Capítulo 5 — Primeiras Impressões
Rudbeckia havia dormido bem. Na verdade, dormira melhor do que em qualquer outro momento dos últimos anos. A cama era larga, o colchão firme e quente, as cobertas pesadas do jeito certo, bloqueando o frio das pedras da fortaleza. O silêncio ali era completo, e pela primeira vez em muito tempo, não acordou no meio da noite assustada com passos, galhos estalando ou o vento batendo nas janelas de uma casa caindo aos pedaços. Foi estranho. Acordar descansada era uma sensação quase esquecida. Mas quando abriu os olhos e olhou ao redor, a realidade voltou com peso. Estava ali. No castelo de Varmond. No território do Duque tirano. E agora era sua noiva. Ainda não acreditava no que havia feito — mas torcia para que tivesse tomado a decisão certa. Sentada sobre a cama, os pés ainda sobre o tapete grosso, Rudbeckia encarava a parede branca e bem cuidada. O contraste com o que deixara para trás era gritante. O quarto era amplo, limpo, arejado. Tinha móveis fortes, tudo em ordem. Luxuoso, mas sem ostentação. Tudo ali era funcional — diferente da antiga mansão Linperic, onde as paredes estavam rachadas, o teto ameaçava desabar e a umidade impregnava tudo. Por mais que este lugar fosse superior em tudo, havia algo que ela ainda sentia falta: o silêncio absoluto de viver sozinha. Na mansão decadente, ela era a única alma viva. Não havia passos no corredor, nem olhos a julgando pelas costas. Aqui, estava sempre em alerta. A qualquer momento, um olhar torto poderia significar uma ameaça. — Marquesa Linperic? — uma das servas a chamou da porta, segurando uma toalha dobrada nos braços. Duas mulheres entraram com o desjejum. A bandeja estava cheia — pães quentes, frutas frescas, chá, queijos. Comida de verdade. Pela primeira vez em muito tempo, não havia nada cru, sangrento ou arrancado da floresta. Apenas uma refeição feita com calma. — Deixem aí e podem sair. — pediu, sem rodeios, mas sem agressividade. As duas assentiram com rapidez e, sem sequer manter contato visual, deixaram os itens na mesa e saíram do quarto quase correndo. Falavam baixo, e era nítido que estavam com medo. Rudbeckia só voltou a relaxar depois que ficou sozinha de novo. Ainda era mais fácil assim. Ela não odiava as pessoas. Mas também não sabia mais como estar entre elas. Já haviam tentado matá-la tantas vezes, de tantas formas, que passou a não se permitir mais baixar a guarda. E depois de tanto tempo vivendo isolada, não era simples confiar em alguém — muito menos numa fortaleza cheia de rostos desconhecidos. Ainda assim, não era burra. Sabia que aquela vida era, sem dúvidas, melhor do que os dias de fome e frio em Silinte. Levantou-se da cama ainda de pijama, os cabelos longos, platinados, bagunçados caindo sobre os ombros. Caminhou até a mesa, onde a bandeja fumegava, e se sentou. Comeu devagar, experimentando um pedaço de pão com manteiga, depois uma uva doce. O chá estava no ponto certo. Fechava os olhos entre uma mordida e outra, como se estivesse redescobrindo o prazer de comer. Fazia caretas de satisfação sem perceber. Talvez fosse loucura ter se aliado a Alastair. Talvez estivesse se enfiando em algo pior do que a solidão. Mas pelo menos… naquele dia, naquele quarto, com aquela comida quente, não parecia a pior decisão que já havia tomado. ⸻ Depois de aproveitar seu momento de silêncio durante o desjejum, Rudbeckia teve certa dificuldade para vestir o vestido de inverno escuro sozinha. A quantidade de tecido, os botões nas costas e a modelagem ajustada não colaboravam. Ainda assim, preferia o esforço físico ao desconforto de permitir que mãos estranhas tocassem seu corpo. Demorou, mas conseguiu. O vestido caiu bem. O tecido pesado se ajustou perfeitamente à sua silhueta, e o tom escuro contrastava com a palidez da pele. Por cima, colocou uma capa cinza que descia dos ombros até a altura dos tornozelos. O frio do fim daquela manhã foi amenizado. Sentiu-se aquecida, confortável… e estranhamente preparada. Ainda se perguntou de onde vieram aquelas roupas. O vestido, as joias, os sapatos. Nada daquilo lhe pertencia antes. Abrira o guarda-roupa ao acordar e encontrou tudo ali, dobrado e pendurado como se sempre tivesse sido seu. Mas não era. Não sabia quem deixara, nem quando. E não queria perguntar. Decidiu sair do quarto. Era o segundo dia na fortaleza e ainda não havia conhecido o lugar. Caminhava pelos corredores com passos calmos, o olhar atento a cada detalhe: tapeçarias pesadas, janelas estreitas, vitrais coloridos, colunas de pedra escura. Tudo carregava a rigidez e o peso do norte. Apesar dos olhares curiosos — e em alguns casos, temerosos — dos servos que cruzava, ignorou todos. A arquitetura era mais interessante que os julgamentos silenciosos. Depois de alguns minutos percorrendo os corredores internos, alcançou uma área aberta com colunas que davam acesso a um jardim interno. Seus olhos se acenderam com a visão. Havia neve por todo lado, mas ainda assim era possível notar a organização da flora: árvores altas, arbustos robustos, flores resistentes ao frio, todas cobertas por um manto branco. Era um espaço limitado, cercado por muros, mas o ar ali parecia mais leve. Livre. Ela atravessou uma das aberturas do corredor e entrou na parte descoberta, passando os dedos pelas pétalas geladas de uma flor ainda viva. Sorriu. Foi um momento raro. Simples, breve… mas real. Tão distraída estava com os detalhes do jardim que não notou quem se aproximava pelo mesmo corredor. Alastair, a caminho de um compromisso, desviou o olhar por um instante ao cruzar aquele setor — e então a viu. Ela estava de costas, mexendo nos arbustos cobertos de neve. O cabelo platinado brilhava à luz fraca do sol. E, por um segundo, ele a viu sorrir. A cena o prendeu no lugar. Havia algo ali que o fez parar sem pensar. Ele alterou o trajeto sem qualquer hesitação e virou na direção do jardim. Beau, que o acompanhava, franziu o cenho. Sabia que o salão de reuniões ficava no outro sentido. Mas não disse nada — apenas seguiu, já acostumado com as mudanças de rumo imprevisíveis do Duque. Ainda assim, não conseguia esconder o desconcerto. Era raro ver Alastair interromper algo por qualquer razão. Mas havia algo naquela mulher. E ele estava claramente curioso para descobrir o que mais ela escondia por trás daquele sorriso. — Vejo que as roupas lhe caíram bem. — A voz rouca e repentina, próxima demais, fez Rudbeckia sobressaltar. Virou-se bruscamente, levantando-se em alerta. Não tinha percebido a aproximação do Duque, e aquele sorriso pretensioso que ele trazia no rosto a deixou ainda mais desconcertada. — Você não sabe chegar como uma pessoa normal?! — reclamou, com a mão sobre o peito, tentando recuperar o ritmo da respiração. — Isso me assustou. — E como eu cheguei para você? — provocou Alastair, com o mesmo sorriso malicioso, aproximando-se com lentidão, até quase encurralá-la. — Vi minha noiva explorando minha fortaleza sem mim… e não consegui resistir. Me senti até um pouco rejeitado por não ter sido chamado para o passeio. Rudbeckia arqueou uma sobrancelha, o tom irônico na expressão. Ainda sentia um certo incômodo sempre que ele se aproximava com tanta liberdade. O Duque era imprevisível — e ela sabia que fama negativa não era exclusividade da família Linperic. — Não achei que o Duque valorizasse tanto minha presença a ponto de querer ser convidado. Mas, se me permite, eu não lhe chamaria nem sendo paga por isso. Alastair riu. Uma risada verdadeira, sem disfarces. Fazia tempo que alguém ousava falar com ele assim. — Que doce da sua parte. — respondeu com sarcasmo. Levou a mão até o rosto dela, tentando tocá-la, mas ela se esquivou com rapidez. Ele pareceu se divertir ainda mais com isso. Beau, parado a poucos metros, observava a cena em silêncio. A tensão entre os dois era evidente. Os olhares, os sorrisos forçados, as farpas disfarçadas de provocações. Aquilo não parecia nem de longe um casamento de fachada — pelo menos não por parte do Duque. Havia algo diferente no ar. Desviou o olhar, desconfortável. Aquela troca parecia íntima demais para um terceiro estar presenciando. Mas o dever o obrigou a intervir. — Perdão, senhor. O regente da muralha norte chegou com os relatórios da patrulha. Ele aguarda no salão estratégico. É urgente. Alastair manteve os olhos em Rudbeckia por mais alguns segundos, depois suspirou. — Deveres me chamam. Mas vejam só… deixo meu melhor homem aqui. Ele saberá apresentar Varmond à minha querida noiva. Sem esperar qualquer resposta, virou-se e partiu na direção do compromisso — agora, ao menos, seguindo o caminho correto. Rudbeckia permaneceu imóvel. Beau apenas arregalou levemente os olhos. Ambos ficaram ali, por um instante, processando o que acabara de acontecer.