Capítulo 4 – O Tirano e a Bruxa
Ela não sabia, mas já estávamos fora de Velmora. A estrada serpenteava entre colinas mortas e florestas doentes. Varmond ainda estava longe — dias de viagem. Mas o ar começava a mudar. Mais rarefeito. Mais cruel. Parei diante dela. A garota mantinha a coluna ereta como se ainda tivesse coroa. Irritante. Fascinante. Um contraste interessante com o que eu esperava. Era comum que os vendidos chegassem aos pedaços — dobrados, tremendo, clamando por piedade. Mas ela… ainda se achava dona de algo. Inclinei levemente a cabeça. — Sophia Eve Linperic. Última da linhagem da família Linperic, a família amaldiçoada do império Enraven. Minha voz saiu baixa, como se sussurrasse segredos num confessionário. — Fama de bruxa. Preço de princesa. Ela revirou os olhos, forçando tédio. Mas o corpo dela entregou o resto. A mandíbula contraída. A respiração contida. Os ombros duros como pedra. Estava odiando cada palavra. Ótimo. Dei um passo ao lado. Depois outro. Comecei a circular devagar. Ela não recuou, mas sentiu. Eu via nos microgestos. As narinas inflando. Os dedos cerrando discretamente. Como uma loba cercada. Bela. E perigosamente viva. Não parece quebrada. Isso é bom. Eu gosto que me desafiem. A maioria só serve para rastejar. Ela, não. Ela morde. E às vezes, são exatamente os que mordem que se tornam mais úteis. — Já li tudo o que havia sobre sua família nesse meio tempo em que te comprei. Minha voz soou despretensiosa, mas clara. — Queimada pela igreja. Caçada por nobres. Esquecida pelos livros. Parei atrás dela. Bem perto. — Mas não pelos meus olhos. Ela permaneceu calada, mas eu sentia a tensão pulsando como uma veia prestes a arrebentar. Queria me odiar. Que bom. Eu não precisava que me amassem. Amor enfraquece. O ódio… o ódio move montanhas. E ela, com o olhar cravado no horizonte gélido, já era metade montanha, metade desgraça. Do jeito que eu queria. Ponto de vista: Sophia Eve Linperic O homem me circulava como se eu fosse uma peça de caça rara. Um troféu exótico que ele achava ter pendurado na parede — quando, na verdade, ainda respirava. E mordia. Esperei ele parar de falar. Aquela voz baixa e controlada me enojava. Tão segura, tão previsível. Um tipo de homem que acha que pode manipular tudo ao redor com frases calculadas e olhares frios. Dei um passo à frente. Os guardas ao redor reagiram de imediato. Um deles chegou a erguer o braço como se eu fosse atacar. Bufei. Covardes. Todos. Cruzei os braços diante do homem. O tal Duque. Tinha porte de soldado, rosto marcante e muito bonito, olhos de quem já matou demais para lembrar. Era muito mais alto que a maioria… mas não mais do que minha raiva. Falei, seca, sem rodeios: — O que você quer de mim? Ele não demorou. Não ensaiou. Não mentiu. — Você vai se casar comigo. Silêncio. Por um instante, achei que tinha escutado errado. Talvez fosse o cansaço. Ou um surto de insanidade coletiva. Mas não. A expressão dele era estável. Como se tivesse dito a coisa mais natural do mundo. Pisquei. Depois gargalhei. Não foi uma risada leve. Nem encantadora. Foi o tipo de riso que arranha a garganta — nascido do deboche e do absoluto desprezo. Soou alto. Soou impuro. Soou como eu. — Você é mais louco do que parece — disse entre uma risada e outra. — Comprar uma mulher por meio milhão já é patético. Mas achar que ela vai aceitar um anel depois disso… Inclinei a cabeça, ainda sorrindo. — …isso é outro nível de estupidez. Ele não reagiu. Só me observou. E eu soube. Não importava o quanto eu risse. O quanto eu insultasse. Aquele homem não ligava. Porque ele já tinha decidido. E isso tornava tudo pior. O controle. A calma. Aquele olhar inabalável. Era como falar com uma parede de pedra que achava graça em cada soco que você dava. Meu corpo se moveu antes do pensamento. A intenção veio depois — como sempre foi. Sobrevivência misturada com ódio. Fúria travestida de lógica. Me aproximei num piscar. Rápida. Precisa. A mão agarrou o punho da espada presa ao cinto dele. Aço frio. Peso familiar. Não houve grito, nem aviso. Só o som metálico da lâmina sendo puxada e o corte seco no ar. Mirei o ombro. Não por misericórdia — por cálculo. Era mais fácil perfurar ali com a força que eu tinha. A lâmina atravessou carne com firmeza. O sangue jorrou denso e quente, manchando o tecido escuro da roupa dele. A cor contrastava com a pele pálida do Duque. E eu sorri. Por um segundo, só um segundo, sorri. Ele não se mexeu. Não gritou. Não revidou. Ele riu. Baixo. Quase íntimo. Um som que não fazia sentido no contexto. Mas fazia todo sentido vindo dele. — Minha maldição… — ele murmurou, olhando direto nos meus olhos. Minha mão ainda tremia no punho da arma. E foi só então que percebi. Ele poderia ter me parado. Desde o início. Qualquer homem treinado reagiria. Qualquer guarda, qualquer guerreiro. Mas ele… não. Ele quis sentir a lâmina. Ele quis que eu o ferisse. A náusea me subiu como uma onda. Mas a raiva veio mais alto. — Você deixou — cuspi. — Desgraçado… você deixou! A lâmina caiu no chão. Eu tremia, mas não de medo. Era ódio. Era desprezo. Era o aviso. Eu nunca seria o que ele esperava. E se quisesse me usar… teria que sangrar por isso. Dei dois passos para trás, sentindo o peito subir e descer num ritmo irregular. Minha respiração era pesada, como se eu tivesse corrido por horas, mas não era cansaço. Era raiva. Era adrenalina. Era a sensação de ter quebrado algo que ele achava que controlava. A lâmina escorria sangue. Ainda gotejava. E ele, parado diante de mim, continuava sorrindo como se tivesse acabado de receber um presente inesperado. — Idiota — murmurei, mais para mim do que pra ele. O gosto metálico do ar, o cheiro do sangue quente, tudo girava ao meu redor — e mesmo assim, o foco estava nele. Naquela postura infeliz de quem não se importa em apanhar, desde que o jogo continue. Cuspi no chão. Um cuspe seco, cheio de desprezo, que caiu rente às botas dele. — Eu te odeio. Ele sequer piscou. Era como se esperasse por essa frase desde o começo. Talvez fosse isso que o animava. Parecia que eu tinha o dado um presente. Um guarda deu um passo à frente, claramente esperando ordens. Sua mão já buscava a bainha. Mas antes que se aproximasse, a voz dele cortou o ambiente com firmeza seca: — Não. Ela vem comigo. Silêncio. Um tipo específico de silêncio. O de quem não está acostumado a ver o Duque sangrar… e muito menos sorrindo depois disso. Dois soldados se moveram. Mas o jeito que o fizeram não era o mesmo de antes. Não tinha arrogância, nem pressa, nem brutalidade. Havia algo contido ali — como se até eles entendessem que o que acabara de acontecer tinha rompido uma linha invisível. Eles me escoltaram com cuidado. Com distância. Como se soubessem que eu morderia se chegassem perto demais. E eles estavam certos. Eu morderia mesmo. Ponto de vista: Alastair Adam Liriafrith A neblina cobria a estrada como um manto sujo de cinzas. Densa, fria, sufocante. O tipo de clima que a maioria detestava. Eu sempre achei… conveniente. A névoa escondia detalhes. E detalhes nunca me interessaram. O que importa é o todo. O impacto. A utilidade. Montei meu cavalo negro, ajustando as luvas de couro manchadas com o sangue seco que ela me deixou. O ombro latejava. Era estranho. Fazia tempo que alguém me feria sem precisar de incentivo. Ela não pensou duas vezes. Nenhuma hesitação. Nenhum cálculo. Só agarrou a lâmina e atacou, como uma criatura selvagem. Como uma Linperic. Sorri, com os olhos fixos na carruagem à frente. Vi quando ela entrou — os ombros erguidos, o olhar duro, mesmo cercada por guardas. Não fazia ideia para onde estava indo. Nem imaginava o quanto Varmond mastiga e cospe o que não aguenta o peso da própria língua. Mas ela aguentaria. E era isso que me divertia. “O império me teme. Ela também.” “Mas agora somos dois monstros. E monstros não se separam.” Ainda me perguntava como alguém com o histórico dela sobreviveu por tanto tempo. Caçada por anos, vendida como escória, e mesmo assim… me enfrentou sem vacilar. Eu tinha comprado uma bruxa. Uma lenda manchada. Mas o que recebi foi mais do que isso. Recebi uma maldição consciente. Uma mulher que cravaria ferro no peito de qualquer um — inclusive no meu — se sentisse vontade. Promissora. Quase absurda. O tipo de peça que não se fabrica… só se encontra uma vez na vida. Levantei uma mão, gesto simples. E a comitiva começou a se mover. Rumo ao norte. Rumo a Varmond. Onde ela aprenderia que o ódio é a única moeda que realmente vale algo. E que o lugar ao meu lado… é feito de espinhos.