Incêndio silêncioso

O bar ainda estava fechado. Era raro Cecília chegar tão cedo, mas ela precisava de silêncio — ou algo que se parecesse com isso. Colocou a mochila embaixo do balcão, amarrou o avental na cintura e começou a alinhar copos com mais força do que o necessário.

Desde que saíra do prédio de Enrico, o beijo não saía da cabeça dela.

"Foi só um beijo." Era o que ela tentava repetir, como quem tenta apagar um incêndio com um copo d’água. Mas não era só isso, não podia ser. O toque dele ainda estava em seus lábios, como se o corpo tivesse memorizado cada detalhe: o calor, a firmeza, o autocontrole que ele quase perdera.

E o que mais a irritava… era que ela gostou.

— Merda — murmurou, derrubando um copo que caiu no chão e espatifou-se em mil pedaços.

Cecília se agachou para limpar os cacos. As mãos tremiam um pouco, e ela odiava aquilo. Odiava estar tão vulnerável, tão à flor da pele. O beijo havia deixado uma marca, não física. Pior: emocional. E ela sabia que qualquer envolvimento com alguém como Enrico Moretti era como caminhar numa corda bamba — com salto alto e vendada.

Porque ele era tudo que ela não queria. Rico, controlador, acostumado a dominar o ambiente com a presença e a voz baixa. Um homem que atraía como um abismo. E, ainda assim… ela não conseguia se afastar.

Enquanto jogava os cacos na lixeira, lembrou do momento exato em que ele se aproximou. Do jeito como a olhou, como quem pedia permissão sem deixar de ser intenso. Ele não invadira seu espaço — ele o conquistou. E isso a desarmou mais do que qualquer cantada barata teria feito.

Sentia-se estúpida por ter permitido, mais ainda por querer de novo.

Do outro lado da cidade, Enrico passava o fim do dia olhando para a tela do computador sem conseguir ler uma única linha. O beijo com Cecília o desconcentrava de um jeito que nenhuma mulher conseguira antes. Já estivera com mulheres bonitas, já beijara por impulso, já transou sem pensar duas vezes. Mas com ela era diferente.

Era como se o gesto, simples e lento, tivesse aberto alguma porta dentro dele.

Não parava de pensar nos olhos dela — nos segundos antes de ceder. A dúvida, o desafio, e depois... a entrega. Aquilo mexia com ele mais do que gostaria de admitir.

Tentou racionalizar. Pensar em estratégias, em formas de manter o controle. Mas já sabia: com Cecília, controle era um conceito ilusório, e o mais perigoso era que ele não queria resistir.

Lembrava do gosto dos lábios dela, do perfume que ainda sentia preso na gola da camisa. E, principalmente, da forma como ela se afastou: não por arrependimento, mas como quem precisava de ar. Como se aquele beijo tivesse derrubado as barreiras de ambos.

Enrico se recostou na cadeira, os dedos tamborilando o braço de couro. Tentava decidir se a procuraria de novo, mas, no fundo, já sabia a resposta. Ela o desafiava — e ele não era o tipo que recuava diante de um desafio.

À noite, Cecília caminhava de volta para casa com os fones nos ouvidos, tentando se distrair com música. Mas nenhuma letra fazia sentido, nenhuma batida abafava a confusão em sua cabeça.

Ela não era o tipo que se deixava levar facilmente. Vira de perto como homens bonitos e poderosos podiam ser cruéis. Já amara demais, já se doou além do que deveria. E jurou que nunca mais.

Mas Enrico... ele não implorava, não prometia. Só olhava, tocava e deixava a escolha nas mãos dela. E isso era mais perigoso. Porque, no fundo, ele a fazia querer escolher.

Quando chegou ao apartamento, jogou as chaves no balcão da cozinha e se serviu de uma dose de conhaque barato que sobrou da última festa dos colegas do bar. Sentou-se no sofá velho, cruzou as pernas e encarou o teto.

Por que diabos ele mexia tanto com ela?

Lembrou da sensação do sofá de couro frio sob suas coxas, o vestido subindo um pouco, o olhar dele percorrendo lentamente suas pernas antes de desviar. Aquilo a deixara mais quente do que queria admitir. E quando os lábios dele tocaram os seus… algo desabou. Como se uma muralha tivesse rachado por dentro. Ela não sabia se era desejo ou carência, talvez os dois.

E o que mais a assustava… era que com ele, mesmo o desejo parecia perigoso. Porque vinha carregado de algo mais. Um olhar que dizia “eu te vejo”, mesmo quando ela não queria ser vista.

Na manhã seguinte, ela acordou com uma notificação no celular.

Mensagem de número desconhecido:

“Você ainda está com gosto de café na boca? Porque eu estou.”

Ela travou o celular. O coração disparou, sabia quem era. Ninguém mais teria coragem — ou ousadia — de mandar uma mensagem assim.

Respirou fundo e depois digitou:

“Cuidado, esse tipo de brincadeira vicia.”

A resposta veio segundos depois.

“Eu já estou viciado.”

Cecília jogou o celular no sofá e passou as mãos pelos cabelos, impaciente consigo mesma. Era cedo demais para isso, mas era tarde para voltar atrás.

Durante o expediente, enquanto secava copos, Júlia a encarou atrás do balcão.

— Você tá com a cabeça longe — comentou. — Aconteceu alguma coisa?

Cecília negou com a cabeça, mas não disse nada. O silêncio durou segundos demais.

— Ai, meu Deus — Júlia abriu um sorriso. — É homem?

— Não é nada.

— Então é coisa séria.

Cecília soltou uma risada curta, mas os olhos entregavam outra coisa. Júlia não insistiu de imediato. Só observou. Depois se aproximou, pegando um pano para secar as mãos, e falou com mais calma:

— Não vai me dizer que é o cara da outra noite? Aquele que apareceu do nada e te salvou? Bonito demais pra ser só coincidência?

Cecília olhou para ela por um instante. Sabia que não adiantava mentir, não pra Júlia.

— Tá, é ele. Mas não foi nada demais. Só... um beijo.

— Hmmm — Júlia arqueou a sobrancelha. — Um beijo que te deixou assim, perdida no meio do expediente?

— Foi só um momento, e eu tô tentando esquecer.

— Mas ele não tá, né?

Cecília hesitou.

— Mandou mensagem hoje de manhã.

— Ai, Cecília… — Júlia fez uma careta dramática. — Me diz que você não vai cair nessa.

— Não vou, eu sei bem o que ele é.

— E o que ele é?

— Complicado, rico, arrogante, dominador. O tipo de homem que acha que pode comprar o mundo.

— E mesmo assim mexe com você.

— Porque ele não tenta me comprar. Só me olha como se quisesse... me decifrar.

Júlia ficou em silêncio por um segundo.

— Às vezes, Cecília, é mais perigoso quando eles não prometem nada. Porque aí a gente se pega esperando o que nunca foi dito.

Cecília respirou fundo, olhando para o pano molhado nas mãos.

— Eu não quero me envolver.

— Eu sei. Mas às vezes a gente não escolhe o que desperta dentro da gente. E pelo visto, esse homem já virou um incêndio.

— E eu tô tentando apagar com um balde furado — respondeu, amargando um sorriso.

— Só... não deixa ele te queimar, tá? Tem uns caras que mexem com a gente do jeito errado.

Cecília assentiu. Mas o problema era que Enrico não mexia com ela do jeito errado, mexia do jeito certo. Mas do jeito mais perigoso de todos, e no fundo uma parte dela já estava em chamas.

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