestas de castanheiros ou perguntando por que o rio Verzasca brilhava como esmeralda.Sua energia era incansável, mas cada risada dela, cada abraço apertado, era um lembrete de que a vida nos dera uma segunda chance.Naquela tarde de primavera, o sol aquecia o quintal da nossa casa de pedra, as flores silvestres explodindo em cores vibrantes ao redor, e o ar cheirava a maçãs frescas e terra úmida. Estávamos na cozinha, as janelas abertas deixando entrar a brisa, enquanto preparávamos tortas de maçã para a padaria de dona Claire. A mesa de madeira estava coberta de farinha, tigelas de maçãs fatiadas e uma bagunça de utensílios que Leonie insistia em "ajudar" a usar. Ela estava empoleirada num ban
Dois anos se passaram desde o nascimento de Leonie, nossa pequena leoa, e cada dia com ela tem sido uma mistura de caos delicioso e amor infinito que eu nunca imaginei merecer depois de tudo que vivi.O parto foi uma batalha; pélvico, doloroso, com ela virada ao contrário como se desafiasse o mundo desde o útero.Lutou bravamente para vir ao mundo, gritando como uma guerreira, e nós a batizamos Leonie, valente como uma leoa, um nome que ecoava sua força e a nossa esperança renovada.Ser mãe dela é como navegar um rio selvagem: ela é arteira, curiosa até o perigo, com olhos escuros como os de Min-ho e um sorriso que derrete o meu coração.Aos dois anos, ela já escala os móveis da nossa casa de pedra como se fossem montanhas, rouba frutas do cesto antes do jantar, e ri com uma gargalhada gutural que enche o ar de alegria. Tem sido exaustivo: noites sem dormir quando ela chora por monstros imaginários, tardes correndo atrás dela pelo quintal para impedir que coma terra ou persiga os gato
Sete anos se passaram desde que nos instalamos em Corippo, e a vida, de alguma forma, encontrou um ritmo que eu nunca imaginei possível após o inferno que deixamos para trás.O vilarejo, com suas casas de pedra e ruas sinuosas, tornou-se mais do que um refúgio, era um lar.Eu me reinventei aqui, transformando a dor em algo doce, literalmente. Tornei-me confeiteira, especializada em tortas de maçã feitas com as frutas crocantes dos pomares locais, a massa amanteigada e o recheio quente perfumando nossa casa de pedra. Minhas tortas eram vendidas nas poucas padarias da região, entregues em cestas de vime que eu carregava pelas trilhas íngremes até Locarno ou Ascona.O luto pelo meu filho nunca me deixou, mas aprendi a carregá-lo como uma cicatriz, não uma ferida aberta. A meditação diária, o apoio de Min-ho e a simplicidade da vida em Corippo me ensinaram a perdoar; não os outros, mas a mim mesma.Agora, aos seis meses de gravidez, eu sentia uma nova vida crescendo dentro de mim. Era uma
[][][] Quatro anos depois [][][]Quatro anos se passaram desde aquela noite de fogo e sangue no galpão, uma eternidade que parecia ao mesmo tempo um piscar de olhos e uma vida inteira.Fugimos do México para a Ásia, de lá para a África e depois Europa, sempre trocando de identidades como peles de cobra, até nos instalarmos em Corippo, um vilarejo rústico e esquecido no cantão do Ticino, na Suíça. Aqui, o mundo moderno mal nos tocava: sem internet para nos conectar ao passado, com apenas uma TV por satélite que sintonizava canais antigos, pilhas de livros empoeirados que Min-ho trazia de viagens esporádicas a Locarno, e frutas e vegetais frescos colhidos dos pequenos pomares ao redor; maçãs crocantes, peras suculentas, e tomates vermelhos como sangue seco.A vizinhança era quase nula, com menos de uma dúzia de habitantes no vilarejo inteiro, a maioria idosos que mal saíam de suas casas de pedra, trocando olhares desconfiados mas respeitosos com os "estrangeiros" que éramos. Nossa casa
Meu coração batia descompassado, o luto e o horror do que havíamos feito pesando no peito como uma pedra. O martelo não estava mais na minha mão, mas o peso do sangue ainda grudava na minha pele, o cheiro de gasolina e carne queimada impregnado nas minhas narinas.Eu era a vilã dessa história agora.Mas pelo meu filho, pelo vazio que ele deixou, eu faria de novo.Min-ho dirigiu por um longo tempo enquanto falava ao telefone; o fone em seu ouvido me impedia de ouvir o que estava sendo combinado, mas suas falas eram curtas e secas com a pessoa do outro lado da ligação. Suas mãos estavam firmes no volante, os olhos fixos na estrada, mas ele me olhava de relance, como se tentasse avaliar se eu ainda estava inteira.— Já está tudo arranjado — disse ele após apertar um botão no painel do carro, a voz rouca demonstrando o seu cansaço. — Um dos meus contatos conseguiu um navio de carga saindo do porto em meia hora. Vamos para o México, e de lá traçamos o resto do caminho. Ninguém vai nos acha










Último capítulo