Capítulo 4 — A Senhora de Pedra Negra
Era tarde. O contrato havia sido selado com sangue — literal, ancestral, irrevogável. Agora, o silêncio da noite envolvia a fortaleza como um véu denso. Nenhum som, exceto o estalo distante do vento contra as janelas e o ocasional ranger das pedras antigas. Varmond dormia. Mas Rudbeckia não conseguia. No banheiro anexo ao quarto principal, ela mergulhava em uma banheira de pedra escura, profunda e perfeitamente encaixada no centro do cômodo. A água quente tocava sua pele como um abraço inesperado. O vapor subia em espirais lentas, envolvendo-a como uma cortina translúcida, protegendo-a do mundo — por um instante que fosse. A luz era baixa, filtrada por lamparinas fixadas nas paredes. Havia algo sagrado no ambiente. Ou talvez apenas um raro respiro de paz. Rudbeckia lavava o corpo com gestos lentos. Passava o pano úmido pelos ombros, braços, pescoço. Esfregava até os últimos vestígios de sangue seco, terra e lembranças da floresta deixassem sua pele. Era um ritual quase silencioso de renascimento. Como se quisesse apagar tudo o que havia sido antes de pisar naquela fortaleza. Debaixo das unhas ainda havia manchas. Os dedos estavam vermelhos de esfregar. Mas o rosto… o rosto começava a recuperar sua dignidade. Os cabelos platinados, antes opacos de sujeira, agora flutuavam em torno de si com brilho metálico. A nobreza em sua aparência, mesmo involuntária, era impossível de negar. Ela inclinou a cabeça e encarou a própria imagem refletida na água. Por um segundo, viu ali não uma mulher cansada… mas a Marquesa da casa Linperic. A última. Levantou o braço e examinou a pele onde fora atingida pela flecha. Estava intacta. Nenhuma marca. Nenhuma dor. O sangue dos Linperic não deixava cicatrizes — mas exigia um preço. Ela se lembrava de cada animal que teve de caçar para se recuperar. De cada veado, cada pássaro que teve de sacrificar. O gosto metálico, a culpa silenciosa, o vazio no peito após cada refeição. Não era orgulho. Era necessidade. Sobrevivência, como sempre. Suspirou. Baixou o olhar. Agora era noiva de Alastair Liriafrith. O Duque tirano do Norte. E por mais que aquela aliança fosse uma escolha… não deixava de ser uma prisão. Mesmo que voluntária. “O que exatamente eu me tornei?” pensou, enquanto gotas de água deslizavam pelo seu pescoço. “Uma peça. Um nome. Uma vantagem política. Ou algo mais?” Ela não sabia. E essa incerteza lhe doía mais do que qualquer ferida. Amanhã, o mundo acordaria com uma nova Duquesa. E ela teria que sustentar esse título diante de soldados, criados, aliados e inimigos. Teria que se manter firme… ao lado de um homem que sorria como quem guarda segredos e falava como quem já perdeu tudo. Ela fechou os olhos, afundando até o queixo na água. “Será que ele me protegerá… ou será ele quem me destruirá?” Na escuridão úmida daquele banheiro de pedra, Rudbeckia compreendeu que seu maior medo não era morrer. Era ser engolida. Pelo nome. Pelo pacto. Pelo homem. Mas era tarde demais para voltar atrás. E, no fundo, parte dela sabia: — Já não era mais uma sobrevivente. Era uma jogadora. E o jogo acabara de começar. ⸻ Era o dia seguinte ao pacto. O dia em que tudo havia mudado em Varmond. A manhã começou barulhenta. Os poucos criados que estavam acordados na noite anterior já haviam se encarregado de espalhar a notícia: a Linperic estava ali — e havia se tornado a noiva do Duque. Em menos de uma hora, a informação se espalhou como fogo entre os corredores frios da fortaleza. O que ninguém sabia ao certo era como aquilo tinha acontecido. Só restavam especulações, medo… e uma curiosidade que crescia a cada passo dela pelo local. No interior do escritório de Alastair, o clima era completamente outro. Era um cômodo amplo, funcional, com paredes cobertas por estantes abarrotadas de livros, mapas e documentos. A iluminação era baixa, proporcionada por velas bem distribuídas, e o ambiente carregava um cheiro forte de madeira, cera e tinta antiga. Um espaço de estratégia. De guerra. E naquele momento, de silêncio. Beau, o assistente mais antigo e leal de Alastair, permanecia de pé à frente da mesa de carvalho escuro. Os olhos estavam atentos, mas o semblante era visivelmente tenso. Diante dele, Alastair estava sentado em sua cadeira habitual — uma peça robusta, entalhada, feita para durar. Em sua lateral, repousava uma espada, ao alcance do braço. Ele lia relatórios como se nada tivesse acontecido. Alastair parecia calmo. Seria difícil encontrar um dia em que estivesse mais relaxado. E isso, justamente, era o que mais deixava Beau desconfortável. Ele cruzou as mãos atrás do corpo, hesitou por alguns segundos, e então falou: — Com todo o respeito, senhor… manter uma Linperic sob o mesmo teto, sem qualquer aviso ao conselho interno… é imprudente. Alastair não ergueu os olhos. Apenas sorriu de leve, como se tivesse ouvido uma piada repetida. — Imprudente seria recusar o que o destino colocou à minha porta — respondeu, sem desviar o olhar dos papéis. Beau franziu o cenho. O desconforto se tornou mais evidente. — A senhora Linperic é poderosa. E instável. Não sabemos se podemos confiar nela — continuou, tentando manter a calma. — E, sinceramente, não sei se é bom para sua imagem. As pessoas já o temem. Imagine agora, com uma Linperic ao seu lado… Foi aí que Alastair levantou o olhar. Rápido. Direto. — Beau — disse com firmeza —, neste império não existe criatura mais temida do que eu. E se há alguém que pode se sentar ao meu lado sem que isso soe como fraqueza, é uma mulher que sangrou a vida inteira sem cair. Minha imagem já está marcada. Não me interesso em agradar um povo que me odeia por existir. Ele se levantou com naturalidade, empurrando a cadeira com o joelho. Caminhou até uma estante ao fundo da sala, onde repousava um livro antigo, grosso, encadernado em couro escuro. Era o registro da linhagem Linperic. Alastair tocou a capa com os dedos, pensativo, mas sem hesitação. — Observei os Linperic por anos. Escrevi cartas que nunca enviei. Analisei possibilidades de aliança. Todas rejeitadas ou abafadas antes mesmo de serem cogitadas. A coroa fez um bom trabalho em espalhar o medo… e destruir tudo o que restava deles. Ele virou-se, os olhos fixos em Beau. — E então, ela apareceu. Sozinha. Fraca, mas de pé. Carregando o sangue de um nome que sobreviveu ao apagamento. Você tem ideia do quão improvável é isso? Beau baixou os olhos, vencido pelo argumento. Nunca tinha visto aquele brilho no olhar do Duque — algo entre propósito e fascínio contido. Ele conhecia Alastair como poucos. E sabia quando algo estava decidido. — Se me permite, senhor… ainda assim, espero que saiba no que está se metendo. Alastair retornou à cadeira e sentou-se com calma. Pegou a taça de vinho que repousava ao lado e, antes de beber, lançou um sorriso discreto para o subordinado. — Não existe Duquesa mais perfeita para mim do que Rudbeckia Eve Linperic. Ela é perigosa. E eu admiro isso. Sabe por quê, Beau? Porque um império que teme monstros… jamais sobreviverá a dois sob o mesmo teto. Virou o olhar para a janela. Do outro lado do vidro, a neve caía lenta, constante. No quarto do andar superior, do outro lado da fortaleza, Rudbeckia também observava a neve cair pela vidraça do novo aposento que agora chamaria de seu. Nenhum deles disse em voz alta. Mas sabiam: estavam sozinhos por muito tempo. E juntos, talvez não estivessem menos sozinhos. Mas seriam mais perigosos.