Capítulo 6 – A Velha de Língua Solta
Depois de horas naquele cubículo imundo, o mundo lá fora parecia uma benção miserável. A comitiva parou em uma clareira cercada por árvores secas como cadáveres de pé, e trilhas de lama congelada marcavam o chão duro. A névoa fina continuava pairando, insistente como as decisões erradas que eu tomava. Pedi — ou melhor, exigi — sair da carruagem. Estava com os nervos em frangalhos, os músculos rígidos, e a bunda quadrada de tanto sacolejar. Uma das rodas ainda girava devagar enquanto eu descia, algemada e escoltada, como se o próprio ar me vigiasse. — Se vocês acham que isso aqui é transporte digno, talvez devam experimentar uma noite nessa caixa com cheiro de suor, mofo e arrependimento. — rosnei para um dos soldados. Nenhuma resposta. Nenhum olhar. O silêncio deles já era pessoal. Comecei a andar. Não muito longe — as correntes e os olhares me lembravam onde estava. O acampamento se movimentava ao redor como um organismo coordenado: homens erguendo tendas, outros cuidando dos cavalos, alguns empilhando lenha. E eu ali no meio, exausta, irritada e… ignorada. Ninguém me dirigia a palavra. Como se eu fosse parte da carga. Nem mesmo um aviso de onde estávamos ou para onde iríamos. Não que eu esperasse consideração — mas o mínimo de decência, talvez. A verdade é que eu já estava no meio do nada com um grupo de brutamontes, sendo levada por um lunático que se autodenominava meu futuro marido, para um lugar onde o inverno parecia permanente. E, pra piorar, eu não tinha sequer o consolo de saber o destino exato. Só gelo, lama, ferro e silêncio. Encostei numa árvore e respirei fundo. Meus pés doíam, minhas costas também, e minha paciência tinha congelado no primeiro quilômetro da estrada. Me senti ridícula. Ridícula e furiosa. E então a vi — sentada sobre uma tora de madeira, ao lado das carroças de suprimentos, enrolada num manto grosso e escuro, com um cachimbo pendendo da boca como se o mundo ao redor não valesse nem a fumaça que ela exalava. O cabelo longo, negro com fios brancos marcando as têmporas como cicatrizes de tempo. As feições duras. Os olhos verdes de julgamento direto. Ela me encarou. Um olhar afiado, incisivo, como se me dissesse que já tinha visto muitas como eu… e não estava impressionada. — Então é você — disse, com voz rouca e firme — a bruxa que ele comprou como esposa? Já vi escolhas mais idiotas… mas nenhuma tão interessante. A fumaça escapou entre os dentes dela como um sopro de sarcasmo. — E você deve ser a criada que acha que pode abrir a boca sem ser mandada. — rebati, sem piscar. Ela riu, um som seco, curto. Não parecia ofendida. Só ainda mais intrigada. — Criada? Essa é nova. Me chamaram de coisa pior. Cruzei os braços, observando a mulher de cima a baixo. Ela não abaixava a cabeça, nem levantava da tora. Era como se não estivesse nem aí para grilhões, linhagens, ou títulos. O que me irritava… e, de forma bem irritante, me interessava também. — Ele sempre compra gente viva pra carregar na traseira? — murmurei. — Só quando está entediado — respondeu. — Ou quando quer incomodar meio Império. Ficamos em silêncio por alguns segundos. Ela deu mais uma tragada no cachimbo e soltou um suspiro lento. — Elizabeth Renegue — disse, enfim, sem estender a mão. — Sou velha demais pra formalidade e burra demais pra me calar. Eu a encarei. Elizabeth. Claro que o nome combinava com a língua afiada. — Sophia Eve Linperic. Última da linhagem maldita. E péssima companhia de viagem, se quer saber. Ela arqueou uma sobrancelha. — Ah, minha cara… nesse comboio, você ainda é a parte mais sensata. Quase sorri. Mas me contive. Estávamos em território inimigo, mesmo que por um instante a companhia parecesse humana. De certo modo, algo nela ainda me deixava curiosa. Não falava como uma criada. Não se portava como uma. Não demonstrava um pingo de medo — nem de mim, nem do tirano. — E qual exatamente é a sua função nesse teatro? — perguntei, arqueando uma sobrancelha. — Ou está aqui só pra fumar e julgar? Ela soltou uma baforada preguiçosa, os olhos semicerrados por entre a fumaça. — Governanta. Do Duque tirano, infelizmente. — Respondeu com um tom seco, mas quase sorriu no final. — Alguém tem que manter o castelo limpo enquanto ele espalha sangue por aí. Por pouco não ri junto. Mas engoli o impulso. Não era hora de baixar guarda — nem pra velhas espertas. Me surpreendi com a resposta. Governanta. Não era pouca coisa — era o mais alto cargo entre os criados de uma casa nobre. Talvez por isso ela falasse daquele jeito, como se não devesse satisfação a ninguém. Era uma serva, sim… mas do tipo que provavelmente dava ordens a outras dezenas. E agora fazia sentido aquela postura — firme, debochada, quase imperial. — Entendo. — murmurei, cruzando os braços. — Então você é a responsável por manter a ordem no ninho de corvos. Deve ser… gratificante. — Gratificante é ver quando uma ave nova chega batendo as asas, achando que pode ditar o voo. — rebateu, me medindo de cima a baixo. — Mas você é diferente. Tem olhar de quem já foi derrubada antes… e ainda assim voltou de pé. Isso intriga. Fiquei calada. Não por falta de resposta — mas porque ela estava certa. — Só precisa de uma coisa agora. — completou, inclinando o rosto com um meio sorriso debochado. — Um banho. Francamente, garota… você tá uma inhaca. Revirei os olhos, exausta demais pra me ofender. Mesmo assim, respondi com a acidez que me restava: — Esse cheiro é o perfume da escravidão. Fica impregnado quando nos vendem como mercadoria. O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Foi honesto. Ela assentiu devagar, tragou mais uma vez o cachimbo e soprou para longe, como se dissesse que não tinha o que retrucar. — Veneno bonito… — murmurou por fim, quase em tom de elogio. — O Duque gosta de peças raras. Mas ele quebra todas. — E eu sou o tipo de peça que corta de volta. — respondi, firme. Ela soltou um som que não era bem riso, mas chegava perto. E pela primeira vez, percebi: talvez aquela mulher, no meio de todos ali, fosse alguém que valesse a pena escutar. Nem que fosse por pura sobrevivência. Foi quando ouvi passos corridos se aproximando. Beau surgiu cambaleando com uma bandeja nas mãos. A chaleira de ferro tilintava ao lado de duas xícaras de barro, equilibradas com dificuldade. Ele tentou frear ao ver que estávamos ali, mas tropeçou num tapete torto estendido perto da fogueira e quase beijou o chão. — A-ah! Desculpa! Eu… — ele tentou estabilizar a bandeja, mas um pouco do chá escorreu pela borda. Levantei uma sobrancelha. Elizabeth apenas revirou os olhos e soltou, impiedosa: — Pelo amor dos deuses, garoto, você precisa de ferraduras ou de um funeral? Beau abriu a boca, fechou, e depois sorriu sem graça, vermelho até a raiz dos cabelos. E, pela primeira vez desde que fui capturada, me vi não contendo o riso. Contra a minha vontade. Elizabeth bufou, se levantando com um leve estalo nos joelhos. — Vai se acostumando, menina — murmurou ela, ajeitando o manto nos ombros. — Em Varmond, até os desastrados duram mais que os orgulhosos. Ela me lançou um último olhar antes de virar as costas. — Boa sorte, Marquesa. Vai precisar de cada gota dela. Fiquei ali, parada. Em silêncio. Observando a figura da mulher se afastar devagar, o cachimbo agora apagado entre os dedos. Talvez… nem todo mundo nesse inferno valesse a lâmina.