Capítulo 7 — As Formalidades do Início
As coisas haviam se tornado mais conturbadas para Rudbeckia depois do incidente naquela tarde. Sua demonstração de magia de sangue não foi recebida com entusiasmo — mesmo tendo salvado a vida de um guarda, o ato rendeu cochichos e olhares ainda mais pesados pelos corredores da fortaleza. Os servos, que já eram cautelosos quanto à presença da Linperic, agora a tratavam com ainda mais distância. Corriam boatos sobre “o chicote de sangue horripilante” que ela teria usado. Era o bastante para alimentar o medo generalizado. Mas que diferença fazia? Ela nunca teve uma boa reputação. Nunca esperou ser bem-vinda. Rudbeckia tentou ignorar. Tinha outras prioridades. Após memorizar boa parte da estrutura da fortaleza, dirigiu-se até a biblioteca. Beau havia mencionado que ela teria livre acesso ao espaço, então não hesitou. Entrou sem pedir permissão a ninguém. A biblioteca era um cômodo vasto e austero. Prateleiras de madeira escura alcançavam o teto, janelas altas deixavam entrar a luz cinzenta do fim de tarde. Era um ambiente frio, silencioso, e ainda assim… acolhedor. Pelo menos para ela. Sabia que aquele se tornaria o local mais frequentado por ela na fortaleza. Não por necessidade, mas por sobrevivência emocional. Havia passado tempo demais em silêncio, com a mente girando sem direção. Ler era sua forma de respirar. Passava lentamente por entre as estantes, os dedos deslizando pelas lombadas empoeiradas. A maioria dos títulos era sobre guerra, política, administração… temas que não lhe causavam o menor interesse. Revirou os olhos mais de uma vez. Foi então que algo chamou sua atenção. No canto de uma prateleira, entre volumes técnicos e relatórios históricos, havia um livro vermelho vivo com o título gravado em dourado: “Entre Asas e Correntes”. Um título diferente. Inesperado. Sem vestígios de burocracia ou batalhas. Um meio sorriso surgiu em seu rosto. Ergueu o braço para pegá-lo. Mas antes que seus dedos tocassem a lombada, ouviu o rangido da porta se abrindo. A biblioteca, até então vazia, agora recebia outra presença. Suas sobrancelhas se arquearam — surpresa, e também irritação. Esperava manter aquele lugar apenas para si. Virou-se lentamente… e deparou-se com uma mulher alta, elegante, de postura rígida. Cabelos escuros com mechas grisalhas presos num coque perfeito, olhos verde-escuros que analisavam com frieza cada movimento. Vestia o uniforme tradicional das servas, mas era óbvio que havia algo de diferente nela. — Marquesa Linperic. — chamou com voz firme e sem qualquer sinal de simpatia. As duas se encararam por alguns segundos. A tensão era espessa como neblina. Nenhuma das duas se moveu. — Seria um prazer conhecê-la, se ao menos soubesse quem era. A frase, pronunciada de forma quase diplomática, vinha carregada de veneno. Elizabeth a examinava dos pés à cabeça como se tentasse desmontar sua dignidade com o olhar. Rudbeckia cruzou os braços, mantendo o queixo erguido. Não seria vencida em um duelo silencioso. Seus olhos azuis cristalinos se fincaram nos da mulher, e um leve sarcasmo se espalhou por seu rosto. — Perdão pela falta de cortesia. — a mulher se curvou brevemente. — Sou Elizabeth Renege. Governanta-chefe desta casa. Ao seu dispor, Marquesa. O título foi dito com ênfase. Formal, mas carregado de resistência. Rudbeckia franziu levemente a testa. Soava mais como um aviso do que uma apresentação. — A governanta-chefe… — disse lentamente. — Achei que teria vindo mais cedo se apresentar. Principalmente à futura senhora desta casa. Dessa vez, a expressão de Elizabeth se contraiu. O desconforto era evidente, mesmo que ela tentasse esconder. — Estava observando de longe. Acabei por perder o momento apropriado. A troca de olhares entre elas continuava como uma batalha muda. Era como se medidas de força fossem tomadas com cada palavra. — Veio apenas para isso? Rudbeckia se aproximou, notando o quanto Elizabeth era mais alta que ela. Mas nem por isso recuou. — Vim também informar que a ala dos aposentos nobres está organizada. A criadagem está sob minha supervisão direta. Qualquer solicitação, grande ou pequena, deve passar por mim. A platinada estreitou os olhos. Aquela fala parecia mais uma linha traçada no chão do que um simples aviso. Mas tudo bem. Ainda não era oficialmente Duquesa. Por enquanto, suportaria. — Claro. Só espero que não haja resistência em cumprir ordens. Disse com calma, mas o tom deixava claro que era uma provocação. — De forma alguma. Não desobedeceria alguém do Ducado de Liriafrith. Mais uma vez, a frase parecia excluí-la. Como se dissesse: você ainda não pertence a esta casa. — Bom saber. — respondeu Rudbeckia com um sorriso falso. — Por último, o Duque requisita sua presença no jantar. Com isso, encerro minha visita. Elizabeth fez uma breve reverência impessoal e se retirou, rígida, sem olhar para trás. Rudbeckia permaneceu ali por alguns segundos, imóvel. Sua respiração ficou levemente acelerada. Aquela mulher era do tipo que lutava em silêncio — fria, observadora, perigosa. Uma verdadeira sombra. Mas não teria tempo para pensar nela agora. O Duque a esperava. E quando se tratava de Alastair Liriafrith, o inesperado era sempre o que vinha primeiro. ⸻ Apesar de já estar há alguns dias na propriedade Liriafrith, Rudbeckia continuava recusando a ajuda das servas. Vestiu-se sozinha, com dificuldade, mas preferia isso a permitir que pessoas em quem não confiava se aproximassem. Por essa razão, seu cabelo estava preso em um coque malfeito, com alguns fios soltos caindo pelo rosto. Ainda assim, o vestido que usava estava impecável. Escolhera uma das peças deixadas em seu guarda-roupa, junto com os acessórios e sapatos. Rudbeckia usava um vestido longo de veludo negro, com o corpete ajustado ao corpo e bordado em fios prateados escuros. As mangas justas se abriam nos punhos com tecido leve e translúcido, enquanto a saia fluida escondia uma camada de seda vermelho sangue, visível a cada passo. Um cinto de prata com uma pedra rubi adornava sua cintura, e os brincos de cristal vermelho que usava lembravam gotas prestes a cair. Imponente e sombria, ela parecia uma sombra nobre — perigosa, bela e impossível de ignorar. Estava tensa e ficou ainda mais apreensiva ao parar diante da porta do salão. Respirou fundo antes de empurrá-la, entrando com o olhar firme. Não podia demonstrar fraqueza. Pelo menos não diante do seu futuro marido. Assim que pisou com seus saltos no salão, deparou-se com um ambiente formal. Uma mesa longa, adornada com simples elegância, estava posta para poucos convidados. Velas altas iluminavam o cômodo com uma luz suave e dourada. Alastair já estava à cabeceira, observando. Rudbeckia não percebeu, mas os olhos de Alastair brilharam ao vê-la. Aquela joia vermelha atravessando o salão pareceu acender tudo ao redor. Ele já conhecia sua beleza, mas ela se tornava mais intensa a cada encontro, mais difícil de ignorar. — Minha futura esposa honra a mesa. Achei que talvez fugisse da cerimônia. — disse, com seu costumeiro sorriso sedutor e o olhar carregado de imprevisibilidade. — Pensei nisso. Mas imaginei que os boatos seriam piores se eu faltasse. — respondeu com naturalidade, mantendo o mesmo tom afiado. As palavras ásperas de Rudbeckia o animavam. Poucos ousavam falar com ele daquela forma. Nem sempre gostava de ser desafiado, mas com ela… havia algo diferente. Um prazer que ele próprio ainda não compreendia. Sem pensar muito, Alastair levantou-se da cadeira e caminhou até ela. Rudbeckia recuou levemente, ainda sem saber o que esperar de seus gestos. Ao se aproximar, ele estendeu a mão — grande, calejada de empunhar a espada. Hesitante, ela a segurou. Com isso, ele a guiou até uma cadeira próxima à sua — o que a surpreendeu. Imaginava que se sentaria longe, como no jantar anterior. Mas o salão era outro, e a mesa, muito mais longa. Alastair puxou a cadeira com naturalidade, e Rudbeckia sentou-se sem desviar os olhos dele. O Duque retornou à sua posição, acomodando-se novamente. Nenhum dos dois desviava o olhar. O clima era tenso, e ela esperava ansiosa pelo tema que seria abordado naquele jantar. Ela não fazia a menor ideia do que esperar. E, com Alastair, isso nunca era um bom sinal.