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Capítulo 3 – A Corrente Quebrada

Capítulo 3 – A Corrente Quebrada

As portas bateram com força. Ouvi passos apressados sumirem no corredor, como se até os guardas tivessem medo de ficar perto por muito tempo. Talvez soubessem o que tinham acabado de fazer. Talvez não. Covardes não costumam pensar muito.

Me jogaram de volta na cela como uma carcaça. As correntes tilintaram contra a pedra quando caí de lado, os pulsos latejando sob o peso das algemas. A boca ainda amargava ferro, mas minha respiração vinha quente, rasgando a garganta, carregada demais para um espaço tão pequeno.

Fiquei ali, por segundos, apenas escutando meu próprio peito subir e descer. Depois, queimei.

Gritei. Um som bruto, primitivo. Não um pedido de socorro. Não um apelo. Só a voz de alguém que se recusava a aceitar.

Chutei a parede. As correntes rangeram.

Puxei os grilhões com a força que o corpo me dava. A pele se rasgou no processo. Continuei puxando. Sangue escorreu pelo braço. Continuei puxando. Meus dedos tremiam. Eu tremia. Não de medo. Não exatamente.

De frustração. De fúria acumulada por anos. De ver tudo desmoronar com um único estalo de martelo.

Fui vendida. Como se eu fosse gado. Como se meu nome… meu sangue… significasse nada.

Cuspi sangue no chão, o gosto metálico misturado ao nojo. Limpei a boca com o antebraço e voltei a puxar as correntes, mesmo sabendo que não ia sair dali. Queria que elas sentissem. Que quebrassem antes de mim.

Meu corpo doía. Meus ossos doíam.

Mas nada ardia tanto quanto a constatação:

Essa foi a primeira vez que me pegaram.

E não foi para me executar. Não para me prender por bruxaria. Não para arrancar uma confissão.

Foi para me leiloar. Como uma peça exótica. Uma “última” qualquer.

A Linperic amaldiçoada, agora com um preço.

Não chorei. Odiar era mais eficiente. E o ódio… esse, escorria pelos olhos mesmo sem lágrimas.

Eles pensam que me domaram. Mas o idiota que pagou meio milhão por mim… Comprou uma fera faminta. E logo vai aprender o custo disso.

Do lado de fora da grade, escutei os cochichos abafados.

— A bruxinha surtou. — disse um, tentando parecer indiferente, mas a voz escapava com um fiapo de receio.

— Vai acabar mordendo a própria língua. — respondeu outro, abrindo uma pequena caixa de madeira.

Vi o brilho do frasco antes da porta ranger.

Sedativo.

Estavam com medo. Mas ainda assim idiotas o suficiente pra achar que podiam me controlar com agulhas.

Fiquei sentada. Calada. Respiração controlada. Olhar baixo. Corpo encolhido.

Derrotada.

Era o que queriam ver.

A cela se abriu com lentidão. O homem entrou — magro, suado, com as mãos trêmulas. O frasco reluzia entre os dedos e a seringa já estava pronta.

— Isso vai ajudar… — ele disse baixo, como quem fala com um animal arisco.

Deu um passo. Outro. Se abaixou.

Tarde demais.

Impulsionei o corpo pra frente, num salto direto. A cabeça atingiu o nariz dele com um estalo seco. A cartilagem quebrou sob o impacto. O frasco voou da mão. Sangue espirrou como uma fruta espremida à força.

Ele gritou. Caiu para trás, segurando o rosto, gemendo e se debatendo no chão de pedra como um porco ferido.

Os outros recuaram imediatamente, parando na porta como se eu tivesse cuspido fogo.

— Eu avisei. — murmurou um deles, horrorizado. — Ela vai nos amaldiçoar…

— Então venham. — gritei, a voz rasgando a garganta. — Tentem me encostar de novo! Tentem!

Os olhos deles me examinavam como se eu fosse um animal sagrado e envenenado ao mesmo tempo. Um erro que alguém cometeu — e que ninguém queria repetir.

Eu sangrava. Ainda algemada. Com o vestido rasgado e os pés descalços. Mas naquele instante, eles estavam mais presos do que eu.

E se esse era o jogo do novo dono,

ele acabaria descobrindo uma verdade simples:

Bruxas não pertencem a ninguém.

O sangue secou no chão de pedra. O guarda não voltou.

Ninguém mais ousou abrir a cela naquela noite.

Fiquei onde estava. Encolhida no canto, os joelhos pressionando o peito, as correntes puxando os pulsos para trás numa angulação incômoda. O metal já havia cortado a pele em pontos finos — feridas que ardiam com o frio e o atrito constante.

Mas a dor era suportável.

Muito mais fácil de engolir que a humilhação.

O vestido — ou o que restava dele — estava colado ao corpo por suor, poeira e sangue. O chão era duro, úmido, gelado.

Cada ruído do corredor se tornava uma ameaça. Cada silêncio longo demais, um aviso.

Mas ninguém veio.

Nenhuma voz. Nenhum passo. Nenhuma nova tentativa de me dopar ou tocar.

Só a escuridão. E o som áspero da minha respiração.

A noite passou, lenta como tortura psicológica. Os minutos se arrastavam, e cada batida do coração me lembrava do absurdo daquela situação. Eu. Vendida. Leiloada. Reduzida a um corpo amarrado.

Uma Linperic transformada em mercadoria.

Engoli seco. Minha garganta ardia de sede. Os olhos pesavam. Mas não dormi.

Nem por um segundo.

“Ninguém vai me ver fraca.”

A frase se repetia na cabeça como uma oração invertida. Meu sangue era o que os assustava — então que ele os fizesse tremer até o fim.

Não vou chorar. Não vou implorar. Se quiserem me quebrar… Vão ter que fazer mais que acorrentar meus braços.

E seja lá quem for esse lunático que me comprou… Vai descobrir logo que uma maldição, quando provocada, morde de volta.

O som da chave girando foi mais suave do que deveria. Mas meu corpo inteiro tensionou.

Desta vez, não vieram rindo. Quatro guardas. Postura rígida. Nenhuma palavra.

Mantive os olhos fixos no primeiro que cruzou a porta. Ele hesitou. Os outros também.

Aprendem rápido.

Dois me ergueram pelos braços com cautela, ainda que firmeza não faltasse. Não resisti. Não porque cedi — mas porque queria ver para onde aquele jogo absurdo me levaria. Essa seria minha nova abordagem para talvez assim conseguir escapar desse lugar.

Vestiram-me com roupas limpas: um vestido cinza opaco, de tecido grosso e sem adornos. Sem cordões. Sem botões. Sem armas possíveis.

Roupas para uma prisioneira cara.

Caminhei em silêncio pelos corredores de pedra. As paredes gotejavam umidade. O chão úmido refletia sombras distorcidas de corpos armados. Meus pés descalços já não sentiam frio — só estavam dormentes.

Subitamente, a claridade me atingiu como uma agressão.

O sol da manhã queimou meus olhos, desacostumados com qualquer cor além do mofo. Pisquei. A luz natural era quase violenta. O ar — pela primeira vez em semanas — cheirava a terra e fumaça.

E lá estava ela.

A carruagem.

Escura. Fechada. Rodas largas. Pintura impecável, como se tivesse saído de uma exposição militar. Nas portas, o brasão de Varmond: o lobo triplo, fundido com a lança atravessando um sol. Em volta, homens de armadura negra. Espadas curtas presas à lateral. Escudos reforçados nas costas.

Varmond. Eu conhecia o nome — quem não conhecia? Era o tipo de lugar que se sussurrava com medo nas tavernas, e que fazia mães calarem crianças rebeldes com promessas de que o Duque viria buscá-las. Era lá que o Tirano do Norte governava, e bastava ouvir esse título para saber o que aquilo significava.

Ninguém falava de Alastair Adam Liriafrith com respeito — falavam com receio, com repulsa, com uma curiosidade doentia. Rumores de execuções públicas, de castigos bestiais, de um homem que tratava nobres como cães e inimigos como nada. E agora, era para lá que eu estava sendo levada. Eu, a última Linperic. A bruxa sanguinária. Tinha que admitir: Conseguir colocar o próprio nome no mesmo nível de infâmia que o meu — isso sim era uma proeza.

Meu estômago revirou. Eu não sabia o que esperar daquele duque — e, para ser honesta, não esperava que ele tivesse sido o desgraçado que me comprou.

Não era um comprador comum. Não era um lordezinho decadente querendo brincar de possuir uma bruxa.

Era alguém que conhecia guerra. Alguém que esperava resistência.

Hesitei por um segundo.

Um dos guardas não falou. Apenas apontou com a cabeça. O gesto foi sutil. Mas no olhar… havia receio.

Entrei.

O interior era fechado, mas espaçoso. Assentos firmes, revestidos em couro escuro. O cheiro era amargo — couro envelhecido, ferro seco, madeira encerada. Havia pequenos compartimentos trancados nas laterais. Nenhuma janela ao alcance.

Me sentei devagar, mantendo a coluna ereta. Como uma Marquesa. Como uma Linperic.

Se me queriam como prisioneira, que soubessem que jamais se sentariam comigo como iguais.

A porta se fechou. O som das rodas começou.

O balanço da carruagem me fez perceber o quanto meu corpo doía. Cada solavanco trazia de volta os hematomas, a boca rachada, os pulsos marcados pelas correntes. Mas o silêncio… o silêncio era o que mais incomodava. Nenhuma palavra. Nenhuma voz. Apenas o ranger das rodas e o trotar dos cavalos, acompanhando o tempo que eu não conseguia mais medir.

Horas se passaram. Talvez um dia inteiro.

Talvez menos. Ou mais.

Eu não sabia para onde estavam me levando. Mas sabia que, onde quer que fosse, minha vida deixaria de ser minha.

A carruagem desacelerou. Os sons mudaram — cascos golpeando pedra, vento assobiando por entre estruturas altas. O ar mudou também. Fino. Gélido. Como se os próprios deuses tivessem virado as costas para aquele lugar.

A porta se abriu.

A luz do entardecer me atingiu os olhos feito uma bofetada. Pálida, opaca, carregada de cinza. Lá fora, as nuvens pesavam como chumbo sobre muralhas negras, imensas, recortando o céu morto.

E então eu o vi.

Parado diante da entrada, braços cruzados, postura imóvel como um monumento. Um homem de uma beleza incomum. Alto. Ombros largos. Vestia preto dos pés à cabeça, sem qualquer insígnia dourada ou vaidade imperial. O cabelo escuro caía sobre a testa em desalinho, e os olhos…

Os olhos eram como gelo partido. Não havia calor. Nem ódio. Nem interesse. Apenas análise.

Me examinava como se eu fosse um objeto que ele esperou a vida inteira para possuir — e que agora precisava descobrir se valia mesmo o preço.

Meu corpo doía. Minhas pernas hesitaram. Mas eu desci.

Porque fugir não era uma opção. E porque eu precisava olhar nos olhos do homem que achou que podia me comprar.

Desci um degrau. Depois outro. A neve começava a cair, fina e cortante, como se o céu também quisesse se desfazer em pedaços. O chão sob meus pés descalços era áspero, congelado. Mas eu não recuei.

Ele continuava ali. Imóvel. Como uma maldição antiga que esperava minha chegada há anos.

O silêncio entre nós era denso. Ele me olhava como se eu fosse um cruzamento entre relíquia e sentença de morte. Um olhar sem desejo, sem ternura, sem sequer curiosidade humana — apenas cálculo. Frio. Cirúrgico.

Eu o encarei de volta com tudo o que me restava. Raiva. Desprezo. Ódio cru e sem verniz. Não precisei dizer nada. Meus olhos já gritavam: “Você não tem ideia do que colocou em suas mãos.”

Ele deu um passo. Só um. Mas o suficiente para o som das botas rasgar o chão silencioso. E quando abriu a boca, sua voz saiu baixa. Calma. Quase… gentil.

— Bem-vinda, minha senhora. Você vai me odiar por isso.— Fez uma pausa. O canto da boca quase se moveu. — Mas foi a melhor escolha que já fiz.

Meu maxilar travou. Não respondi.

Porque não havia resposta que fosse suficiente. Mas o olhar que lancei de volta carregava o peso da promessa que pulsava nas minhas veias: “Eu vou te destruir.”

E, estranhamente, ele pareceu satisfeito com isso. Como se o ódio fosse exatamente o que esperava. Como se soubesse que só o ódio move uma alma quebrada.

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