Olhares que incomodam

O bar “Las Tardes” estava mais cheio, com o movimento um pouco maior que o habitual de uma sexta-feira. A música alta, mais o burburinho das vozes, copos tilintando e risadas altas criavam uma sinfonia caótica que Cecília conhecia bem.

Ela se movia com agilidade entre as mesas, equilibrando uma bandeja com garrafas e copos como quem dança sob pressão. O calor, o barulho, o cheiro de álcool e perfume barato… tudo fazia parte do ambiente. Parte da rotina.

— Querida, traz mais uma dessas? — disse um homem, colocando a mão na cintura dela como se tivesse esse direito.

Ela se desvencilhou com um olhar afiado.

— Quer me pedir alguma coisa, fala com a boca, a mão fica quieta.

— Que isso princesa, não precisa ficar brava. Eu só estava brincando.

— Eu não tô brincando. Quer bebida, espera na tua vez.

Cecília se afastou, os passos duros, o maxilar travado. Alguns clientes achavam que o avental dava licença pra desrespeito. Mas ela sabia exatamente onde traçar a linha, sempre soube.

Voltou ao balcão, pegou mais uma rodada e voltou às mesas. Foi quando percebeu a figura parada no canto do bar, de blazer escuro, mãos nos bolsos e olhar fixo nela.

Enrico.

Ele não estava ali por acaso, ninguém daquele tipo entrava num bar como o “Las Tardes” por acidente. E ela sentia cada centímetro do olhar dele queimando sua nuca.

Enrico não sabia exatamente o que o atraía nela — ou talvez soubesse bem demais.

Ela não era o tipo de mulher que se encaixava no mundo dele, e ainda assim, ocupava espaço em seus pensamentos com uma intensidade que o irritava. Cecília tinha uma força bruta, um brilho desconfortável. Não era refinada, não era sutil. Era real demais, forte demais. E era exatamente isso que o deixava inquieto.

Dos fundos do bar, ele a observava se mover entre as mesas, rápida, precisa, como se dançasse com a própria raiva. O cabelo ruivo preso num coque malfeito deixava fios soltos caindo pela nuca, e Enrico se pegou imaginando como seria enroscar os dedos ali, puxar devagar até ouvir a respiração dela falhar.

Havia algo de hipnotizante naquele vermelho. Não era só uma cor. Era um aviso. Um incêndio, e ele queria queimar.

Cada vez que ela se abaixava para alcançar uma garrafa, cada vez que rebatia um comentário com ironia, ele sentia o desejo latejar como uma corrente elétrica sob a pele. Não era só atração, era uma necessidade desconcertante, primitiva.

O jeito como ela passava a língua pelos lábios distraidamente, como se nem percebesse o que fazia com ele... aquilo o deixava tenso, duro. Era tortura silenciosa — e ela nem precisava se esforçar.

Mas não era apenas o corpo dela que o mantinha ali, parado feito um idiota, ignorando a lógica e o bom senso. Era o fato de que, mesmo naquele ambiente sufocante, mesmo sendo cercada por homens que a subestimavam, ela não baixava a guarda. Não se fazia menor, não sorria por obrigação.

Ela lutava por cada espaço e era linda nisso.

Enrico sabia que deveria sair dali. Sabia que estava se afundando num território perigoso. Mas não conseguia. Porque cada vez que pensava em ir embora, lembrava do som da voz dela — seca, afiada, real. Do jeito como ela olhava pra ele como se pudesse vê-lo por dentro. . E também do cheiro dela, que ele ainda sentia nos sonhos: álcool barato misturado com pele quente.

Um problema. É isso que ela era.

Mas, Deus... que problema bom de ter.

E naquele momento, mais do que tudo, ele queria atravessar aquela multidão, puxá-la pela cintura, colar o corpo dela no dele e calar aquela boca afiada com um beijo longo e impiedoso — só pra ver se ela resistia. Só pra ver até onde ia aquela pose dura quando misturada com desejo.

Porque ele via nos olhos dela. Cecília queria tanto quanto ele. Só não sabia — ou fingia não saber.

Mas ele sabia.

Foi só quando ela voltou à mesa do cliente inconveniente que tudo degringolou. O homem, já meio bêbado, puxou o pano da bandeja, derrubando dois copos. A cerveja escorreu pela blusa de Cecília.

— Ah, agora sim ficou ainda melhor... — disse ele, rindo, os olhos cravados em seu decote molhado.

Cecília largou a bandeja sobre a mesa com força. Estava prestes a explodir quando uma sombra se aproximou.

— Eu sugiro que você peça desculpas, agora. — disse Enrico, firme, baixo.

O homem virou-se, confuso.

— Quem é você?

— Alguém que não gosta de ver mulher sendo tratada como distração de bêbado.

— Vai me bater por causa de uma garçonete?

Enrico inclinou-se levemente, e seu sorriso não tinha humor algum.

— Não. Mas posso garantir que você vai sair daqui com vergonha suficiente pra nunca mais abrir a boca perto de uma mulher de novo.

Cecília cruzou os braços. Estava furiosa, molhada e agora envolvida numa cena ainda mais constrangedora.

— Enrico... — disse, baixo, em tom de aviso.

O cliente, talvez reconhecendo o terno caro ou a tensão no ar, resmungou algo e recuou. Saiu da mesa cambaleando, levando consigo a dignidade pela metade.

— Você tinha que aparecer de novo? — perguntou Cecília, limpando a blusa com o pano do avental.

— Parecia que você precisava de um socorro. Eu sou bom nisso, lembra?

— Eu estava lidando com isso, como sempre.

— Eu sei. Mas gosto de ser prestativo.

Ela estreitou os olhos.

— E irritante, não esquece essa parte.

Ele sorriu de leve. Um sorriso que ela odiava por ser tão... calmo e irritante.

— Pode me xingar à vontade. Ainda assim, vou esperar o seu turno terminar.

— Pra quê?

— Pra te oferecer uma carona, outra vez.

— Já sabe a resposta.

— Sei. Mas gosto de ver você dizer “não” como se estivesse quase dizendo “sim”.

Ela bufou, virou as costas e seguiu seu turno. Por duas horas, ele ficou no canto, bebendo água com gás, observando. Não a abordou de novo. Apenas... estava ali, como uma lembrança incômoda, ou um pressentimento.

Quando finalmente pendurou o avental, ele estava de pé, já do lado de fora, encostado num carro preto de vidro escuro.

— Teimoso — ela disse, ao se aproximar.

— Você não imagina.

— Não vou aceitar sua carona.

— Eu sei.

— Então por que veio?

— Porque você não vai admitir, mas sentiu alívio quando me viu ali, mais cedo. E porque alguém tem que garantir que você chegue no ponto de ônibus sem outro idiota no caminho.

Ela ficou em silêncio por um instante. Depois assentiu com a cabeça e começou a andar, e ele a seguiu.

— Você devia ter ido embora — disse ela, sem olhá-lo.

— Eu sei, mas não consegui.

— Por quê?

— Ainda não descobri, mas tem algo em você que me tira o sono. E não é só o sarcasmo.

Ela parou de andar, virando-se de repente.

— E você acha que isso me lisonjeia?

— Acho que isso te incomoda tanto quanto me incomoda gostar disso.

Ela não respondeu. Apenas revirou os olhos e seguiu em frente.

Chegaram ao ponto. O banco de concreto estava vazio, a rua deserta e o vento da madrugada mais uma vez cortava a pele.

— Você sempre trabalha nesse bar?

— Quando não estou chutando homens inconvenientes na rua, sim.

— Eu entendo, seu sarcasmo é uma forma de defesa.

— E o seu terno caro é o quê? Uma armadura?

— Um disfarce. Às vezes, é útil.

Ela sorriu. Pouco, quase imperceptível.

O ônibus apareceu ao longe.

— Não vai insistir de novo?

— Não hoje, mas uma hora você aceita.

— Sonha com isso?

— Não, eu sei que vai.

Ela bufou, mas não disfarçou o riso.

— Boa noite, Enrico.

— Boa madrugada, Cecília.

Ela entrou no ônibus e ele permaneceu ali, parado, como se a noite ainda não tivesse terminado para ele.

Do banco de trás, ela olhou pela janela e viu a silhueta dele se afastando devagar, mãos nos bolsos, como quem carrega um segredo.

Cecília não entendia ainda o que era aquilo entre eles. Mas já tinha aprendido a reconhecer um problema quando via um.

E Enrico... definitivamente era um problema.

Um que ela talvez quisesse ter.

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