Cecília tem vinte e dois anos, um gênio difícil, e um coração blindado por decepções. Trabalha como garçonete até de madrugada, mora sozinha e evita qualquer laço que possa controlá-la — inclusive a própria mãe. Com a irmã mais velha, o silêncio virou costume, e o pai só aparece pra pedir dinheiro. Ela vive em modo de defesa, como quem aprendeu cedo que amar demais é dar munição ao outro. Enrico Moretti tem trinta e sete, é um executivo frio, dono de uma presença que impõe respeito — ou medo. Acostumado a conseguir tudo o que quer, ele não esperava se sentir desarmado ao cruzar o olhar com uma garçonete de respostas afiadas e olhar ferido. Mas ali, naquele breve encontro, algo muda. Ela o desafia e ele a desnorteia. Entre provocações, silêncios cheios de tensão e encontros cada vez mais intensos, Cecília vai descobrir que o amor pode ser tão perigoso quanto libertador. E Enrico, descobre que o controle que sempre teve sobre tudo talvez não funcione com alguém que não quer ser salva — apenas amada. Duas almas opostas, marcadas por histórias diferentes, mas com a mesma necessidade: serem vistos de verdade. E quando o passado ameaça vir à tona, só resta uma pergunta: é possível amar sem se perder?
Leer másA madrugada sempre teve um cheiro peculiar. Cecília sabia disso porque vivia entre seus turnos noturnos, o suor, o cigarro alheio e o perfume doce — enjoativo — das clientes do bar. Naquela quinta-feira, o cansaço se empilhava em suas costas como os pratos que equilibrava nas bandejas. Já era quase quatro da manhã quando finalmente pendurou o avental e deixou o “Las Tardes” para trás.
O vento estava mais frio do que de costume, cortando pelas ruas quase desertas do centro. Cecília ajeitou a mochila no ombro e apertou o passo. Não por medo — medo não combinava com ela, mas por lucidez. Uma coisa era não levar desaforo pra casa, outra era ser estúpida. E Cecília, apesar da raiva fácil, não era burra. Estava irritada pois havia perdido o ônibus que passava na esquina do bar e agora teria que andar várias quadras até outro ponto para pegar o próximo.
Percebeu o som de passos atrás de si ao atravessar a terceira rua. Primeiro pensou ser paranoia, mas a sensação se repetiu: uma, duas, três vezes. Como um zumbido persistente. No reflexo de uma vitrine, viu a silhueta de um homem, alto, encapuzado. Talvez fosse só um bêbado perdido ou talvez não.
Mudou de rota, entrando na rua Sete, onde ninguém passava àquela hora. O som continuava, mais perto.
Droga.
Parou subitamente, fingindo procurar algo na mochila. Viu de relance a sombra hesitar. O frio percorreu sua espinha, mas ela manteve o rosto impassível, os dedos vibravam de adrenalina. Estava pronta. Se fosse preciso, atacaria com a chave entre os dedos — ou com um chute bem aplicado, não seria a primeira vez.
Dobrou à direita, rumo a um beco iluminado por uma danceteria. A música eletrônica fazia as paredes vibrarem, era ali ou nada.
Correu os últimos passos e, ao dobrar a esquina, deu de cara com um corpo. Forte, sólido, cheiroso demais para aquela hora. Trombou com ele com força, a ponto de se desequilibrar. Se não fossem os braços firmes que a seguraram, teria ido ao chão.
— Olha por onde anda, porra! — exclamou, instintivamente, se afastando.
— Você que esbarrou em mim — respondeu o homem, a voz grave e carregada de desdém. Ele usava um blazer escuro por cima de uma camisa parcialmente aberta no colarinho, o cabelo bem penteado estava um pouco desgrenhado, como quem tinha dançado ou se embriagado demais. Mas os olhos... os olhos estavam atentos.
Cecília o encarou com desconfiança, mas sentiu um arrepio subir pela nuca. Havia algo no olhar daquele homem que a desestabilizava — como se ele visse mais do que devia.
— Estava com pressa — disse Cecília, tentando disfarçar o coração acelerado.
— Fuga? Briga? Ex-namorado ciumento? — ironizou, com um sorriso debochado.
— Um idiota me seguindo, acha graça?
Ele virou o rosto para a rua, olhos semicerrados.
— Tem certeza?
— Tenho. E se não fosse pelo seu ego ocupando metade da calçada, talvez eu já estivesse longe dele.
— Você é sempre assim... simpática?
— Só com quem merece — rebateu, já tentando se afastar.
Mas então, o homem apareceu na esquina. O seguidor parou por um segundo, avaliando a situação. Os olhos escuros se fixaram nela, depois no homem ao lado.
— É ele? — o homem ao lado perguntou, a voz ainda tranquila, mas com os olhos sombrios.
— É.
— Fica perto de mim.
Cecília hesitou. O orgulho quase falou mais alto, mas havia algo naquele homem — no jeito calmo, no perfume caro, na postura firme — que a fez baixar a guarda. Só por um instante.
O homem do capuz ficou parado por alguns segundos, depois virou-se e seguiu pela rua de onde veio.
— Fugiu — comentou o estranho. — Mas não se engane, gente assim volta.
— Tô acostumada — disse Cecília, irritada. — E eu não pedi babá.
— Você também não pediu problema, mas veio. E não devia andar sozinha a essa hora.
— Acha que eu escolhi isso?
— Ninguém escolhe o perigo, mas pode evitá-lo.
— Que profundo, agora você é a voz da consciência?
— Não. Só alguém que estava no caminho. Coincidência ou talvez destino.
— Não acredito em destino.
— E você sempre com essa pose de durona? Vai me bater se eu te oferecer uma carona?
— Vai me sequestrar?
Ele riu. Mas não aquele riso aberto, foi curto, sutil. Quase perigoso.
— Se fosse o caso, você já estaria no carro. E com um capuz também.
— Tem mesmo essa cara de vilão de documentário — ela rebateu, mas sentiu o arrepio involuntário.
— E você tem a resposta na ponta da língua. O que é admirável... e irritante.
— Ótimo, então estamos empatados.
Ele riu mais uma vez. E, pela primeira vez, Cecília reparou que ele tinha covinhas, irritantemente encantadoras.
— Enrico — ele disse, estendendo a mão.
Ela olhou por um segundo e não apertou, apenas ergueu a sobrancelha.
— Eu não dou nome pra estranho que eu quase dei uma joelhada.
— Justo. Então vamos ficar no quase. Mas, por segurança, posso te acompanhar até um táxi ou até a delegacia mais próxima, se preferir.
Cecília hesitou, seus instintos gritavam para não confiar em homem nenhum. Mas o outro já tinha ido, e a rua ainda estava deserta e Enrico não parecia ter pressa nem más intenções. Só aquele olhar de quem nunca ouviu um “não”.
— Eu escolho ônibus e que você vá cuidar da sua vida.
— Aparentemente, nesse momento ela inclui você.
— Você adora se meter onde não é chamado, né? — ela rebateu, colocando as mãos na cintura. — Eu não ando de táxi.
— Eu pago.
— Que parte de “não ando com estranho” você não entendeu?
— E que parte de “sozinha a essa hora é perigoso” você finge não ouvir?
— Se você fosse mulher, saberia que perigo existe até com homem que finge ajudar.
Eles se encararam. Um silêncio estranho se instalou. Como se nenhum dos dois estivesse pronto pra admitir o que sentiam ali: incômodo... ou atração. Ou os dois.
— Você quem manda — ele disse enfim, jogando as mãos nos bolsos.
Ela assentiu e começou a caminhar. Ele a acompanhou em silêncio.
— Eu posso me defender, sabia?
— Imagino que sim. Mas hoje... ainda bem que eu estava aqui, não?
Ela não respondeu. Seguiram lado a lado até a avenida principal, Enrico andava com as mãos no bolso em silêncio, talvez estivesse sóbrio agora ou talvez só estivesse... observando.
Enrico a olhava de relance tentando entender o magnetismo daquela mulher de gênio afiado e cabelo cor de chama. Era como uma faísca prestes a incendiar. Tinha visto centenas de rostos em sua vida, mas aquele... aquele ficaria. Ela tinha uma beleza bruta, real, que não implorava atenção — apenas a tomava. E ele não conseguia desviar o olhar.
Cecília, por sua vez, sentia o peso daquele silêncio entre elea, da presença dele. Havia algo em Enrico que incomodava, mas não de forma negativa — era como um alerta constante, uma sensação de que estava diante de algo perigoso... e atraente. Queria manter distância. E ao mesmo tempo, queria provocá-lo só para ver até onde ele aguentava.
— Então... “Las Tardes”, hein? — ele comentou.
— Tá me seguindo há quanto tempo?
— Você pendurou o crachá na mochila. Só precisei de dois olhos, não de bola de cristal.
Ela riu de si mesma. E ele notou — aquele som era ainda mais interessante do que as respostas afiadas.
— Garçonete.
— E encara essa cidade sozinha?
— Porque preciso, e porque posso me defender.
— Não duvido disso, mas ainda me pergunto se vale o risco.
Ela parou quando viu o ônibus se aproximar e fez sinal com a mão. Enrico a acompanhou até a porta.
— Obrigada. Pela ajuda ou pela... coincidência.
— Coincidência ou destino?
— Está mais pro acaso, o destino costuma ser mais gentil.
Ele sorriu, encostando a mão na lateral do ônibus.
— Ainda assim... se precisar.
Tirou do bolso um cartão preto e entregou a ela.
Ela leu em voz baixa:
— “Enrico Moretti. Executivo-chefe. Grupo Orion.”
— Eu disse que não era sequestrador.
— Só capitalista safado.
— E você revolucionária encrenqueira.
— Só quando mexem comigo.
Ela não devolveu o cartão, mas guardou-o com ceticismo.
— Boa noite, Enrico.
— Boa madrugada, Cecília.
Ela entrou no ônibus, e ele ficou olhando até o veículo sumir na próxima esquina. Só então se virou e voltou para a calçada iluminada, com um sorriso discreto nos lábios. Mas por dentro, sentia o impacto dela ainda pulsando. A imagem do cabelo ruivo ao vento, da firmeza no olhar... ecoava em sua mente como algo que voltaria.
Cecília, sentada no banco do ônibus vazio, tirou o cartão do bolso e o encarou um tempo.Enrico mexeu com ela, mais do que deveria. Era irritante, arrogante, e ainda assim... havia algo nele que ela não conseguia ignorar. Intrigante demais para simplesmente esquecer.
Dobrou o cartão e o guardou na carteira.
Só por precaução.
Alguns dias se passaram desde o café com Laura, mas a conversa ainda rondava a mente de Cecília como um eco que não sabia se era aviso ou lembrança.As mensagens da irmã eram frequentes, quase diárias. Perguntas sobre como estava, sobre detalhes banais da rotina, sobre receitas que antes nunca pareciam interessar. No início, Cecília achou reconfortante. Mas, aos poucos, começou a notar que o tom mudava — havia sempre uma pergunta final que a levava, direta ou indiretamente, a falar de Enrico.Naquela manhã, ela estava na cozinha, cortando frutas para o café, quando percebeu que ele estava demorando mais do que o normal para se arrumar. Quando Enrico apareceu, a gravata ainda solta no pescoço, os olhos dele estavam mais escuros do que o habitual.— Você falou com ela hoje? — perguntou, indo direto ao ponto.— Laura? — Cecília largou a faca na tábua. — Ainda não. Por quê?Ele deu de ombros, mas o gesto estava carregado de algo que não era simples descaso.— Só quero entender onde isso v
O dia de folga amanheceu cinza, como se o céu estivesse incerto sobre o que queria ser — assim como Cecília.Ela caminhava pelo apartamento em passos lentos, a xícara de café entre as mãos, tentando ignorar o peso que sentia no estômago. O convite da irmã ainda ecoava na mente desde a noite anterior.Encontrar Laura.Parte de si queria fugir, se esconder na segurança das paredes e da rotina previsível com Enrico. Outra parte… aquela teimosa e inquieta… pedia para ir.Enrico estava resolvendo uma papelada em casa antes de ir para o escritório, a manga da camisa arregaçada, a atenção presa nos documentos espalhados pela mesa. Ele ergueu os olhos assim que sentiu o movimento dela.— Vai mesmo? — perguntou, sem rodeios. A voz não era dura, mas havia um traço de cautela que Cecília conhecia bem.— É o meu dia de folga — respondeu, tentando soar neutra.— Eu sei. Só estou… me certificando de que você tem certeza.Ela deu um meio sorriso, mais para si mesma do que para ele.— Se eu não for,
O sol da manhã filtrava-se pelas cortinas, lançando linhas douradas sobre a mesa da cozinha. O aroma do café fresco se espalhava, espesso, como se quisesse preencher cada espaço vazio entre Cecília e Enrico. Mas o silêncio ainda reinava, e era pesado.Cecília mexia lentamente a colher na xícara, observando o líquido formar redemoinhos preguiçosos. Por fora, calma. Por dentro, um turbilhão. Ela sabia que ele viria falar. Sabia que o nome da irmã estaria na conversa. E sabia que, quando o assunto surgisse, haveria atrito.Do quarto, o som ritmado dele se arrumando parecia mais alto do que de costume. O deslizar da gravata, o estalar do cinto, o ajuste do colarinho. Cada som era como a contagem regressiva para um confronto.Ele apareceu no batente, pasta de trabalho numa mão, a gravata perfeitamente alinhada. Os olhos dele pousaram nela por alguns segundos, medindo o clima.— Posso falar um minuto? — perguntou, a voz baixa, como quem teme romper algo frágil.Cecília girou a colher mais u
Os últimos dias tinham sido uma mistura estranha de calmaria e desconforto para Cecília. Apesar de já estar acostumada a passar algumas noites na casa de Enrico, agora era diferente. Não era apenas uma visita ou um fim de semana prolongado — ela estava morando ali, ainda que de forma temporária. O ambiente já lhe era familiar, cada canto carregava lembranças recentes, mas a sensação era outra.Havia algo na presença dele, na forma como a casa parecia envolvê-la, que despertava uma segurança nova, quase estranha. Cecília se sentia mais protegida ali do que no próprio lar, embora não estivesse pronta para admitir isso, nem para si mesma. Mas, aos poucos, estava descobrindo como era se deitar sem ter que trancar a porta do quarto duas vezes. Enrico parecia perceber isso — e, de alguma forma, aquela sensação de segurança também o deixava mais leve.Ele tinha se tornado uma presença constante, não só na casa, mas na rotina dela.Ainda discutiam por besteiras — sobre ela se recusar a aceita
No dia seguinte, enquanto arrumava o bar para abrir, Júlia percebeu que a amiga estava mais pensativa que o normal.— Tá tudo bem? — perguntou, puxando uma cadeira para se sentar perto dela.— Sei lá, Júlia… — Cecília suspirou, passando a mão no cabelo. — Ontem, depois que ele me levou pra casa, Enrico sugeriu que eu fosse morar com ele.Júlia abriu os olhos, surpresa.— Sério? E o que você falou?— Que não ia rolar. Que é cedo demais, que eu não quero perder minha independência. Ele falou que é só temporário, até eu encontrar um lugar seguro, mas… não sei.— Entendo você — disse Júlia, sincera. — Eu também não ficaria confortável de entrar na casa dele assim, de repente. Mas do lado dele, faz sentido, né? Ele só quer garantir que você esteja segura.Cecília assentiu, pensativa.— É, ele quer proteger, eu sei. Mas às vezes parece que a proteção vira uma prisão. Não quero que ele pense que eu sou uma mulher frágil que precisa de salvador.Júlia sorriu, tentando aliviar o clima.— Talve
A luz suave da manhã entrava pelas frestas da cortina, espalhando um brilho dourado pelo quarto. Enrico já estava de pé, a toalha pendurada nos ombros, enquanto ajeitava a gravata em frente ao espelho. Cecília ainda estava na cama, o cabelo bagunçado, a pele quente contra o lençol, observando-o em silêncio.— Você acorda cedo demais — murmurou ela, a voz rouca de sono.Ele virou-se, deixando escapar um meio sorriso. — Ou você que acorda tarde demais.Cecília se espreguiçou preguiçosamente, deixando o lençol escorregar até a altura da cintura. O olhar de Enrico caiu, inevitavelmente, sobre a curva de seu corpo, e ele desviou os olhos com esforço.— Você está me tentando — ele disse, a voz baixa e carregada de intenção.Ela ergueu uma sobrancelha. — Só estou deitada aqui.— É… mas o problema é como você está deitada aí.Enrico largou a gravata sobre a cômoda e se aproximou, apoiando um joelho na cama. Com uma das mãos, afastou uma mecha do rosto dela, e Cecília sentiu o calor dele se es
Último capítulo