Capítulo 7 – Carne, Sangue e Contratos
O céu estava mais escuro do que o habitual naquela noite. Nenhuma estrela. Só a dança irregular das chamas das tochas iluminando o acampamento, e o vento que rasgava o ar com um uivo constante. Havia silêncio entre os soldados — e isso, naquele lugar, já era um presságio. A batida na porta da carruagem foi seca. Impessoal. — O Duque quer vê-la. Agora. Não houve título, nem saudação. Apenas a ordem. Respirei fundo antes de me mover. Estava exausta. O corpo latejava dos solavancos do dia, e os pulsos ainda marcados pelas algemas do costume. Mas não protestei. Eu queria saber o que aquele maldito planejava agora. E se me chamava à noite, não era para conversas cordiais. Desci da carruagem com passos firmes, ainda que o tornozelo esquerdo estivesse reclamando da má posição em que dormi. Dois guardas me acompanharam, como sempre. Um à frente, outro atrás. O acampamento seguia em ritmo reduzido, como um animal selvagem que descansa de olhos abertos. Foi impossível não notar a tenda principal. Diferente das outras — mais alta, mais ampla, as bordas reforçadas com couro escuro e brasões de costura vermelha flamejante. O símbolo de Varmond parecia brilhar nas dobras do tecido, como se o próprio norte me lembrasse quem mandava ali. Os soldados pararam diante da entrada. Um deles a abriu sem cerimônia. — Entre. — disse o mais velho, desviando o olhar. Nem ousou cruzar o meu. Entrei. E, por um breve segundo, o calor da tenda me pareceu uma armadilha. Não por causa das brasas crepitando no braseiro ao canto, nem pela lona grossa que abafava o frio. Era o tipo de calor que alertava — o de um predador em repouso, esperando o momento certo. Alastair estava sentado atrás de uma mesa improvisada, coberta de mapas, pergaminhos e algo que parecia uma garrafa de licor barato. Ele escrevia, concentrado, como se o mundo não estivesse desmoronando lá fora. Ao lado dele, Beau segurava uma pilha de papéis, tentando manter os olhos abertos. Tinha um corte fino no rosto, provavelmente de um acidente bobo. Com aquele grau de coordenação, me surpreendia ainda estar vivo. O tirano não ergueu os olhos. Apenas disse, com a calma de quem dita a sentença de um condenado: — Sente-se. Cruzei os braços, as correntes tilintando de leve. Não dei um passo. — Prefiro ficar de pé. Vá direto ao ponto. Ele pousou a pena, soltou o ar devagar. E, então, levantou o olhar. — Quero que seja minha esposa. A frase caiu como uma lâmina cega. Sem aviso. Sem vergonha. Soltei uma risada seca, cínica. — Você precisa de mais terapia do que imaginei. Ele nem piscou. Só deixou as palavras escorrerem com aquela tranquilidade que mais parecia ameaça: — O império vive de herdeiros, sucessões, pureza. Tudo precisa ser impecável. Agora imagine isso ruindo. Uma Linperic ao meu lado? A bruxa maldita de sangue podre? Não existe coroa que sobreviva a esse escândalo. Franzi o cenho, confusa. Um incômodo começou a coçar no fundo da mente. — Espera… por que você seria imperador? Ele soltou um sopro leve, quase rindo, e apoiou os antebraços na mesa como quem se prepara pra empurrar alguém no abismo. — Porque sou filho do velho desgraçado que veste a coroa. Travei. Ele continuou, indiferente à minha expressão. — Para ser mais exato, sou seu bastardo. Assumido. Mas bastardo. O império finge que não importa, até o trono precisar de alguém que saiba matar melhor do que sorrir. A revelação bateu como um soco seco. Filha da casa arruinada… e agora sequestrada por um bastardo da coroa. Por um instante, senti algo que não esperava: um fio de empatia. Também era bastarda. Meu sangue Linperic vinha corrompido — sem os olhos vermelhos da linhagem, sem o domínio sobre o sangue fora do corpo. Sempre fui a falha no legado. E, de certa forma, ele também era. Um erro que o império fingia tolerar. Mas a fagulha morreu rápido. Bastou lembrar do modo como me comprou, me encurralou, me humilhou desde o primeiro segundo. Se éramos falhas no sistema, ele escolheu ser a pior versão da sua. — Então essa é sua grande ideia? Me arrastar até o altar como peça de escândalo? Me transformar em escudo? Em piada? — cuspi. — Só alguém com sangue imperial pensaria assim. Ele soltou um riso curto, sem humor. — Você odeia a família imperial? Ótimo. Eu odeio mais. A firmeza no tom me desarmou por um segundo. Não era teatro. Era veneno puro. Velho, guardado. Algo que ele carregava como faca nas costas. Engoli em seco. — Não ouse achar que somos parecidos — disparei. — Eu prefiro morrer do que ser usada pra sustentar o joguinho de um bastardo amargo. — Ótimo — respondeu ele, tranquilo. — Eu também prefiro que morra… se sair da linha. Silêncio. E ali, naquele olhar gélido, percebi a verdade: Eu não tinha escolha. Mas ele também não. E talvez fosse isso que tornava aquele lunático ainda mais perigoso. Não era apenas força. Ou sede de controle. Era método. Uma máquina sem freios — e com objetivos claros. Eu, por outro lado, precisava de tempo. De espaço. E de uma brecha pra sair viva. Ficar com ele era arriscado, sem dúvida. Ser arrastada pra Varmond como esposa de um bastardo tirano era um cenário que qualquer mulher em sã consciência rejeitaria. Mas… fugir? Voltar a ser caçada, marcada, negociada de novo como uma maldita mercadoria? Isso não estava na lista de opções. Ali, naquela tenda sufocante, com o cheiro de chá barato e tinta fresca no ar, comecei a pesar os prós e contras como quem calcula a distância entre a borda do penhasco e o primeiro degrau visível. Contras? Incontáveis. Estaria presa. Rodeada de soldados leais a ele. Usada como símbolo de escárnio público. Alvo de todos que quisessem o trono — ou sua cabeça. Prós? Um nome forte o bastante pra calar os caçadores. Um lar — mesmo que uma prisão — onde não precisaria mais correr. A chance de observar… de sobreviver… e, quem sabe, um dia, virar o jogo. Fechei os punhos. Faria isso. Mas às minhas condições. Levantei o queixo e encarei o homem com olhos de gelo. — E o que eu ganho com isso? Ele sequer fingiu surpresa. Apenas respondeu, seco: — Proteção. E um trono ao seu lado. Simbólico, mas seu. Um nome que ninguém mais ousará tocar. “Um nome”, pensei. A palavra tilintou como ferro nas correntes do meu pulso. Não era liberdade, mas era poder. Mesmo que disfarçado. — E eu quero garantias — acrescentei. — Uma. Que você nunca me toque. Nunca encoste um dedo em mim. Ele inclinou a cabeça… e riu. Não alto. Não forçado. Uma risada baixa, carregada de escárnio. — Que dramática — disse, com aquele sorriso torto e irritante. — Acha mesmo que eu sentiria desejo por uma mulher que me odeia de olhos abertos? A bile subiu. A audácia daquele homem era inacreditável. — Feito — completou, ainda se divertindo com a própria ironia. — Mas é uma pena. Seu charme selvagem poderia me convencer… se eu fosse mais masoquista. Mordi o lábio por dentro, tão forte que senti o gosto de sangue. Maldito. A resposta veio fácil demais. Arrogante demais. O tipo de homem que não mentia — não por honra. Mas por puro desprezo. Me aproximei. Um meio sorriso zombeteiro puxou minha boca. — Pacto de sangue. Vamos selar como se faz entre os amaldiçoados. Pela primeira vez, os olhos dele hesitaram. Não em medo. Em cálculo. — Você pode transformar seu sangue em veneno — disse, firme. — Acha que não estudei sua linhagem? Eu não sou burro. — E eu não sou idiota. Um papel pode ser queimado. Um juramento com sangue, não. Ele me analisou como quem observa uma fera em gaiola — e tenta decidir se vale o risco abrir a porta. Silêncio. Mas ali, naquele segundo, a barganha estava selada. Dois monstros. Um contrato. E um império que tremia, mesmo sem saber. Beau limpou a garganta, sem graça, como se quisesse evaporar dali. — Eu… trouxe um contrato tradicional, como o Duque pediu. — disse, estendendo os papéis com as mãos trêmulas. Minhas sobrancelhas arquearam no mesmo instante. Peguei o documento e li por cima, cada linha marcada com o veneno prático de um casamento que não era casamento, uma união simbólica entre o monstro do norte e a bruxa maldita. Sem obrigações físicas. Sem fingimentos românticos. Mas com meu nome estampado ao lado do dele. Fechei o papel com firmeza e o joguei de volta na mesa. — Isso é ridículo. Eu não assino porcaria nenhuma escrita por você. Se quiser um acordo, será de sangue. Como os amaldiçoados fazem. Ou não será. O silêncio foi instantâneo. Beau gelou. Alastair só me observou, com aquela expressão que sempre parecia entre o tédio e a fúria. Então ele se inclinou lentamente, os olhos estreitando como se falasse com uma criança mimada. — Não. — respondeu, seco. — O pacto será no papel. Sem magia. Sem rituais. Sem exigências infantis. Me aproximei, mantendo o queixo erguido. — E se eu recusar? Ele sorriu. Não com humor — com ameaça. — Aí eu simplesmente devolvo você. — disse, como quem comenta sobre o clima. — Faço um bom relatório ao Império, anulo a compra e deixo que revendam você ao melhor lance. Aposto que tem um velho gordo com mãos suadas implorando por uma Linperic arranhada. Fiquei parada. O coração acelerou… mas os músculos não se moveram. Ele sabia. Sabia que eu não podia voltar. Não depois do que viram em mim. Do que sabiam. A essa altura, o Império me queria morta ou acorrentada. Talvez ambos. Engoli a bile e estendi a mão, com a calma de quem afia a lâmina antes do corte. — Me dá essa droga. Beau correu para entregar a pena. Assinei o maldito papel com força suficiente para quase rasgar a superfície. Alastair pegou em seguida e, sem cerimônia, rabiscou a assinatura como se estivesse aprovando uma execução. Beau, hesitante, assinou como testemunha. A pena tremia entre seus dedos. Guardei o silêncio. Não por respeito. Mas porque havia entendido: Ali, respeito era só outra forma de sobrevivência. E naquele instante, o que assinei não foi um casamento. Foi uma sentença suspensa. Um nome. Um papel. Uma aliança entre monstros. E às vezes, sobreviver… já era o bastante.