Capítulo 2 – Negociações sobre Neve e Pedra
O Ducado de Varmond erguia-se no extremo norte do Império Enraven, isolado por florestas frias e montanhas envoltas em névoa. A jornada até ali fora longa, exaustiva e silenciosa. Dias a cavalo, envolta em trapos, sob a ameaça constante de ser notada — ou reconhecida. Durante o percurso, Rudbeckia evitou vilarejos e estradas movimentadas. Preferia a solidão da floresta à curiosidade dos olhos humanos. Havia lendas entre o povo comum — sussurros de monstros que bebiam sangue e comiam carne — e tais lendas levavam o nome de sua família. Os Linperic, ou como eram chamados nas histórias contadas às crianças, os Sanguinários. Mas ela não possuía os olhos vermelhos que aterrorizavam os contos populares. Seus olhos, de um azul cristalino, não despertavam medo imediato — apenas um fascínio desconfortável. Sua beleza, ainda que encoberta por um manto rasgado, chamava atenção demais. Por isso, mantinha-se velada, oculta na sombra do capuz, até alcançar seu destino. Felizmente, o corte que sofrera havia se fechado com a regeneração de seu sangue, e nenhum novo caçador cruzara seu caminho. Foi apenas quando a paisagem mudou — quando as florestas se tornaram mais densas, o vento mais cortante e a neve mais espessa — que soube: havia chegado ao Norte. O frio parecia capaz de congelar sua alma, mas mesmo assim, Rudbeckia manteve-se firme sobre a sela, cavalgando sem desviar os olhos do caminho. No alto de um desfiladeiro, avistou a cidade. Envolta por uma névoa densa, erguiam-se construções de pedra escura, cercadas por muralhas grossas. Fumaça subia em espirais constantes de chaminés rústicas, enquanto ao longe, no topo de um penhasco, repousava a visão que ela buscava: a fortaleza de Varmond. Era uma construção imensa, de pedra negra, com torres que cortavam o céu como punhais. Sombria, severa… e imponente. Diante daquela visão, o peito de Rudbeckia apertou-se. Ali habitava o homem que o império chamava de monstro. E era com ele que ela pretendia selar um pacto. Respirou fundo, observando o próprio bafo se dissipar no ar gélido. Apertou o passo. Meia hora depois, os cascos de seu cavalo pisavam sobre a ponte que se estendia sobre um rio congelado. A estrutura de madeira rangia sob o peso da montaria. Do outro lado, dois guardas protegiam os portões da fortaleza. Eles a observaram com estranheza. Ninguém chegava ali sozinho. E menos ainda, por vontade própria. Um deles se adiantou, empunhando a lança com firmeza. — Identifique-se. — inquiriu, a voz dura cortando o silêncio. O frio apertava seu peito, mas Rudbeckia manteve-se ereta na sela. Com um gesto controlado, abaixou o capuz do manto. A revelação de seu rosto causou um breve silêncio. A pele pálida e quase translúcida, os olhos límpidos e penetrantes, e os cabelos platinados que desciam como um véu de prata, criavam uma imagem que parecia saída de um sonho… ou de um pesadelo antigo. Os guardas hesitaram. Sua beleza era desarmante — e isso os perturbava. Mas sua voz, firme e baixa, cortou a ilusão. — Sou convidada do Duque Liriafrith. A declaração os fez franzir o cenho. Não haviam sido informados de visita alguma. E mesmo se fossem, quem, em plena sanidade, procuraria o tirano de Varmond por livre vontade? — O nome, por gentileza. — exigiu o outro guarda, agora mais cauteloso. O frio apertou-lhe o estômago, mas Rudbeckia ergueu o queixo. Sua voz saiu clara, quase desafiadora: — Sou Rudbeckia Eve Linperic, da Casa Linperic. Marquesa de Silinte. O nome caiu sobre os soldados como uma praga antiga. Engoliram em seco. Era um nome que não se ouvia em voz alta há muitos anos. Uma maldição dita com orgulho. A única criatura cuja fama se aproximava da do próprio Duque. Trocaram olhares, ainda incertos, mas recuaram. Um deles fez um gesto breve. Lentamente, os portões negros começaram a se abrir com um rangido gutural, como se a própria pedra protestasse. O vento soprou de dentro para fora, carregando o ar frio da fortaleza até o rosto de Rudbeckia. Ela sentiu o peso invisível que aquele lugar exalava… mas não hesitou. Segurou as rédeas e fez seu cavalo avançar. Naquele instante, não tinha mais pátria, nem aliados, nem lar. Apenas a lembrança de tudo que perdera. E a esperança, tênue mas ardente, de que ali — naquele castelo amaldiçoado — ela encontraria o único homem disposto a lhe dar a única coisa que desejava: Sobrevivência. ⸻ Os guardas não disseram uma palavra sequer quando a conduziram até a sala de recepção da fortaleza. Apenas a deixaram ali, sozinha — como se a presença dela fosse perigosa demais para ser acompanhada por muito tempo. O salão era frio, imponente e silencioso. Candelabros de ferro lançavam sombras trêmulas nas paredes de pedra escura, onde tapeçarias com brasões de guerra pendiam como sentinelas esquecidos. Havia uma longa mesa de pedra ao centro, o piso impecavelmente limpo, as janelas altas cerradas pelo peso da neve do lado de fora. Rudbeckia permaneceu de pé, imóvel por alguns instantes, sentindo o ar pesado pressionar seus ombros. Não havia calor ali — nem no ambiente, nem nas intenções. Tudo ao seu redor sussurrava que não era bem-vinda. Ainda assim, caminhou. Seus passos suaves ecoavam contra a pedra como se invadissem o silêncio com ousadia. Observava os detalhes com cautela: o estilo rústico, os móveis austeros… aquilo era uma fortaleza, mas também uma morada. Havia rigidez ali, mas também ordem. Tudo era simples — e perigosamente limpo. Os poucos servos que passavam a observavam de soslaio. Nenhum ousava encará-la por muito tempo. Era como se temessem que apenas olhar por muito pudesse trazer consequências. Ela parou diante da lareira. A pequena chama crepitava, como se resistisse ao frio junto com ela. Estendeu as mãos para o calor e fechou os olhos por um breve instante — o único momento de descanso desde que deixara Silinte. Foi então que a porta se abriu com um ranger baixo, mas firme. Ela se virou de súbito, o coração disparando no peito. Os olhos arregalados encontraram a figura que adentrava o salão com passos lentos e seguros. Ele era alto, de ombros largos e postura imponente. Cabelos negros ligeiramente desalinhados caíam sobre a testa, e os olhos… os olhos azuis eram como gelo pressionado contra vidro. Claros, frios, belos. Seu rosto era austero, bem delineado, de feições nobres. Um manto escuro caía sobre os ombros e uma espada balançava sutilmente à cintura. Ele parou diante dela e sorriu. Um sorriso impossível de decifrar — não era gentil, nem cruel. Era… perigoso. Rudbeckia deu um passo para trás, instintivamente. Pela primeira vez, se perguntou se havia cometido um erro ao vir até ali. Será que aquele era o monstro de que todos falavam? — Então você veio — disse ele, a voz baixa, firme, quase sussurrada. Havia uma rouquidão ali. Um peso. E algo mais… algo sedutor. Caminhou até a mesa, sem pressa, e pegou uma taça de vinho como se aquele momento não tivesse qualquer urgência. Ele não demonstrou surpresa diante de sua aparência — o que, de algum modo, a irritou mais do que se ele tivesse reagido. — Como sabia que eu viria? — ela perguntou, em tom contido, defensivo. Ele girou a taça na mão, observando o líquido rubro. — Porque ninguém sobrevive sozinho. Imaginei que em algum momento chegaria a essa conclusão. Ela franziu o cenho, sentindo o sangue latejar nas têmporas. — Está dizendo que sabia da minha situação? — Todos sabem — respondeu ele, com uma serenidade perturbadora. — A última Linperic. Um nome carregado de sangue e silêncio. Não era difícil adivinhar para onde correria quando não houvesse mais para onde fugir. Bebeu um gole, os olhos ainda fixos nela. — Confesso, contudo, que os relatos não faziam justiça à sua beleza. Ela permaneceu calada por um instante. A tensão em seu corpo parecia aumentar a cada palavra trocada. Estava sendo avaliada. Não como uma aliada, mas como um enigma. — Então foi por isso que me deixaram entrar… — murmurou. Ele pousou a taça com lentidão sobre a mesa. Não respondeu. Apenas se aproximou. Um passo. Depois outro. O som de suas botas preenchia o salão como um tambor de guerra distante. Rudbeckia permaneceu onde estava, tentando não se encolher, mas ele parou diante dela. Próximo demais. Perto o suficiente para que ela sentisse o calor que emanava do corpo dele — um calor que contrastava com o frio ao redor. Sua altura a fazia erguer o rosto para encará-lo, e sua presença parecia absorver todo o ar da sala. — O que pensa que está fazendo? — ela perguntou, a voz trêmula. Ele a observava com intensidade desconcertante. — Quero saber o que veio buscar, Rudbeckia Eve Linperic. Ela estremeceu. Como ele sabia seu nome completo? O quanto sabia sobre ela? Aquele olhar parecia despir mais que seus pensamentos. E antes que pudesse reagir, empurrou-o com força — ou tentou. O peito dele era sólido como pedra. Ainda assim, ela se afastou, erguendo o queixo em desafio. — Quero apenas uma coisa — declarou com firmeza. — Que você garanta minha sobrevivência. Ele sorriu. Um sorriso de quem finalmente ouviu o que queria. — Ora… isso é mais do que razoável — murmurou, com um brilho faminto nos olhos. O silêncio caiu novamente entre os dois. Mas agora era diferente. Cheirava a tensão. Cheirava a um pacto sendo costurado no escuro. Cheirava a sangue. E então, Alastair inclinou levemente a cabeça, os olhos fixos nos dela. O sorriso desapareceu, substituído por uma expressão cortante, impenetrável. — E o que, exatamente, eu ganho com isso?