Capítulo 1 – O Trono dos Esquecidos
Rudbeckia não vivia — sobrevivia. Não buscava reconhecimento, nem glória como Marquesa. Não queria reverência, muito menos vingança. Tudo o que desejava era simples… e inalcançável: paz. Mas aos vinte e três anos, nunca conhecera um só dia de tranquilidade. Isolada nas florestas esquecidas de Silinte — um território entregue à sua família não como dom, mas como exílio — ela se mantinha viva entre a névoa e os escombros. O solo era úmido, sempre frio. A chuva caía sem hora, e o céu se recusava a abrir os olhos. A luz do sol raramente tocava aquela terra. Talvez porque até o próprio céu tivesse medo de olhar para os Linperic. Era uma terra sem riso, sem visita, sem voz. E ainda assim… era o único lugar que ela chamava de lar. Silinte a protegia, mas já não a bastava. Toda semana, caçadores surgiam como urubus sobre a carniça. Todos queriam a última Linperic — alguns por medo, outros por ambição. Mas no fim, todos a queriam caída. Morta. Viver sozinha lhe dava silêncio. Mas custava caro. A mansão, outrora orgulhosa, apodrecia lentamente ao seu redor. O chão rangia. O pó sussurrava. Não havia criados. Nem vozes. Nem ninguém que cuidasse dela quando a febre chegava — e ela sempre chegava. A Maldição de Sangue vinha como uma velha conhecida, derrubando-a por dias. Trazia dor nas veias, delírio, e às vezes, o gosto metálico da morte na boca. Mesmo assim, Rudbeckia se agarrava à vida. Sempre. Naquela manhã cinzenta, caminhava sozinha pela floresta. Os pés descalços feridos pelos galhos, os trapos puídos que antes foram vestidos nobres mal cobriam sua pele. O frio do chão lhe mordia os ossos, mas ela não parava. Tinha fome. Uma lebre, um veado, qualquer coisa serviria. Até que, entre os galhos altos, viu um esquilo. Pequeno, mas vivo — e isso bastava. Avançou devagar, sorrateira, sentindo o sangue latejar no calcanhar ferido. Levantou o pé. Dele escorreu uma gota espessa, escarlate. Com a mente treinada, moldou aquilo em um chicote sinuoso — sua única arma de sangue. Desculpe… pensou, antes de estalar o chicote com precisão. O estalo seco quebrou o silêncio da floresta. O esquilo caiu, sem tempo para fugir. Ela se ajoelhou. Agarrou a carcaça ainda quente, e sem cerimônia, rasgou sua pele com os dentes. O sangue tingiu seu queixo. Era amargo e ferroso — mas o bastante para manter-se em pé mais um dia. Não gostava de comer assim. Mas acender uma fogueira chamaria atenção. E além disso, para os Linperic, o sangue era alimento mais eficaz do que o fogo poderia oferecer. Sentiu alívio. Estava viva. E não dormiria com fome. Mas o alívio durou pouco. A poucos metros dali, três homens a observavam em silêncio, escondidos entre os troncos. Horrorizados, viam a jovem de aparência angelical mastigar um esquilo com olhos vazios e boca suja de sangue. Para eles, não havia dúvidas. Aquela era a última criatura da linhagem proibida. Um monstro em corpo de mulher. Um deles ergueu o arco. A flecha voou. Rudbeckia, revigorada pelo sangue recém-consumido, sentiu a vibração do ar e desviou no último segundo — o projétil roçou o ombro, mas cravou-se em seu braço. Ela estremeceu, levando a mão à ferida, o sangue já começando a reagir. Virou-se na direção do disparo, os olhos afiados. Sentia-os. Três presenças. Três corações pulsando. Três caçadores. — Maldição… — murmurou entre dentes, antes de sair correndo, o chicote de sangue se dissolvendo atrás dela. Eles a seguiram. As flechas cruzavam os galhos. Os gritos vinham de trás. Ela corria por entre as árvores como sombra ferida, até ver ao longe o contorno desbotado da mansão. Com os últimos fôlegos, alcançou a porta, escancarou-a e correu escada acima. Trancou-se no quarto. Tateou a estante até encontrar o velho mapa que escondia. Tremendo, o agarrou e foi até a janela. A porta tremia com os punhos que tentavam arrombá-la. Ela não hesitou. Jogou um manto sobre os ombros, subiu na beirada da janela e assobiou. Ao longe, seu cavalo — velho e fiel — respondeu. Pulou. Caiu sobre a sela com a precisão de quem já fugiu muitas vezes. Agarrou-se à crina e cavalgou sem olhar para trás. Silinte ficava para trás. Sua casa de infância. O lugar onde seus pais sangraram. O último pedaço de quem ela foi. Não era mais seguro. Mas em algum lugar do Norte, morava outro monstro. E talvez, com ele, viesse a chance de viver — ou de morrer de pé. O vento cortava-lhe o rosto, misturando-se ao gosto salgado que escorria de seus olhos. Ela não chorava por medo. Chorava por tudo que deixava. Pela solidão que a moldou. Pelos cômodos vazios. Pelo retrato da mãe na lareira coberta de poeira. Pelas promessas feitas às escondidas, entre orações silenciosas. Ela cavalgava com o peito em pedaços — e os olhos marejados. Mas não parava. Partia com lágrimas nos olhos. Mas com a cabeça erguida. ____ Pelas florestas do norte de Velmora, a capital imperial dormia sob um céu opaco. A manhã seguia muda e nublada, como se o próprio sol tivesse desistido de atravessar as nuvens. O vento carregava um frio úmido, e entre os troncos pálidos, as árvores se curvavam como sombras silenciosas. Montada sobre um cavalo pardo e magro, Rudbeckia permanecia imóvel. Seus dedos trêmulos pressionavam o braço ensanguentado, tentando conter um corte profundo. O sangue, espesso e escuro, escorria lentamente entre seus dedos enregelados. Havia magia ali — seu corpo forçava a carne a se fechar, gota por gota, mas cada esforço a drenava mais do que cicatrizava. A cada pulsar da ferida, o mundo ao seu redor parecia mais opaco, mais distante. Um manto rasgado cobria seus ombros, tecido encardido pelo tempo e pela fuga. Debaixo dele, escondia-se o cabelo loiro platinado, quase branco — a marca da maldição que herdara. Seus olhos, de um azul cristalino e intenso, encaravam ao longe a silhueta difusa do castelo imperial, quase engolido pela névoa. Foi ali que tudo começou. Ali estava a raiz do ódio que caíra sobre sua casa como uma praga. O sangue dela ardia ao olhar aquela silhueta. Não por febre, mas por lembrança. Porque enquanto os nobres dormiam em mármore e seda, ela vivia entre cinzas e pedras, sendo caçada como uma fera rara — desejada por seu poder, temida por sua linhagem, amaldiçoada por sua herança. Hoje havia escapado apenas com um corte. Amanhã… talvez não escapasse. Sozinha, não resistiria por muito mais tempo. Ela desviou o olhar. Apertou os calcanhares contra o flanco do cavalo, que reagiu com um passo trôpego. Virou as costas ao castelo — e ao que restava da esperança de reconciliação com o império. Se não podia vencer sozinha, teria que se aliar. Mesmo que fosse a outro monstro. Se a Coroa queria enterrá-la, que lidasse então com os ecos da própria criação: o bastardo do norte, o tirano esquecido, o homem cuja presença fazia os nobres tremerem. Talvez ele fosse louco. Talvez ele fosse pior do que diziam. Mas era forte. E acima de tudo — odiado pelos mesmos que a perseguiam. Rudbeckia puxou o manto sobre os ombros e seguiu. Para Varmond. Para o frio. Para ele. Para o único que talvez entendesse o que era ser caçado… e sobreviver.