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O Casal Infame do Império Enraven
O Casal Infame do Império Enraven
Por: Bia Alves
Capítulo 1 — A Última Oferta

Capítulo 1 – A Última Oferta

O chão era de pedra crua, irregular, e absorvia o frio como uma esponja. Estava sentada nele havia horas — ou dias, não sabia mais — com os pulsos e tornozelos presos por correntes de ferro rústico. O metal tinha deixado marcas vermelhas na pele, algumas já arroxeadas. Sentia o sangue circular devagar pelos membros dormentes, como se até meu corpo estivesse cansado de resistir.

Ao redor, o som abafado de gritos. Vozes masculinas disputavam entre risos e ordens. Alguns guardas. Alguns compradores. Algumas feras disfarçadas de gente.

As paredes eram úmidas, mal iluminadas. Uma tocha distante tremulava e lançava sombras tremidas nas celas. Eu conseguia ver, mesmo com a pouca luz, os rostos ao meu redor. Mulheres. A maioria jovem. Algumas choravam. Outras estavam desacordadas. Uma ou duas rezavam baixinho por deuses que não respondem. Uma menina me fitava como se eu fosse um monstro. Tive vontade de rir. Talvez eu fosse mesmo.

Minhas vestes estavam rasgadas até o joelho. O tecido sujo grudava na pele. Eu devia estar fedendo, mas todos ali fediam. Isso nivelava as coisas. O único luxo que me restava era o silêncio — porque ninguém ousava se dirigir a mim. Nem mesmo os guardas.

Era quase cômico. Uma marquesa acorrentada numa casa de leilões clandestina. Uma nobre de sangue puro sendo tratada como um animal. Eu ainda carregava meu título, mesmo que ninguém mais o reconhecesse. Para eles, isso não importava. Bastava um apelido sussurrado no escuro para anular linhagem, direito ou história.

Bruxa sanguinária.

Era tudo o que viam quando olhavam para mim.

Passei anos sendo caçada. Anos me escondendo, mudando de nome, vivendo entre lodo, floresta e poeira para não acabar assim. Mas eles me pegaram. Pela primeira vez. E decidiram que meu destino seria a prateleira. À venda.

Olhei para minhas mãos feridas. O sangue seco entre os dedos lembrava que lutei até o fim. Quebrei dois dentes de um soldado antes de me jogarem neste buraco. Arranhei o rosto de uma dama nobre com minhas próprias unhas quando tentou me medir como se eu fosse uma mula. Não adiantou nada.

Mas uma coisa era certa: podiam me vender. Podiam me acorrentar. Mas quebrar?

Ainda não.

Inclinei a cabeça para trás e encostei na parede fria. Respirei fundo, sentindo o ar úmido invadir os pulmões com gosto de mofo e ferrugem. Não havia janela. Não havia saída. Só a certeza de que em breve, alguém lá fora pagaria para me levar. E essa pessoa não fazia ideia da merda que estava comprando.

O portão se abriu com estrondo. Um rangido metálico arranhou os tímpanos, seguido pelo som seco da tranca deslizando. Luz opaca invadiu o corredor e tocou o chão úmido. Estávamos no anexo subterrâneo — as celas. Onde se escondem os produtos mais perigosos ou, no meu caso, os mais indesejáveis.

Dois homens entraram. Armaduras escuras, semblantes indiferentes. Um deles, mais baixo, segurava uma corrente com presilhas abertas. Seus olhos varreram os fundos da cela até pousarem em mim.

Puxaram a porta de ferro com violência. O primeiro guarda avançou, agarrou a corrente que prendia meus tornozelos. Tentou me puxar, como se eu fosse algum animal de carga. Não reagi. Apenas mantive os calcanhares cravados no chão, me forçando contra a tração. O metal tensionou. Eu não cedia.

— Levanta, bruxa.

O outro se aproximou. Riu de canto. Murmurou que deviam “dar um jeito de mostrar mais pele” pra subir o lance. Enfiou os dedos na gola do meu tecido rasgado. Meus olhos encontraram os dele.

Cuspi.

— Vai tocar na sua mãe, verme.

O cuspe acertou em cheio. Ele paralisou. O salão ainda não me via, mas o momento já era espetáculo para os carcereiros que riam ali por perto. O homem limpou a boca com as costas da mão, depois me golpeou com força. A cabeça virou. O gosto do sangue preencheu minha boca. Vi estrelas.

Perdi o equilíbrio e eles aproveitaram. Um segurou meus braços, outro puxou meus pés. Fui arrastada pelo chão de pedra feito uma carga indesejada. As correntes arranharam minha pele, mas mantive o queixo erguido, mesmo com o rosto ardendo.

Só quando as portas do salão principal se abriram é que compreendi o cenário completo: um espaço amplo, tomado por colunas escuras, tochas presas às paredes e degraus de pedra que levavam a assentos altos, ocupados por nobres e senhores vestidos em seda.

O cheiro era de suor, metal e perfume enjoativo.

Outros prisioneiros estavam posicionados ao longo do corredor. Homens de cabeça baixa, mulheres tremendo, crianças caladas com olhos secos demais para chorar. Um a um, iam sendo puxados para o centro, exibidos, avaliados, vendidos.

E então me jogaram ali. Correntes tilintando, rosto ferido, vestes rasgadas. Sujeira, sangue seco, pés descalços.

O salão explodiu em reações.

Risos abafados. Comentários sujos. Algumas expressões tensas, outras excitadas. A plateia adorava esse tipo de espetáculo. Nada vendia tão bem quanto uma mulher difícil.

E eu? Eu mantive o olhar em pé, mesmo no chão. Porque se iam me vender como um monstro… eu faria questão de parecer um.

O silêncio que se seguiu durou pouco. Logo, passos ecoaram sobre as tábuas do palco improvisado, acompanhados por um rangido suave de madeira velha. O mestre do leilão subiu ao centro da plataforma com o corpo inclinado para frente e um sorriso treinado demais para ser humano.

Usava luvas de couro, casaco púrpura com bordas douradas e a arrogância típica de quem se vê como elo entre a escória e a nobreza.

Ergueu as mãos devagar. O salão silenciou, exceto pelo som das correntes e da respiração pesada de outros prisioneiros sendo conduzidos para fora.

A voz dele soou teatral, envolta num tom meloso que me deu náusea:

— Senhores e senhoras… nossa última e mais preciosa oferta desta noite. A heresia viva. A maldição que sobreviveu. A última Linperic.

A tensão mudou de forma. O público reagiu de imediato — não com aplausos, mas com murmúrios carregados de medo e excitação.

“Impossível…”

“Achei que tinham sido todos mortos…”

“Ela é uma bruxa.”

“Será que sangra diferente?”

E então as mãos voltaram. Puxaram-me pelas correntes presas aos pulsos. Meus pés descalços arrastaram no chão até tocarem a madeira gasta da plataforma. Cada passo doía — a pele dos calcanhares já estava cortada desde antes. Não reagi.

A luz das tochas bateu direto no meu rosto. Uma tocha a cada canto do palco. Um círculo iluminado para a atração final. Eu.

Fiquei ali, parada, observando as sombras dos nobres recortadas contra a luz. Vi anéis, mantos, máscaras de seda e dentes brancos demais em bocas sórdidas. Alguns recuavam, supersticiosos. Outros me analisavam como quem observa uma peça rara. Um ou outro… salivava.

Eu encarei todos eles. Sem desviar. Sem piscar. Sem esconder o sangue que escorria do canto da boca desde a agressão anterior.

O mestre de cerimônias rodou ao meu redor como um abutre vaidoso, descrevendo minha linhagem com uma mistura de desprezo e adoração:

— Segundo os registros esquecidos… sua avó era conselheira de um antigo príncipe rebelde. Sua mãe, uma fugitiva caçada pela Igreja, que gerou esta criatura num ritual profano nas ruínas de Silinte.

Era tudo mentira.

Pausa para efeito. Ele olhou o público.

— Mas hoje, senhores, ela está aqui. Vivendo. Respirando. E à venda.

Continuou:

— Observem com atenção… a pele pálida, delicada como porcelana e sensível ao sol. Os olhos? Azuis cristalinos. Cabelos longos, em tom platinado, quase branco, a marca indiscutível da linhagem Linperic, amaldiçoada e extinta. Não há runas, não há selos visíveis. Isso significa que seu sangue permanece puro e não selado. Um sangue que cura, envenena ou amaldiçoa… dependendo da intenção. Uma relíquia viva. Perfeita para rituais. Bela como uma joia rara. E letal como uma arma sagrada.

Eu quis rir.

A forma como eles moldavam minha história ao prazer de quem pagasse mais. Como se ser Linperic fosse um espetáculo pagão. Como se minha existência pudesse ser reduzida a objeto místico e utilitário com potencial destrutivo.

Não disseram que eu era Marquesa. Não falaram do sangue nobre. Do título. Do direito.

Só da maldição.

Só daquilo que os fazia sentir medo… e desejo ao mesmo tempo.

Aquele era o palco deles.

Mas o nome que carregava nos ossos era maior que o salão inteiro.

E eu esperaria. Observando.

Porque o idiota que colocasse o valor mais alto naquela noite… não fazia ideia do que estava levando para casa.

— Cento e vinte mil aureons! — gritou o leiloeiro, empolgado.

A voz saiu engasgada, como se tivesse se surpreendido com o número.

Virei os olhos na direção da voz. Um homem obeso, de roupas coloridas demais e dedos cobertos de anéis, abanava o rosto suado com um leque de penas. Olhos pequenos, famintos. Tão acostumado a comprar tudo que queria… que devia achar que estava adquirindo mais um “exótico de coleção”.

Segundo lance.

— Cento e cinquenta e cinco mil! — anunciou o assistente ao fundo.

Um barão do Sul. Velho, enrugado, com a pele manchada e dentes de ouro. Usava uma bengala que tilintava toda vez que batia no chão. Estava com três acompanhantes jovens no colo.

Todas riram quando ele sussurrou algo.

Terceiro lance.

— Cento e oitenta e cinco mil.

Dessa vez, uma mulher. Roupas discretas, véu escuro cobrindo o rosto. As mãos entrelaçadas com luvas de renda preta. Ela murmurava algo — uma prece ou uma invocação. Ouvi a palavra “oferta” escapando de seus lábios. Cerimonial.

Queria me usar como sacrifício provavelmente.

O número subiu de novo.

— Duzentos e vinte mil!

O salão explodiu. Assovios, aplausos. Alguns xingamentos velados. O recorde da noite. A plateia vibrava como por um cavalo de guerra ou uma espada lendária.

A boca do leiloeiro tremia de excitação.

— Damas e senhores, é realmente um espetáculo! Alguém supera? Duzentos e vinte mil pela arma mais rara do império! Contando: um…

Ele ergueu o martelo.

E então, o som que estalou no salão não veio da madeira.

Veio de cima.

Uma voz.

Baixa, firme. Com o tom de quem não pedia, ordenava:

— Quinhentos mil aureons.

Silêncio.

O salão congelou. Os murmúrios morreram como uma vela afogada. Alguns engasgaram. Outros riram, sem graça. Um guarda deixou cair a lança.

O leiloeiro, pálido, piscou várias vezes antes de repetir:

— Q-Quinhentos mil… ofertados… da sacada leste.— Tentou soar firme. Falhou. — Valor aceito… pela figura… pela figura mascarada na sacada leste.

Fechei os olhos.

Respirei fundo. O ar era úmido, pesado, fedendo a suor, vinho e ganância.

Quinhentos mil.

Pensei no número. Soava surreal, quase patético. Só um lunático pagaria isso por uma bruxa sanguinária.

Ou um predador.

Ergui o olhar de novo, focando na figura na sacada. Continuava lá. Parada. Inabalável. Como se aquele espetáculo inteiro fosse só por diversão.

Não consegui ver o rosto — o capuz cobria tudo. Mas mesmo à distância, mesmo com a luz contra, eu senti.

Senti o peso do olhar dele. O tipo de olhar que não se distrai. Que não pisca.

Que não vê uma mulher… mas um propósito.

Minhas mãos se cerraram sem que eu percebesse. As algemas apertaram meus pulsos, forçando a pele rachada a arder.

Não me importei.

O medo veio rápido. Um estalo interno, uma descarga no estômago. Quente, ácida.

Não era como o pavor de ser vendida. Esse eu já conhecia. Era outra coisa.

Esse era pessoal.

Eu havia passado anos fugindo de caçadores, inquisidores, mercadores, nobres tarados, fanáticos e oportunistas.

Mas aquele ali… aquele homem não parecia ter vindo para me destruir.

Ele parecia ter vindo para me usar.

O martelo do leiloeiro bateu na madeira.

— Vendida.

A palavra soou seca. Final. Como uma sentença.

A plateia bateu palmas. Algumas se levantaram, outras já se dispersavam.

Para eles, o espetáculo tinha acabado.

Para mim, tinha acabado de começar.

Fui puxada de volta para o anexo pelas correntes nos tornozelos. O chão arranhava meus pés abertos. Não reclamei.

O sangue já estava quente demais nas veias para sentir dor.

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