O bar já havia esvaziado. As últimas cadeiras empilhadas, as luzes baixas mergulhavam o ambiente numa penumbra preguiçosa. Cecília esfregava o pano de prato no balcão pela terceira vez — não por limpeza, mas por inquietação. Os pés doíam, a cabeça latejava. Quase cinco da manhã.
— Três noites seguidas, amiga. Isso não pode ser coincidência — comentou Júlia, outra garçonete, apontando discretamente para o lado de fora.
E lá estava ele, Enrico. Encostado num carro preto, blazer impecável, mãos nos bolsos e aquele sorriso discreto e provocante que já mexia mais com Cecília do que ela gostaria de admitir.
— Não sei qual é o problema desse cara, Júlia, mas hoje eu vou acabar com essa arrogância dele — disse, largando o pano de lado com firmeza.
— Tá na cara que ele te quer, e ele não parece ser do tipo que desiste fácil...
— Mas comigo, ele vai desistir. — jogou a mochila nas costas e marchou até a porta.
Quando abriu, o ar úmido da madrugada colou em sua pele. O cheiro da chuva iminente misturava-se ao calor abafado da rua. Ela o avistou ali, parado sob a luz pálida do poste, o olhar cravado nela com um tipo de intensidade que quase doía. Aquela presença a irritava, mas também... despertava algo que ela não sabia controlar.
— Vai me dizer que isso é coincidência? — cruzou os braços, parando na calçada.
— Coincidência é subestimar o acaso. Digamos que... eu queria falar com você de novo.
— Tem gente que manda mensagem.
— E tem gente que prefere fazer isso pessoalmente.
Ela bufou e desceu os degraus.
— Acha que aparecendo aqui vai me impressionar?
— Acho que você está se esforçando demais pra parecer indiferente.
Ela apertou os lábios, odiando o quanto ele a deixava à flor da pele. O olhar dele era um convite mudo, e cada vez que ele falava com aquela voz baixa e firme, seu corpo respondia com uma antecipação que ela fingia não reconhecer.
— Você continua achando que me entende — ela retrucou.
— Não, mas... quero entender.
Cecília passou por ele, o perfume dele atingindo-a de leve, algo amadeirado e quente. Seus sentidos se acenderam, malditos instintos.
Caminhou até o ponto de ônibus da esquina com passos decididos. Sentia os olhos dele nas suas costas como um toque. Enrico a seguiu em silêncio.
— Vai mesmo esperar o ônibus nesse tempo?
— Vai mesmo continuar me perseguindo?
— Só se você achar perigoso. — A pausa que ele fez ao dizer isso foi quase imperceptível, mas carregada.
— Já enfrentei coisa pior do que homem de terno tentando bancar o herói.
— Ainda assim... parece que gosta da minha presença.
Ela lançou um olhar de canto, desafiador.
— Parece que você gosta de se iludir, não vou entrar no seu carro.
— Ainda, mas estou com a sensação de que hoje é meu dia de sorte.
Cecília ficou em pé, braços cruzados. Enrico parou perto, o suficiente para que ela sentisse o calor do corpo dele mesmo com a distância entre eles. A proximidade era absurda, incômoda, quase íntima.
O celular marcava atraso do ônibus. Quando a primeira gota caiu, Cecília revirou os olhos e em segundos, o céu desabou. A marquise não segurava nada. Ela cruzou os braços, os ombros tremendo, o cabelo ruivo grudando na testa e no pescoço. O tecido da roupa colava à pele, revelando contornos que ela preferia esconder. Sentia os mamilos enrijecidos pelo frio e... algo mais.
Ele abriu a porta do carro, sem dizer nada.
Ela olhou de esguelha. O interior iluminado pelo painel parecia um oásis. Enrico não insistia, apenas esperava. E aquele maldito olhar calmo e atento... fazia o corpo dela reagir com raiva e curiosidade.
— Vai ficar aí me encarando ou vai aceitar a carona antes de pegar uma pneumonia?
— Está tentando me vencer pelo cansaço?
— Não, pela lógica. Você está molhada, o ônibus está atrasado, e eu sou sua única alternativa quente e seca.
— Se você disser “quente” de novo olhando desse jeito, vou te dar um tapa.
— Promessa ou ameaça?
Ela o encarou por um segundo a mais do que deveria. O peito subia e descia com mais força. Podia sentir o próprio coração pulsando entre as pernas, como se o corpo dela estivesse enlouquecendo contra a razão.Respirou fundo, como quem engole o orgulho.
— Direto para minha casa e nada de cantadas baratas.
— Eu sou um homem de gosto caro — ele disse com um meio sorriso. — Só as mais caras.
— Pretensioso.
— Independente.
Ela bufou, mas entrou.
O cheiro de couro do carro misturado ao cheiro dele a envolveu. Quase íntimo, quase proibido. Ele deu a volta e entrou calmamente. Ligou o motor e um jazz suave preencheu o silêncio. Aquilo a surpreendeu — ele não combinava com leveza, mas... talvez ela estivesse errada.
— Aqui, veste isso. — Ele passou o blazer do banco de trás. O calor do tecido era quase como o calor do toque dele. E o cheiro... Era dele.
Ela vestiu devagar, os dedos tocando o colarinho, tentando não inalar tão fundo — mas não adiantava, ele a invadia por todos os sentidos.
— Você sempre anda com blazer extra?
— Nunca se sabe quando alguém vai precisar.
— Claro. Muito conveniente. — Seu tom era irônico, mas por dentro... ela estava derretendo. Literalmente.
— Jazz? — ela pergunta após alguns segundos em silêncio — Esperava alguma música pomposa de gente rica.
— Surpreendente, não?
— Nem tanto, você parece querer esconder mais do que mostra.
Ele lançou um olhar de canto, curioso.
— E o que você acha que eu escondo?
— Ainda não decidi. Mas tem algo ali... nos silêncios, nos olhares. Parece que você quer parecer inofensivo, mas na verdade... você sabe exatamente o que está fazendo.
Enrico não respondeu. O som da chuva contra o para-brisa era a trilha perfeita para aquele silêncio.
Ela o olhou de lado. A luz da rua desenhava sombras no rosto dele, nos lábios ligeiramente entreabertos. Ela teve um pensamento que odiou ter: como seria beijá-lo ali? Naquela atmosfera quente, com a chuva em volta, o corpo dela úmido e sensível?
— Você é sempre tão direta? — ele perguntou.
— Sempre, falsidade me dá alergia
— Elogios?
— Só aceito os sinceros.
— Então posso dizer que seu cabelo ruivo grudado no seu pescoço molhado... é a visão mais perigosa que eu já tive?
Ela engoliu em seco. Quis responder, mas o impacto das palavras dele ricocheteou direto entre suas coxas. Seu corpo respondeu antes da mente, um calor latejante crescendo dentro dela.
— E posso dizer que essa sua voz grave quase me convenceu?
— Quase?
— Eu ainda tenho um pingo de juízo.
Ele riu, genuinamente.
— Eu gosto de você, Cecília.
— Você não me conhece.
— Justamente por isso.
Mais um silêncio, mais tensão. Ela olhou pela janela, como se aquilo fosse um erro. Como se não soubesse ao certo por que estava ali.
— Você está me desafiando, Enrico?
— Estou tentando entender por que você me atrai tanto.
— Talvez porque eu não caia no seu jogo.
— Ou talvez porque você jogue melhor do que eu.
Eles se encararam quando o carro parou no sinal. O desejo era quase palpável, denso. Ela sentia cada parte do corpo dele, mesmo sem toque, a tensão sexual entre eles era como uma linha elétrica prestes a estourar.
Enrico respirou fundo. Os olhos desceram por um segundo pelo colo dela, depois voltaram para os olhos. Ele não precisava tocar, já estava em toda parte.
Ela esfregou as mãos tentando se aquecer — mas não era frio. Era excitação, o corpo implorando por algo que a razão proibia.
— Vou ligar o aquecedor — ele disse.
— Obrigada.
Alguns minutos depois, o carro parou.
— Aqui está bom — disse, já soltando o cinto.
— Vai me convidar pra subir?
— Vai continuar sendo previsível?
— Um dia você vai dizer sim.
— A dúvida disso é o que te mantém voltando?
— Dúvida... e desejo.
— Estou brincando. — ele ergueu as mãos, rendido. — Por enquanto.
Ela hesitou na maçaneta. Sentia o corpo inteiro em estado de alerta, ele a desarmava sem tocar, sem pedir. E isso a enfraquecia mais do que qualquer gesto explícito.
— Obrigada pela carona. Mas da próxima vez, traga um guarda-chuva. Vai ser mais útil do que o seu charme.
— O charme é pra quando chover por dentro.
Ela parou por meio segundo. Não sorriu, mas também não respondeu.
— Boa noite Enrico.
— Boa madrugada Cecília.
Ela saiu do carro, sem olhar pra trás, mas cada passo parecia pesado, como se a tensão entre eles tivesse se agarrado à pele. Enrico ficou ali, observando a porta da casa até ela fechar.
E dentro do carro, sozinho, soube com uma certeza silenciosa: aquela mulher era a única que ele não conseguia prever — e justamente por isso, era a única que ele queria.