Capítulo 6 — A Dama em Território Hostil
Não havia tido qualquer chance de retrucar. O Duque havia sido claro: Beau deveria apresentar a fortaleza à futura Duquesa. E como sempre, ele cumpriria sua ordem. Sem entusiasmo, mas com precisão. Beau a guiava pelos corredores da propriedade, saindo do jardim interno e entrando em alas mais antigas do castelo. A cada novo ambiente, ele falava com clareza e objetividade, descrevendo datas de construção, funções dos espaços e curiosidades relevantes. Sua fala era firme, sem rodeios — e aquilo, para Rudbeckia, era um alívio. O tipo de explicação que ela gostava: direta, sem bajulações ou floreios inúteis. Passaram por uma sequência de corredores silenciosos, ladeados por tapeçarias militares, colunas em pedra escura, vitrais coloridos que filtravam a luz fria do norte. Escadarias amplas levavam a alas superiores. A imponência da fortaleza impressionava, mas também intimidava. Enquanto caminhavam, Rudbeckia notava os olhares tortos dos poucos servos que cruzavam com eles. A maioria desviava o olhar assim que ela passava. Alguns cochichavam entre si com expressão desconfortável. Era óbvio: sua presença ainda era indesejada por muitos. Era como um fantasma amaldiçoado caminhando entre vivos. Aquilo incomodava, mas ela já estava acostumada. Desde que seu nome se tornara sinônimo de ameaça, aprendera a conviver com esse tipo de olhar. E por isso mesmo, havia algo curioso em Beau. Ele era rígido, talvez até um pouco hostil, mas em momento algum demonstrava medo. Não tremia, não desviava o olhar, não sussurrava como os outros. E isso, por mais que ela não admitisse em voz alta, era algo que respeitava. Aproveitando a relativa tranquilidade, Rudbeckia soltou a pergunta que martelava em sua mente desde o momento em que acordou. — As roupas. Estavam todas no armário quando despertei. Suponho que não tenham aparecido ali sozinhas. — comentou com a voz carregada de desconfiança. Beau, que caminhava à frente, virou o rosto apenas o suficiente para olhá-la de relance. Seu olhar foi rápido, mas atento. Não havia como ignorar a beleza absurda daquela mulher, mesmo sabendo o que ela era. — Está certa, Marquesa Linperic. O Duque me encarregou disso ontem mesmo. — respondeu com simplicidade, sem parar de andar. — Ele queria garantir que nada lhe faltasse. A resposta foi mais do que ela esperava. Ter conseguido tantas peças de luxo em tão pouco tempo não era algo simples. Dentro do guarda-roupa havia vestidos reforçados para o frio, capas grossas, joias com pedras grandes e sapatos nobres — tudo novo. Tudo dela. — Ele é sempre assim tão atencioso? — disparou em tom seco, acompanhando-o com passos firmes. Um sorriso quase irônico passou por seus lábios. Dessa vez, Beau parou. Virou-se por completo e a analisou sem disfarçar. Seus olhos verdes a percorriam de cima a baixo, sem arrogância, mas com julgamento. Avaliando. Pesando. Era evidente que ainda não confiava nela. Ainda a via como uma Linperic, afinal. — O Duque sabe cuidar daquilo que é dele. — respondeu. — E se agora a senhora faz parte disso, é natural que ele se preocupe. Mesmo quando parece distraído… ele pensa em tudo. — sua voz era firme, quase defensiva. Terminou a frase e virou-se novamente, acelerando o passo como se quisesse encerrar o assunto ali. Rudbeckia não respondeu. Apenas o observou caminhar à frente, com os cabelos negros longos balançando levemente a cada passo. O silêncio voltou a se instalar entre os dois. Mais denso, mais carregado. Não havia hostilidade direta, mas havia tensão. Ambos estavam em território novo. E sabiam que, cedo ou tarde, teriam que se acostumar um com o outro. ⸻ Para encerrar o extenso tour pela fortaleza, Beau guiou Rudbeckia até os últimos pontos da visita. Já haviam passado pela sala de leitura, pelas varandas de observação e, agora, seguiam em direção à ala de treinamento. Durante todo o percurso, Beau manteve uma postura impassível, mas observava tudo. Cada reação da platinada, cada movimento dos olhos, cada mudança de tom. Não demorou a perceber que, apesar da postura altiva e da aparência fria, a Marquesa se incomodava com os olhares alheios. Ela não escondia bem. Cada vez que passavam por servos, seus ombros enrijeciam, o olhar desviava rapidamente ou fixava-se num ponto qualquer para fingir indiferença. Beau notou — e tirou suas próprias conclusões. Por mais que fosse resiliente, tinha uma fraqueza óbvia: odiava ser julgada. Mas não era da conta dele. Pelo menos não ainda. Seguiram pelos corredores internos em silêncio. Ambos se mantinham alertas, como dois estranhos dividindo o mesmo campo de batalha. Rudbeckia absorvia cada detalhe da estrutura, como se quisesse memorizar todas as passagens da fortaleza — talvez por precaução, talvez por hábito. Chegaram então à arena de treinamento. Era uma construção fechada, de pedra escura, com teto alto e janelas estreitas. O ambiente era abafado, o cheiro de suor impregnava o ar, e o som metálico de espadas se chocando preenchia o espaço. Dois soldados treinavam sob os olhares atentos de um instrutor mais velho. Rudbeckia observava com atenção. Seus olhos acompanhavam os movimentos, a forma como o peso dos corpos era distribuído, os passos firmes, os cortes secos. Estava alerta. Era impossível não reconhecer sua postura: quem vive à sombra da perseguição, nunca baixa completamente a guarda. Os soldados, por outro lado, logo notaram a presença dos visitantes. Um deles, ao ver a mulher de cabelos platinados e olhos cristalinos, perdeu por completo a concentração. O deslumbre foi imediato — quase hipnótico. E foi o suficiente para que errasse o próximo movimento. A espada escapou de suas mãos. Girou no ar com força, em direção ao outro combatente, que estava completamente desprotegido. — Cuidado! — Beau gritou, alarmado. O tom em sua voz denunciava o pânico de ver um acidente mortal prestes a acontecer. Mas Rudbeckia já havia se movido. Sem hesitar, arrancou a espada da cintura de Beau. Com precisão e agilidade, fez um corte superficial na própria mão. Seu sangue escorreu e logo se moldou, serpenteando em forma de um chicote avermelhado e pulsante. Era sua arma mágica — e sua assinatura como Linperic. Em um único movimento, girou o chicote com força. O estalo seco se deu no ar quando ele acertou a espada em pleno voo, desviando sua trajetória. A lâmina caiu ao chão com um ruído metálico, a poucos centímetros do soldado. O silêncio que se seguiu foi pesado. Todos os olhares estavam sobre ela. Assombro. Cautela. Medo. Nenhum deles jamais havia testemunhado a manifestação daquele tipo de magia de sangue — muito menos com tal velocidade e precisão. Rudbeckia desfez a arma imediatamente. O sangue, agora sem forma, escorreu e pingou no chão, formando uma poça escura sobre a pedra fria. Ela levou a mão ferida ao peito por instinto, respirando com mais intensidade. Seu rosto permanecia impassível, mas Beau notou. Ela arfava. O esforço tinha cobrado seu preço. — Reflexos rápidos… — ele comentou, sem esconder o quanto estava impressionado. Ela respondeu sem alterar o tom de voz, mantendo o queixo erguido. — Hábito. Quando se é caçada por tempo suficiente, aprende-se a reagir antes de pensar. Voltou a se erguer, firme. Ignorou os olhares e seguiu em frente como se nada tivesse acontecido. Seus passos eram calculados, mas carregavam peso. Beau permaneceu parado por alguns segundos, observando-a. Algo em sua expressão mudou. Ainda era cauteloso — talvez sempre fosse —, mas havia uma nova camada ali. Uma semente de respeito, talvez até admiração silenciosa. Talvez tivesse sido precipitado em julgá-la apenas pelo nome. Talvez houvesse, de fato, força suficiente naquela mulher para caminhar ao lado de um homem como Alastair.