Capítulo 2 – O Sangue Vale Menos que o Nome
O chão estava limpo. Sempre estava. Sangue seca rápido em pedra fria, mas eu gostava de ver as marcas sumirem ainda frescas. Havia um tipo específico de ordem nisso. Uma lógica que os homens esquecem quando imploram. O traidor foi jogado de joelhos diante de mim. Não era velho. Nem jovem. Um dos medianos — esses são os piores. Velhos demais pra ter medo suficiente. Jovens demais pra entender o peso de um erro. Tremeu ao me encarar, mesmo com o rosto tentando manter dignidade. Covardes tentam isso até o fim. Não entendem que a dignidade vem antes, não depois. — Duque Alastair… por favor… eu não… — a voz falhava. O tom me irritava mais que o conteúdo. As acusações já tinham sido lidas. Cartas interceptadas. Selos do Sul. Provas suficientes. Conspirar contra a fortaleza. Envenenar a água. Um plano tosco, fraco, amador. Desci os degraus de pedra sem pressa. Cada passo ecoava. Não por efeito dramático — mas porque aquele salão havia sido projetado para isso. Quando parei diante dele, não gritei. Não era necessário. — Língua para calúnias — murmurei. — Dedos para as cartas. Tirem os dois. Não houve resistência. Dois soldados executaram a ordem como se cortassem um galho morto. O som foi seco. Carne. Osso. Um grito breve. E depois só soluços. O sangue escorreu até meu coturno. Desviei um passo e observei por cima. Nada ali merecia piedade. Só lição. Elizabeth estava ao lado da escadaria. Braços cruzados. Olhos semicerrados. Vestia preto como sempre, mas o rosto denunciava incômodo. — Você está exagerando — ela murmurou, mais pra si do que pra mim. Ignorei. Peguei um lenço escuro do bolso interno. Limpei a lateral do punho onde respingou o sangue. Era de linho fino. Não me importava em jogá-lo no chão depois. Olhei para os guardas. — Queime os restos. E revejam a guarda do poço principal. Virei as costas e saí. O assunto estava encerrado. Ele havia traído Varmond. E eu não deixava perguntas abertas. Saí do salão sem olhar para trás, os sons abafados de sangue e soluços ficando para trás como se nunca tivessem existido. O frio das pedras me acompanhava pelos corredores. O silêncio dos soldados também. Elizabeth não veio. Ótimo. O eco dos meus passos mal encobria os seguintes — apressados, mais leves. Beau. Sempre ansioso, sempre tenso. A capa de assistente era grande demais pros ombros dele. Ele apareceu com o cenho franzido, uma folha enrolada nas mãos trêmulas. O selo vermelho me deu enjoo antes mesmo de saber o conteúdo. — Mensagem do Imperador — disse, quase pedindo desculpas só de me entregar. — Leilão ilegal operando no distrito subterrâneo de Velmora. Ordem direta: encerrá-lo. Direta. Claro. Como se ainda fosse preciso esse tom imperial. Peguei o pergaminho, rasguei o selo com o polegar. Li em silêncio. Palavras pomposas, floreadas, como todas as que saíam daquele maldito palácio. “Mancha o nome do império.” “Ofende os princípios de unidade e justiça.” “Deve ser destruído em nome da ordem.” Hipócritas. Meu pai sempre gostou de jogar com aparência. De fingir que ainda comandava alguma coisa além dos próprios títulos. Sentado num trono que não foi forjado por ele, distribuía ordens como se o mundo ainda dançasse ao som da voz dele. Detesto ordens. Principalmente as dele. Principalmente quando vêm disfarçadas de moral. Entreguei o pergaminho de volta sem comentar. Papel inútil. Beau hesitou. A pergunta veio engasgada: — Vai cumprir a ordem? Continuei andando. Os soldados já começavam a se alinhar nos corredores, como se tivessem sentido o cheiro de movimento. — Vou assistir — respondi. E era verdade. Não me movia por honra, nem por justiça. Mas o submundo de Velmora… Sempre me servia algo interessante. E se aquele leilão estava escondendo algo valioso, algo que o imperador queria apagar dos registros… Então talvez valesse a pena olhar de perto. Pelo bem de Varmond. Ou só pela contradição. ⸻ O subsolo de Velmora era abafado, impregnado de fumaça, mofo e cheiro de gente suja — e não só dos prisioneiros. Os degraus de pedra vibravam com as botas dos meus homens. Varmond entrava como deveria entrar: sem pedidos, sem anúncios, sem permissão. Guardas se posicionaram nos flancos do salão, rostos cobertos, lâminas à mostra. Não precisava de uma palavra minha para que soubessem onde pisar e quem cortar, se fosse necessário. Os donos do espaço congelaram. A maioria tentou fingir naturalidade. Outros apenas baixaram a cabeça. Não era medo do Império. Era medo de mim. Ninguém ousou me barrar. Aproximei-me do coração do salão. Meu casaco longo roçava o chão encardido, e minhas botas deixavam marcas escuras na serragem misturada a sangue velho. Havia jaulas em ambos os lados — uma fileira com mulheres, outra com homens. Crianças em um canto, vendidas como se fossem gado. Olhos vazios, corpos imóveis. Vi dois guardas arrastando um garoto que mal conseguia ficar em pé. Uma mulher seminu gritando enquanto recebia tapa na boca. O leiloeiro berrando valores de maneira teatral, enquanto clientes nobres — ou fingidos de nobres — sorrateiramente erguiam placas numeradas. Nenhum deles merecia minha atenção. Inclinei o queixo levemente, percorrendo o ambiente com um olhar. Cadeias, dor, comércio de carne humana. Mesma merda. Outro cenário. Murmurei baixo, apenas para mim: — Patético. Desviei dos gritos e dos gemidos com a mesma naturalidade com que se ignora um cachorro morrendo na estrada. Subi as escadas do camarote reservado. Não esperei ajuda. Não pedi nada. Sentei. Cruzei as pernas com calma. Encostei o cotovelo no braço da cadeira de pedra decorada com couro gasto e observei. Abaixo, o espetáculo seguia. O mesmo roteiro, os mesmos tipos. Garotas chorando, cobertas de sujeira e vergonha. Homens mutilados tentando parecer úteis. Senhores suando sob peles caras, lambendo os beiços a cada novo lote. Alguns se escondiam sob mantos. Outros nem se davam esse trabalho. Um desfiladeiro de miséria. Uma vitrine de carne. Beau surgiu ao meu lado. Cabelos pretos presos com esforço, suor escorrendo na lateral da têmpora. Não estava acostumado com o cheiro daqui. — Meu senhor… deseja que eu encerre? — perguntou, a voz baixa, ansiosa. Levantei um dedo, sem tirar os olhos da arena. — Ainda não. Ele hesitou. — Há algo específico…? — Quero ver o que vendem no final. Beau não respondeu de imediato. Ficou ali parado, ao meu lado, os olhos inquietos demais para um homem de guerra. Ele sempre teve esse defeito: emoção demais para pouca utilidade. — Com todo respeito, meu senhor… isso é uma atrocidade — murmurou. — Essas pessoas… elas estão sendo tratadas pior que animais. Fez uma pausa, engolindo a saliva com esforço. — Talvez devêssemos encerrar agora. A ordem do Imperador era clara. Ah, o Imperador. Soltei uma risada curta. Seca. Sem humor. — Claro que era clara. Tudo o que sai da boca dele soa como decreto divino, não é? — Cruzei os braços. — Velmora se contorce para agradar aquele velho desgraçado, como se ele ainda segurasse o império com as próprias mãos. Mas o que ele faz, Beau? Além de escrever ordens e cuspir moralidade? Beau apertou os lábios. Não respondeu. — Isso aqui — apontei com o queixo para o salão — é banal. Um teatro grotesco para nobres entediados. Eu deveria estar em Varmond supervisionando o novo posto de fronteira. Mas não. Estou aqui, nesse esgoto encoberto, porque Sua Alteza achou que esse mercado sujo merecia minha atenção pessoal. Inclinei levemente o corpo para frente, encarando uma mulher ser vendida a um velho com dentes de ouro. — E por quê? Porque é feio. Porque fere a moral. Porque mancha o nome do império. Virei o rosto para Beau, que ainda me observava em silêncio. — Isso não é nada, Beau.— Minha voz saiu fria. — Nada que valha meu tempo. Nada que exija minha ira. Beau parecia desconfortável, mas assentiu com um leve movimento de cabeça. — Então… vai permitir que continue? — Até o último lance. Minha mão tamborilou o braço do trono improvisado. — E quando esse lixo teatral acabar — continuei —, quando anunciarem a última “joia” que estão escondendo… aí sim. Sorri, sem mostrar os dentes. — Aí eu destruo tudo. Por puro capricho. Porque essa futilidade custou meu tempo. E tempo, Beau… é o único preço que eu não tolero pagar. Era regra em todo mercado subterrâneo: o melhor vinha por último. Aquele tipo de comerciante miserável sabia que o público precisava ser alimentado com desgraça antes de provar o prato principal. Eu tinha tempo. Inclinei o queixo, acompanhando os próximos lances com o mesmo entusiasmo que um corvo observa um enterro. Vozes gritavam valores. O leiloeiro babava em cima do púlpito. Uma mulher foi vendida por duzentos mil. Um menino cego, por trinta. Um homem com cicatrizes ritualísticas — provavelmente um desertor — foi arrematado por uma cortesã bêbada. Um teatro ruim. Mal ensaiado. Mal interpretado. Mas eu esperei. Porque a vida sempre guarda algo útil nos piores lugares. E naquela noite… era ali que o império enterrava seu segredo mais interessante. O mestre do leilão subiu ao palco com a empáfia de um pavão deformado. Ajeitou a túnica, ergueu os braços, e então, com voz inflada por promessas de espetáculo, anunciou: — E agora, senhores… a bruxa sanguinária. A última Linperic. O nome caiu como uma lâmina afiada no salão. Senti o som estancar no ar, como se até o pó tivesse hesitado antes de pousar. Minha mão, que segurava a taça, parou no meio do trajeto. O vinho não chegou aos lábios. Olhei fixamente para o palco. Linperic. Aquilo não era um nome qualquer. Heresia, disseram. Extintos, juraram. Malditos, repetiram por gerações. E ainda assim… ela estava ali. Nunca tinha visto essa linhagem diante dos meus olhos antes. Ouvi os murmúrios das criaturas sentadas nas fileiras abaixo: — “Ela devia estar morta…” — “É verdade que o sangue dela ferve como ácido?” — “Dizem que beber uma gota dá poder…” — “Ou mata em três batidas do coração.” Superstições idiotas. Mas eficazes. Levantei-me sem pressa, aproximando-me da grade do camarote. A madeira estalou sob minhas botas pesadas. Beau sequer ousou se mover. E então eu a vi. Acorrentada. Suja. Magra demais para seu próprio orgulho. Mas havia algo nos olhos…Olhos azuis cristalinos, gélidos e cortantes como uma lâmina limpa. Eles não pediam clemência. Nem choravam. Eles me encararam. Como se eu fosse a escória. E talvez eu fosse. Mas eu era a escória com poder. “Linperic…”, pensei. Uma heresia viva. Uma reputação arrastada pela lama. Um nome que o império se esforçou para apagar. E ainda assim… ela não parecia dobrada. Nem destruída. Não era uma mulher. Era um insulto. Uma cicatriz que voltou a sangrar. Sorri, sozinho. Perfeita. O império jamais aceitaria um homem que se deitasse com um veneno desses. Jamais perdoaria um duque que erguesse como esposa a última bruxa do sangue. E era exatamente isso que eu precisava. A plateia se agitava enquanto os lances subiam. Cento e oitenta mil. Cento e noventa e cinco. Duzentos. Um velho barão levantou a bengala para marcar duzentos e vinte mil aureons — recorde da noite. O público vibrou, como cães farejando sangue. Ridículo. Meus dedos repousavam sobre o apoio de madeira do camarote. Eu não precisava gritar. Ergui a mão, simples, direto. Minha voz não foi alta, mas foi o bastante. — Quinhentos mil aureons. O efeito foi imediato. O salão se calou. Até o leiloeiro paralisou. Um dos assistentes tropeçou nos próprios pés. Ouvi um som abafado — talvez um copo quebrando, talvez apenas o som de expectativas ruindo. Os olhares se voltaram para mim. Alguns tentavam me identificar. Outros recuavam como se tivessem visto a morte. Era isso que minha presença fazia. Uma sombra que os nobres fingiam não temer… até lembrar de quem eu era. Ela, lá embaixo, ergueu o rosto. Mesmo acorrentada, parecia inteira. O orgulho não cedia. Seus olhos encontraram os meus. Azul cristalino contra Azul escuro. Ódio contra controle. Duas criaturas condenadas a quebrar os moldes em que nasceram. Ela me olhava como se já me odiasse. Excelente. Minha expressão não mudou. Nenhum sorriso, nenhum gesto. Mas por dentro, pensei: Agora você é minha. E juntos, seremos a praga que esse império jamais esquecerá. O martelo caiu. — Vendida. E com isso, Varmond ganhou sua nova duquesa. E o império, sua ruína iminente.