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Capítulo 5 – O Início da Estrada

Capítulo 5 – O Início da Estrada

O dia começava do mesmo jeito que a noite terminou: cinza, abafado, insuportável. A névoa cobria o mundo como um pano sujo jogado sobre um cadáver. O cheiro de terra úmida, ferrugem e couro me preenchia as narinas dentro daquele cubículo ambulante.

As rodas da carruagem rangiam sobre o solo irregular e cada solavanco era uma lembrança incômoda de que eu não tinha controle algum sobre nada. Meus pulsos ainda estavam presos por correntes, mais como um aviso do que como necessidade. Eu poderia matar alguém mesmo algemada. Já tinha feito coisas piores com menos liberdade.

Através da pequena janela lateral, o mundo passava sem me notar. Cavalos negros, armaduras do norte, fileiras de homens com os olhos vazios — a comitiva de Varmond era tudo o que diziam ser. Fria. Precisa. Sem alma.

E eu, enfiada no centro disso tudo, como um troféu maldito sendo transportado entre ruínas.

O estômago revirava a cada tranco. Sentia o gosto metálico subir pela garganta — talvez fosse náusea, talvez fosse raiva. Não sabia mais distinguir. Eu não sabia onde estava, nem para onde me levavam. Apenas que estava sendo levada.

Meu nome tinha sido vendido. Minha história, apagada. E agora, meu corpo atravessava a estrada dentro de uma caixa com rodas como se já não fosse meu.

Eles acham que me compraram. Que me domesticaram.

Mas monstros não se vendem. E bruxas… não esquecem.

O inferno não era feito de fogo. Era feito de madeira, ferro e estrada. E eu estava presa nele há horas.

As juntas doíam, os músculos ardiam, e cada vez que o eixo da carruagem enganchava numa pedra maldita, eu tinha vontade de vomitar tripas e sangue. No fim, foi meu orgulho que gritou primeiro. Comecei a socar a madeira da parede como uma condenada.

— Pretendem me deixar apodrecer nesse cubículo? Eu sou prisioneira, não um cadáver! — berrei, sem me importar com quem ouvisse.

Do lado de fora, o som dos cascos diminuiu. A marcha desacelerou. Um zumbido de vozes abafadas. Passos. E então silêncio.

Até que ouvi a voz dele.

— Deixem a dama respirar. Mas não soltem as algemas.

Seca. Fria. Preguiçosa. Como se estivesse autorizando um cachorro a farejar o campo.

A porta se abriu com um rangido irritante e a luz gélida me atingiu como um tapa. Dois guardas me observavam com aquelas expressões inúteis de sempre: vigilância e nojo.

Desci com os pulsos ainda algemados, sentindo o solo duro sob as botas mal ajustadas. O vento cortava a pele como se quisesse lembrar que liberdade era só um conceito estúpido.

Soltei um suspiro curto. Quase um riso.

— Gracioso da sua parte, excelência. Sabe que tipo de praga eu podia jogar nessa carroça se estivesse podre de verdade?

Os guardas não responderam. Estavam muito ocupados fingindo que minha língua não era mais afiada que qualquer arma.

Meus olhos buscaram o bastardo. Alastair estava ali, montado no cavalo escuro como a própria reputação. O manto pesado balançava com o vento e, apesar da postura rígida, eu vi. Vi o ombro ainda tenso, o curativo debaixo da armadura.

A ferida que eu causei.

Eu podia curá-lo. Bastava um corte. Algumas gotas do meu sangue e aquele machucado desapareceria em segundos.

Mas que se fodesse.

Ele que apodrecesse em carne viva. Que lembrasse de mim a cada movimento do braço. O Duque de Varmond tinha comprado uma bruxa, sim. Mas jamais compraria minha compaixão.

Ele me olhou, por fim. E eu o encarei de volta. Desafiando. Ardendo por dentro.

Que me levasse até o fim do mundo.

Mas que não se enganasse nem por um segundo: a corrente apertava, sim — mas era ele quem estava preso comigo.

A carruagem parou por minha causa. Porque eu berrei, esmurrei, exigi. Me recusei a apodrecer sentada naquele cubículo sufocante enquanto me arrastavam por deuses sabiam quantos dias. Já havia se passado algum tempo desde então.

Quando desci, o ar gelado mordeu meu rosto. Os punhos ainda acorrentados, dois guardas colados nos meus calcanhares, mas pelo menos eu estava de pé.

O acampamento improvisado se espalhava ao redor de um riacho lamacento. Cavalos sendo amarrados, soldados descendo com cautela. Olhei em volta — e o vi.

Alastair.

De costas. A capa longa esvoaçando. Ombro enfaixado, curativo manchado de sangue escuro — o mesmo sangue que eu fiz questão de derramar. Ficava bonito ferido. Quase humano.

Caminhei até ele, sentindo cada pedra gelada sob as botas. O tilintar das algemas parecia zombar do meu silêncio. O desgraçado nem se virou.

— Está mais quieta do que imaginei para uma criatura tão cara. — disse ele, a voz baixa e entediada, como quem comenta o tempo.

— Ainda estou decidindo se você é burro… ou apenas narcisista o bastante pra se achar meu dono.

Aí sim ele virou. Devagar, como se pesasse cada músculo. O olhar me cortou como uma lâmina embainhada. Não doía, mas avisava que podia.

Eu não desviei. Ele também não.

Dei mais um passo. O som das correntes se arrastando preencheu o silêncio.

— Pra onde diabos você tá me levando?

— Para o seu novo lar. Varmond.

Simples assim.

Meus dedos se fecharam com força nas correntes. As palavras bateram seco no meu estômago, como pedra.

Varmond.

A terra do tirano. O fim do mundo. E agora, aparentemente, a porra do meu “lar”.

— Ah, claro. Porque sequestrar uma mulher e arrastá-la pra um território gelado no cu do império sem explicar nada é perfeitamente normal. — cuspi, com sarcasmo e gelo na língua.

Ele parou. Os ombros se contraíram levemente. Virou o rosto por sobre o ombro e o sorriso nasceu — torto, lento, repulsivo.

— Como assim “sem explicação”? — disse, como quem brinca com uma criança birrenta. — Já te falei. Você vai ser minha esposa.

Minha garganta secou. Por um segundo, só um segundo, achei que ele estava brincando. Mas ninguém com aquela cara de cemitério zombava daquele jeito por diversão. Era prazer. Era escárnio.

— Você tá mesmo se ouvindo, Vossa Crueldade? — avancei um passo, as correntes rangendo. — Acha que porque pagou por mim naquele antro podre tem direito de me arrastar como um cão e ainda por cima exigir casamento?

— Exigir, não. — respondeu ele, tranquilo como a morte. — É uma ordem. Você foi adquirida, Linperic. E quem compra, leva. Sua opinião morreu no leilão.

Fiquei pasma por um segundo. Então era verdade — o apelido de tirano não era exagero. Era descrição literal.

— Leva? — gargalhei, seca, sem humor. — Então parabéns, tirano. Comprou um nome amaldiçoado, uma boca que cospe veneno e uma mulher que vai te fazer se arrepender de cada moeda. Boa sorte tentando carregar isso.

Ele se virou por completo. Caminhou até mim com calma, as botas esmagando a terra úmida, e parou a menos de um passo. Os olhos me fitaram como se já soubessem de tudo — cada pensamento, cada fraqueza, cada osso pronto pra ser quebrado.

— Você devia estar me agradecendo, Sophia Eve Linperic. Ninguém mais te queria. Nem seu nome. Nem seu sangue amaldiçoado. Mas eu… eu achei utilidade nisso. Isso vale algo.

— Não sou coisa pra ser usada. — rosnei. — E não vou ser esposa de um lunático que acha que tudo pode comprar com sangue e moedas.

— Não? — ele inclinou o rosto, olhos semicerrados. — Então vai fazer o quê? Voltar pra cela? Pedir asilo ao Império que queria você morta? Ou prefere fugir, algemada, pelos campos congelados de Varmond até ser devorada por lobos?

— Prefiro isso a deitar ao lado de um tirano.

O sorriso dele sumiu.

— Ótimo. — disse, com a voz mais baixa, mais gelada. — Continue preferindo. Porque se pensa que pode me ferir recusando um título, está enganada. Eu não preciso que diga ‘sim’. Apenas acontecerá como eu quero.

— Você é doente.

— Doente, não. — respondeu, sem perder o tom calmo. — Só não preciso fingir sanidade pra agradar ninguém.

Por um instante, nos encaramos. Não havia som além do farfalhar das folhas secas. Os guardas à distância fingiam não ouvir. Mas sabiam. O campo inteiro sabia. Ali, duas forças se testavam.

Ele queria uma arma. Eu era um incêndio.

E que se queimasse se insistisse em empunhar fogo.

E então se virou. Simples assim. Me deixou ali. Com os pulsos presos, o peito fervendo e a certeza amarga de que essa viagem ainda estava só começando.

Mas ele que soubesse: não importa o quão longe me leve — se me prender, vai sangrar.

O cheiro de fumaça e couro molhado dominava o ar. Guardas se movimentavam com precisão ao redor do acampamento improvisado, todos parecendo ter saído da mesma fornalha de brutalidade. E então, no meio daquele caos disciplinado, surgiu ele.

Um homem alto, de feições suaves e traços bem marcados, cabelos negros e longos, soltos sobre os ombros, como se o tempo tivesse esquecido de domá-los. Os olhos verdes, vibrantes, destoavam de tudo naquele lugar — não havia dureza ali, apenas… calor.

Carregava uma marmita de ferro entre as mãos e uma expressão que beirava o constrangimento.

— Oi. Achei que devia comer alguma coisa. Desculpa a demora, eu— começou ele, mas foi interrompido por si mesmo.

O pé enganchou num galho. O tropeço foi feio. A comida? Esparramada no chão como se tivesse decidido se matar.

— Droga! Desculpa, desculpa mesmo! Eu… eu pego outra… — disse, já se abaixando, o rosto em chamas de vergonha.

Fiquei apenas olhando. Sem me mover. A sobrancelha arqueada. Eu devia rir? Me irritar? Sentir pena?

— Você é sempre assim? Ou sou eu que dou azar? — perguntei, seca, mas sem veneno. Aquele ali… não parecia uma ameaça. Só um desastre com pernas.

— Ah, não… é… só sou assim mesmo. Eu me chamo Beau. — respondeu ele, olhando para cima, o cabelo caindo parcialmente no rosto, que ele empurrou de volta com um gesto rápido.

Sorriu.

E o sorriso dele… era errado. Errado naquele cenário, naquela terra, naquela caravana amaldiçoada. Era gentil. Humano demais. Quase pareceu… caloroso.

Meu instinto gritou que isso era perigoso. Ninguém sobrevive sendo assim em lugares como esse. Ou ele era um idiota completo… ou era muito mais do que deixava parecer.

Mantive meus olhos nele enquanto ele recolhia os restos da comida, sem me encarar mais.

— Você trabalha pro Duque? — perguntei, por impulso.

Ele assentiu, com um leve movimento de cabeça.

— Trabalho. Faz uns anos já. Mas… não do jeito que os outros fazem.

— Ah. Então você é o bobo da corte. — disparei.

Ele riu. Riu mesmo.

— Acho que… sou mais um quebra-gelo. Mas oficialmente sou seu assistente.— disse, ainda de joelhos, com a voz leve.

Não respondi.

Mas por dentro… algo se remexeu. Porque aquele homem, com aquele rosto bonito demais e a fala mansa demais, acabava de me lembrar que Varmond não era feito só de aço e escuridão.

Enquanto observava Beau tentar, desajeitado, limpar a comida do chão como se aquilo fosse o maior desastre do mundo, não consegui evitar que a mente voltasse ao diálogo anterior — ou melhor, ao embate — com o tirano que me arrastava em correntes. A arrogância cravada em cada sílaba, o olhar frio como lâmina recém-afiada, a certeza de que minha vontade não importava em absolutamente nada. Era como discutir com uma parede de granito… só que a parede ria enquanto você sangrava.

E então, ver aquele pobre rapaz, com seu sorriso nervoso e mãos trêmulas, servindo como assistente daquele lunático, quase me fez sentir pena. Quase. Porque trabalhar ao lado de um homem como Alastair era viver com a cabeça em uma guilhotina, e aquele sorriso gentil do garoto não resistiria muito tempo antes de ser arrancado pela realidade que ele chamava de rotina.

Às vezes, era preciso um tolo… pra nos lembrar que ainda tínhamos algo a perder.

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