Um vilarejo esquecido. Uma casa que sussurra memórias. Dois corações marcados por feridas que o tempo não apagou. Após anos presa em um relacionamento abusivo, Eleanor Hartwood encontra na herança de sua enigmática tia uma fuga — e talvez um recomeço. Mas a velha casa em Yorkshire guarda mais do que silêncio e poeira: ela abriga segredos, vestígios de vidas interrompidas e vozes que insistem em ser ouvidas. Lá, Eleanor cruza o caminho de Theo Ravenscroft — um homem tão despedaçado quanto ela, envolto em sombras, lendas e um passado que ainda sangra. Unidos por perdas invisíveis e verdades esquecidas, eles descobrem que o amor pode ser o fio entre o trauma e a redenção. Mas nem todo silêncio é vazio. E algumas verdades… preferem não ser desenterradas.
Leer másO vento soprava com força pelas colinas quando Eleanor estacionou o carro diante do portão enferrujado. A longa viagem desde Londres parecia ter durado uma vida, e agora que estava ali, diante da casa, sentia o peso de todos os quilômetros percorridos se acumulando nos ombros. A propriedade se erguia à sua frente como uma lembrança esquecida — envelhecida, silente, imponente.
Ela desligou o motor e permaneceu dentro do carro por alguns segundos, observando a estrutura da casa com um misto de reverência e temor. O tempo não fora gentil com ela. As molduras brancas das janelas estavam lascadas, a madeira da varanda começava a apodrecer nos cantos e o jardim — outrora florido e vibrante — agora era uma colcha de ervas daninhas, galhos secos e folhas mortas. Mesmo assim, havia algo ali... algo que a chamava de volta. Um laço invisível, quase ancestral, que se esticava desde sua infância até aquele exato momento.
Respirou fundo. Sentiu o ar frio de Yorkshire entrar pelos pulmões como um soco. Havia esquecido aquele cheiro — de terra molhada, de vento úmido, de coisas antigas. E, sutilmente, quase como um sussurro no ar, o perfume de lavanda que sempre esteve ligado à memória da tia Vivienne.
Desceu do carro com um arrepio. O casaco de lã não era suficiente para conter o frio que parecia vir de dentro dela. Carregava uma mala pequena e uma bolsa de couro com o essencial. O resto da bagagem viria depois — se é que ficaria tempo suficiente para precisar de mais.
O portão rangeu ao ser empurrado, e o som cortou o silêncio do vilarejo como uma lâmina. Ela caminhou pelo jardim com passos hesitantes, desviando de raízes salientes e galhos partidos. Parou diante da porta da frente e retirou do bolso o molho de chaves entregue pelo advogado, junto com o envelope pardo contendo os documentos da herança da casa de verão — e uma carta da tia, com orientações sobre a casa.
A chave girou na fechadura com resistência, como se a casa resistisse à entrada. Mas, por fim, cedeu. Quando a porta se abriu, um cheiro denso escapou: madeira antiga, poeira... e lavanda. Eleanor ficou parada na soleira, como se atravessar aquela porta fosse cruzar um limiar. Sabia que a casa estava vazia, mas sentia — com uma certeza que não sabia explicar — que não estava sozinha.
Entrou.
O interior estava mergulhado em sombras. As cortinas pesadas filtravam a pouca luz do fim da tarde, criando formas distorcidas nas paredes. O ar era frio e parado. A eletricidade, como esperado, não funcionava. A casa estava intacta, mas congelada no tempo — como se tivesse prendido a última respiração da tia Vivienne e nunca mais a soltado.
Na sala de estar, tudo permanecia como lembrava. A poltrona com o bordado desbotado diante da lareira, os livros antigos organizados com esmero nas estantes, o relógio de pêndulo marcando três e quinze. Um horário imóvel, suspenso, como se o tempo ali dentro obedecesse a outras leis.
Sentou-se com cuidado no sofá. O estofado rangeu sob seu peso. Ela passou as mãos nos joelhos, olhando ao redor com olhos marejados. O silêncio era profundo, mas não absoluto. A casa falava. Nos estalos da madeira, no murmúrio do vento pelas janelas mal vedadas, no ranger leve da escada ao fundo. A casa estava viva — e esperando.
— Estou aqui — disse baixinho, como quem responde a um chamado.
Lá fora, o céu começava a escurecer. A primeira garoa descia em véus finos sobre o campo, cobrindo tudo com um manto melancólico.
E, à distância, sob a sombra das árvores retorcidas, um homem observava a casa. Permaneceu parado por alguns segundos, os olhos fixos na janela do segundo andar. Então, sem fazer ruído, virou-se e desapareceu colina abaixo.
O outono chegou a Yorkshire com dedos dourados, tingindo as copas das árvores de cobre, âmbar e ferrugem. As folhas dançavam ao vento como se celebrassem o fim de uma estação de dor e o início de algo novo — não perfeito, mas possível.A Casa das Hartwood ainda rangia em suas madeiras antigas, mas agora o som era familiar. Vivo. Os corredores não ecoavam mais segredos, e sim passos. Risos. Diálogos simples, cotidianos, entre duas pessoas que haviam conhecido o abismo — e escolheram permanecer uma ao lado da outra.Eleanor cruzava o jardim com uma cesta nos braços, colhendo maçãs do pomar esquecido. As árvores, mesmo envelhecidas, ainda frutificavam. Havia algo simbólico nisso, pensava ela — algo sobre a vida persistir, mesmo depois da tempestade. Sobre raízes que não se veem, mas sustentam tudo o que floresce.Theo apareceu na porta dos fundos, os cabelos um pouco mais longos e o olhar sereno.— Vai fazer torta? — perguntou, erguendo uma sobrancelha.— Só se você prometer não esquecer
O céu parecia respirar, aliviado, como se compartilhasse com eles o fardo que lentamente começava a se dissipar. As nuvens carregadas dos últimos dias haviam se desfeito, revelando um azul suave, límpido, como uma promessa silenciosa de que algo, enfim, estava mudando.A Casa das Hartwood permanecia ali — firme, antiga, mas com uma nova energia correndo por seus cômodos. Eleanor atravessava a cozinha com uma xícara fumegante de chá entre as mãos, os passos descalços deslizando pelo assoalho de madeira. Theo estava no jardim dos fundos, olhando para as colinas distantes, onde o verde tocava o céu. Ele parecia mais leve — os ombros menos tensos, o olhar menos sombrio.Eleanor parou no batente da porta e o observou por um instante, em silêncio.— Você parece outro — comentou, com um sorriso contido.Theo se virou, os olhos encontrando os dela. Havia uma tranquilidade nova ali, algo que não existia nas semanas em que tudo parecia ruir.— Acho que pela primeira vez em anos... eu respiro se
A manhã seguinte chegou com um tipo raro de luz: suave, dourada, quase reverente. Yorkshire parecia mais silenciosa do que nunca, como se o mundo ao redor também aguardasse, em respeito, os desdobramentos do que havia sido reencontrado. Dentro da casa dos Holloway, o tempo parecia desacelerar — não por inércia, mas por necessidade.Theo estava encostado no batente da porta, uma xícara de café frio entre os dedos. Olhava para o jardim malcuidado com um ar distante, como se tentasse assimilar não apenas o reencontro com James, mas também a própria dimensão do passado que os unia. Uma história fraturada, agora com partes soltas finalmente se encaixando — mesmo que com cicatrizes.— Você sempre acorda tão cedo? — perguntou James, surgindo atrás dele com passos leves.Theo esboçou um meio sorriso, sem virar o rosto.— Desde que perdi a capacidade de dormir tranquilamente. — Pausa. — Tem dias em que me pergunto se algum de nós algum dia realmente dormiu em paz.James se aproximou, encostand
A tarde se derramava sobre os campos de Yorkshire com um silêncio que parecia conter séculos. No interior da pequena casa dos Holloway, o tempo parecia ter hesitado. James — ou o menino que um dia fora Jamie Ravenscroft — sentava-se na beira de uma poltrona antiga, os dedos trêmulos em volta de uma caneca de chá esquecida, ainda fumegando.Theo permanecia de pé. Não por inquietude, mas por necessidade de manter o controle. Eleanor, por sua vez, estava sentada à mesa, o caderno de anotações fechado à sua frente. O que quer que fosse dito ali, já era suficiente para preencher os espaços vazios da história. Eles só precisavam ouvir. E entender.— Eu não lembro de tudo — James quebrou o silêncio, por fim. Sua voz era baixa, mas segura. — Era muito pequeno. Três anos, talvez? Um pouco mais. Mas lembro do cheiro da pele dela… e da forma como ela me segurava, como se o mundo todo estivesse desabando ao redor e eu fosse a última coisa que ela podia proteger.Theo apertou os olhos, desviando o
O céu sobre Yorkshire amanheceu cinzento, ameaçando tempestade. O tipo de manhã em que os ventos carregam ecos do passado, e tudo parece mais próximo da verdade do que deveria.Theo estava parado à janela do antigo escritório, observando as folhas que dançavam no jardim. Eleanor entrou em silêncio, trazendo duas canecas de café fumegante. Ele aceitou a dele com um leve aceno de cabeça.— Dormiu? — ela perguntou.Ele deu de ombros, os olhos ainda fixos no mundo lá fora.— Difícil dormir quando você descobre que pode ter um irmão mais velho... que foi apagado da existência como um erro a ser escondido.Eleanor se aproximou, sentando-se no sofá. — Não foi sua culpa. Nem da sua mãe. Amélia foi usada, silenciada, traída pelas pessoas que deviam protegê-la. E James… ele foi descartado como uma nota de rodapé na vida de alguém poderoso demais para se importar.Theo assentiu devagar.— Se ele souber quem é… se ele se lembra… deve nos odiar.— Talvez. Mas talvez ele também esteja esperando ser
Rupert Wallace abriu a porta com expressão tensa, como se pressentisse que as peças finais do quebra-cabeça estavam prestes a se encaixar — para o bem ou para o mal.— Entrem. Acho que está na hora de contarmos tudo o que sabemos.A sala estava como sempre: impregnada do cheiro de papel antigo e da umidade das estantes abarrotadas. Mas havia algo diferente no ar — um silêncio suspenso, como o momento que antecede uma tempestade.Theo e Eleanor sentaram-se sem dizer palavra. Rupert demorou um pouco, vasculhando uma caixa metálica que trouxe de um armário trancado. As pastas, mais amareladas do que nunca, carregavam datas e códigos internos que apenas ele parecia decifrar.— Durante anos — começou Rupert, sentando-se com esforço —, tentei entender os vazios deixados nos arquivos de Cravenhill. Principalmente os que envolviam Amélia Ravenscroft. Mas, na verdade, tudo começa antes dela.Theo ergueu os olhos, surpreso.— Antes?— Sim. A primeira internação registrada de Amélia não foi em 1
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