Dizem que ele é um tirano. Dizem que ela é uma maldição vestida de nobreza. Mas o império esqueceu o que monstros podem fazer quando se unem. Rudbeckia Eve Linperic viveu toda a sua vida fugindo — não apenas da morte, mas do nome que carrega. Última descendente de uma linhagem extinta pela Coroa e pela Igreja, ela sobrevive como um espectro na floresta, caçada por todos que desejam o poder do sangue que pulsa em suas veias. Alastair Adam Liriafrith é o filho bastardo esquecido do imperador. Exilado como Duque de Varmond, ganhou fama de louco, impiedoso e perigoso. As tentativas de matá-lo se tornaram constantes. Mas ele resiste. Sempre. Quando Rudbeckia percebe que sua solidão é uma sentença de morte, toma uma decisão impensável: procurar o monstro do Norte. O que nasce dessa aliança não é amor — é estratégia. Sobrevivência. E, talvez, a fagulha de algo maior do que qualquer um ousaria acreditar: a reconstrução de um império esquecido.
Ler maisCapítulo 1 – O Trono dos Esquecidos
Rudbeckia não vivia — sobrevivia. Não buscava reconhecimento, nem glória como Marquesa. Não queria reverência, muito menos vingança. Tudo o que desejava era simples… e inalcançável: paz. Mas aos vinte e três anos, nunca conhecera um só dia de tranquilidade. Isolada nas florestas esquecidas de Silinte — um território entregue à sua família não como dom, mas como exílio — ela se mantinha viva entre a névoa e os escombros. O solo era úmido, sempre frio. A chuva caía sem hora, e o céu se recusava a abrir os olhos. A luz do sol raramente tocava aquela terra. Talvez porque até o próprio céu tivesse medo de olhar para os Linperic. Era uma terra sem riso, sem visita, sem voz. E ainda assim… era o único lugar que ela chamava de lar. Silinte a protegia, mas já não a bastava. Toda semana, caçadores surgiam como urubus sobre a carniça. Todos queriam a última Linperic — alguns por medo, outros por ambição. Mas no fim, todos a queriam caída. Morta. Viver sozinha lhe dava silêncio. Mas custava caro. A mansão, outrora orgulhosa, apodrecia lentamente ao seu redor. O chão rangia. O pó sussurrava. Não havia criados. Nem vozes. Nem ninguém que cuidasse dela quando a febre chegava — e ela sempre chegava. A Maldição de Sangue vinha como uma velha conhecida, derrubando-a por dias. Trazia dor nas veias, delírio, e às vezes, o gosto metálico da morte na boca. Mesmo assim, Rudbeckia se agarrava à vida. Sempre. Naquela manhã cinzenta, caminhava sozinha pela floresta. Os pés descalços feridos pelos galhos, os trapos puídos que antes foram vestidos nobres mal cobriam sua pele. O frio do chão lhe mordia os ossos, mas ela não parava. Tinha fome. Uma lebre, um veado, qualquer coisa serviria. Até que, entre os galhos altos, viu um esquilo. Pequeno, mas vivo — e isso bastava. Avançou devagar, sorrateira, sentindo o sangue latejar no calcanhar ferido. Levantou o pé. Dele escorreu uma gota espessa, escarlate. Com a mente treinada, moldou aquilo em um chicote sinuoso — sua única arma de sangue. Desculpe… pensou, antes de estalar o chicote com precisão. O estalo seco quebrou o silêncio da floresta. O esquilo caiu, sem tempo para fugir. Ela se ajoelhou. Agarrou a carcaça ainda quente, e sem cerimônia, rasgou sua pele com os dentes. O sangue tingiu seu queixo. Era amargo e ferroso — mas o bastante para manter-se em pé mais um dia. Não gostava de comer assim. Mas acender uma fogueira chamaria atenção. E além disso, para os Linperic, o sangue era alimento mais eficaz do que o fogo poderia oferecer. Sentiu alívio. Estava viva. E não dormiria com fome. Mas o alívio durou pouco. A poucos metros dali, três homens a observavam em silêncio, escondidos entre os troncos. Horrorizados, viam a jovem de aparência angelical mastigar um esquilo com olhos vazios e boca suja de sangue. Para eles, não havia dúvidas. Aquela era a última criatura da linhagem proibida. Um monstro em corpo de mulher. Um deles ergueu o arco. A flecha voou. Rudbeckia, revigorada pelo sangue recém-consumido, sentiu a vibração do ar e desviou no último segundo — o projétil roçou o ombro, mas cravou-se em seu braço. Ela estremeceu, levando a mão à ferida, o sangue já começando a reagir. Virou-se na direção do disparo, os olhos afiados. Sentia-os. Três presenças. Três corações pulsando. Três caçadores. — Maldição… — murmurou entre dentes, antes de sair correndo, o chicote de sangue se dissolvendo atrás dela. Eles a seguiram. As flechas cruzavam os galhos. Os gritos vinham de trás. Ela corria por entre as árvores como sombra ferida, até ver ao longe o contorno desbotado da mansão. Com os últimos fôlegos, alcançou a porta, escancarou-a e correu escada acima. Trancou-se no quarto. Tateou a estante até encontrar o velho mapa que escondia. Tremendo, o agarrou e foi até a janela. A porta tremia com os punhos que tentavam arrombá-la. Ela não hesitou. Jogou um manto sobre os ombros, subiu na beirada da janela e assobiou. Ao longe, seu cavalo — velho e fiel — respondeu. Pulou. Caiu sobre a sela com a precisão de quem já fugiu muitas vezes. Agarrou-se à crina e cavalgou sem olhar para trás. Silinte ficava para trás. Sua casa de infância. O lugar onde seus pais sangraram. O último pedaço de quem ela foi. Não era mais seguro. Mas em algum lugar do Norte, morava outro monstro. E talvez, com ele, viesse a chance de viver — ou de morrer de pé. O vento cortava-lhe o rosto, misturando-se ao gosto salgado que escorria de seus olhos. Ela não chorava por medo. Chorava por tudo que deixava. Pela solidão que a moldou. Pelos cômodos vazios. Pelo retrato da mãe na lareira coberta de poeira. Pelas promessas feitas às escondidas, entre orações silenciosas. Ela cavalgava com o peito em pedaços — e os olhos marejados. Mas não parava. Partia com lágrimas nos olhos. Mas com a cabeça erguida. ____ Pelas florestas do norte de Velmora, a capital imperial dormia sob um céu opaco. A manhã seguia muda e nublada, como se o próprio sol tivesse desistido de atravessar as nuvens. O vento carregava um frio úmido, e entre os troncos pálidos, as árvores se curvavam como sombras silenciosas. Montada sobre um cavalo pardo e magro, Rudbeckia permanecia imóvel. Seus dedos trêmulos pressionavam o braço ensanguentado, tentando conter um corte profundo. O sangue, espesso e escuro, escorria lentamente entre seus dedos enregelados. Havia magia ali — seu corpo forçava a carne a se fechar, gota por gota, mas cada esforço a drenava mais do que cicatrizava. A cada pulsar da ferida, o mundo ao seu redor parecia mais opaco, mais distante. Um manto rasgado cobria seus ombros, tecido encardido pelo tempo e pela fuga. Debaixo dele, escondia-se o cabelo loiro platinado, quase branco — a marca da maldição que herdara. Seus olhos, de um azul cristalino e intenso, encaravam ao longe a silhueta difusa do castelo imperial, quase engolido pela névoa. Foi ali que tudo começou. Ali estava a raiz do ódio que caíra sobre sua casa como uma praga. O sangue dela ardia ao olhar aquela silhueta. Não por febre, mas por lembrança. Porque enquanto os nobres dormiam em mármore e seda, ela vivia entre cinzas e pedras, sendo caçada como uma fera rara — desejada por seu poder, temida por sua linhagem, amaldiçoada por sua herança. Hoje havia escapado apenas com um corte. Amanhã… talvez não escapasse. Sozinha, não resistiria por muito mais tempo. Ela desviou o olhar. Apertou os calcanhares contra o flanco do cavalo, que reagiu com um passo trôpego. Virou as costas ao castelo — e ao que restava da esperança de reconciliação com o império. Se não podia vencer sozinha, teria que se aliar. Mesmo que fosse a outro monstro. Se a Coroa queria enterrá-la, que lidasse então com os ecos da própria criação: o bastardo do norte, o tirano esquecido, o homem cuja presença fazia os nobres tremerem. Talvez ele fosse louco. Talvez ele fosse pior do que diziam. Mas era forte. E acima de tudo — odiado pelos mesmos que a perseguiam. Rudbeckia puxou o manto sobre os ombros e seguiu. Para Varmond. Para o frio. Para ele. Para o único que talvez entendesse o que era ser caçado… e sobreviver.Capítulo 11 – Convites e ConfrontosEm meio ao mármore branco que cobria todo o palácio imperial de Velmora, no local mais refinado — onde a imperatriz mais gostava de passar seu tempo — Etoile se encontrava sentada à mesa luxuosa, saboreando seu chá da tarde. No Salão das Rosas Brancas, ninguém ousava interrompê-la, especialmente quando aquele momento era compartilhado com o príncipe herdeiro e seu único filho, Adônis Enraven.O ambiente era tão elegante quanto os dois presentes. Ambos altos, mas Adônis a superava. Etoile era uma mulher conservada e vaidosa, sempre impecavelmente vestida. Seu cabelo ruivo, preso com precisão, e seus olhos castanhos afiados transmitiam autoridade. Já Adônis possuía a aparência impecável digna de um príncipe: corpo definido — embora menos atlético que Alastair —, cabelos castanhos ondulados penteados para trás, olhos azuis marcantes e traços faciais que pareciam esculpidos.Nenhuma palavra era dita. Etoile se ocupava com a revisão de documentos imperia
Capítulo 10 – A Noiva do NorteA neve pesava do lado de fora, cobrindo as janelas com cristais gelados. O céu, paradoxalmente, estava limpo, iluminado por um sol frio e indiferente. Mas dentro do quarto da Duquesa de Varmond, o clima era tudo, menos sereno.— E então, senhorita? Gostaria de usar qual vestido?Melissa mantinha um sorriso ensaiado no rosto, erguendo dois vestidos — um cinza elegante e um vinho profundo — como se ignorasse por completo o fato de estar diante de uma mulher que claramente a detestava.— Não sou sua senhorita. — retrucou Rudbeckia, seca. Levantou-se da cadeira com firmeza e arrancou o vestido cinza das mãos da criada. — Sou sua senhora. Aprenda a se dirigir a mim.Seu tom era gélido, seus olhos claros como vidro congelado. Melissa se encolheu com a repreensão, murmurando um pedido de desculpas abafado.— Claro! M-me perdoe, senhora…Rudbeckia virou-se com o vestido nos braços.— Saia. Irei me vestir sozinha.Melissa hesitou. Sua expressão oscilou entre subm
Capítulo 9 – Monstros de Sangue e PeleO corredor estava silencioso — mas não de um silêncio pacífico. Era um silêncio denso, quase sufocante. O chão de pedra ainda exibia manchas de sangue fresco, que escorriam dos corpos inertes, agora começando a esfriar. As portas da câmara estavam abertas, revelando um interior tingido de vermelho. Nenhum servo ousava entrar. Os guardas murmuravam entre si, imóveis, aguardando um sinal do próprio Duque.Rudbeckia se aproximou devagar, atraída pela comoção. Ao ver a concentração de soldados em frente a um dos quartos, hesitou. Aquilo só podia ser o quarto dele.Mas por que ninguém entrava?Seguiu até lá com passos lentos, cautelosos. Quando a viram se aproximar, os guardas se afastaram como se o próprio demônio estivesse entre eles. Ela não se importou. Estava acostumada a esse tipo de recepção. Parou diante da porta, entreaberta, e empurrou-a lentamente.O quarto era grande, sombrio e agora banhado em sangue.Diversos corpos espalhados pelo chão.
Capítulo 8 – Um Brinde ao Fardo CompartilhadoO salão estava mergulhado em silêncio após a refeição farta que haviam acabado de compartilhar. A mesa longa agora era ocupada apenas por dois. A luz das velas projetava sombras tênues pelas paredes, enquanto a lareira estalava suavemente, aquecendo o ambiente com sua chama contida.Alastair se serviu de mais vinho. Recostou-se na cadeira com naturalidade, observando Rudbeckia por longos segundos. Seus olhos percorreram cada traço dela — a postura ereta, os fios soltos do coque improvisado, o vestido de veludo negro que abraçava seu corpo como se tivesse sido feito sob medida.— Você ainda recusa a ajuda das servas. — afirmou em voz baixa e direta.Rudbeckia ficou surpresa. Não esperava que ele soubesse. Não respondeu de imediato, apenas o observou com atenção, como se decidisse se valia a pena comentar.— Sabe que isso não poderá continuar. Quando for Duquesa… — suspirou. Já percebia que ela não seria fácil. — Não poderá continuar se vest
Capítulo 7 — As Formalidades do InícioAs coisas haviam se tornado mais conturbadas para Rudbeckia depois do incidente naquela tarde. Sua demonstração de magia de sangue não foi recebida com entusiasmo — mesmo tendo salvado a vida de um guarda, o ato rendeu cochichos e olhares ainda mais pesados pelos corredores da fortaleza.Os servos, que já eram cautelosos quanto à presença da Linperic, agora a tratavam com ainda mais distância. Corriam boatos sobre “o chicote de sangue horripilante” que ela teria usado. Era o bastante para alimentar o medo generalizado. Mas que diferença fazia? Ela nunca teve uma boa reputação. Nunca esperou ser bem-vinda.Rudbeckia tentou ignorar. Tinha outras prioridades. Após memorizar boa parte da estrutura da fortaleza, dirigiu-se até a biblioteca. Beau havia mencionado que ela teria livre acesso ao espaço, então não hesitou. Entrou sem pedir permissão a ninguém.A biblioteca era um cômodo vasto e austero. Prateleiras de madeira escura alcançavam o teto, jane
Capítulo 6 — A Dama em Território HostilNão havia tido qualquer chance de retrucar. O Duque havia sido claro: Beau deveria apresentar a fortaleza à futura Duquesa. E como sempre, ele cumpriria sua ordem. Sem entusiasmo, mas com precisão.Beau a guiava pelos corredores da propriedade, saindo do jardim interno e entrando em alas mais antigas do castelo. A cada novo ambiente, ele falava com clareza e objetividade, descrevendo datas de construção, funções dos espaços e curiosidades relevantes. Sua fala era firme, sem rodeios — e aquilo, para Rudbeckia, era um alívio. O tipo de explicação que ela gostava: direta, sem bajulações ou floreios inúteis.Passaram por uma sequência de corredores silenciosos, ladeados por tapeçarias militares, colunas em pedra escura, vitrais coloridos que filtravam a luz fria do norte. Escadarias amplas levavam a alas superiores. A imponência da fortaleza impressionava, mas também intimidava.Enquanto caminhavam, Rudbeckia notava os olhares tortos dos poucos ser
Último capítulo