Paula Caccini sempre soube o peso do sobrenome que carrega. Filha de Don Caterino, um dos homens mais temidos de Nápoles, ela foi criada para servir aos interesses da máfia. Seu destino já estava traçado: casar-se com Mario Moretti, herdeiro da Cosa Nostra, em uma união que selaria o poder das duas maiores organizações criminosas da cidade. Mas no dia do casamento, o impossível acontece. O carro do noivo é emboscado e Mario é brutalmente assassinado em plena luz do dia. O caos toma conta das ruas. Entre rumores de conspiração e sede de vingança, Don Caterino acredita que a emboscada foi um recado para ele. Para evitar uma guerra sangrenta, o pai de Paula propõe o improvável. Que Paula e Don Nicolo Moretti, patriarca da família rival, casem-se. Agora, entre traições, segredos e jogos de poder, Paula se vê presa em uma teia perigosa onde o amor parece impossível e a lealdade pode custar a vida. Mas uma pergunta ecoa como uma sentença: quem matou Mário Moretti? Uma trama de máfia, paixão e segredos que vai prender você até a última página.
Leer másPaula Caccini
O silêncio em nossa casa nunca era apenas silêncio.
Era uma coisa viva, pesada, que se enrolava nos corredores como uma serpente adormecida, pronta a sussurrar segredos e advertências. Eu cresci aprendendo a escutar o que o silêncio dizia. Ele me contava, antes de qualquer um, que meu pai estava de mau-humor, os passos eram mais curtos e secos no mármore.
Ele me avisava quando as visitas não eram bem-vindas, a pausa era longa demais antes do tilintar da campainha ser atendida. E, principalmente, ele carregava o eco da voz da minha mãe, um fantasma de perfume de jasmim e melancolia que nunca nos deixou completamente.
Em Nápoles, sob o sol implacável que tanto ilumina a beleza quanto expõe a sujeira, meu sobrenome é uma sentença. Não se pronuncia Caccini; sussurra-se, com um misto de respeito e medo. É meu pai, Don Caterino, a encarnação viva desse medo. Para o mundo, meu pai é um homem de negócios, um filantropo que financia a reconstrução de igrejas barrocas.
Para mim, a figura imponente que me ensinou, antes das tabuadas, que a honra da família é a única lei, e que nossa vida, a minha e a do meu irmão Vicenzo, nunca nos pertenceu de verdade.
Pertence a essa entidade abstrata e voraz chamada Família.
Lembro-me de ter uns seis anos, sentada no topo da escada de caracol que levava aos nossos quartos, estava espiando a sala de visitas. Meu pai recebia um homem cujas mãos tremiam tanto que o café na xícara de porcelana fina chocalhava, criando pequenos círculos de tão grande era o seu terror. Eu não entendia as palavras, elas eram baixas e cortantes, mas entendia a linguagem universal do poder.
O encolher dos ombros do homem, a voz firme e calma de meu pai, o modo como ele ajustou o anel de selar no dedo mindinho em um movimento tão suave, tão final. Aquele homem saiu da sala mais leve, agradecendo que as suas dívidas foram perdoadas ou transformadas em outra coisa, uma coisa que ele teria que pagar pelo resto da vida.
Aprendi ali que o medo é uma moeda mais forte que o euro.
Minha mãe, Isabella, tentou, enquanto pôde, ser um amortecedor entre o mundo brutal dos homens e o meu. Morreu quando eu tinha doze anos, um câncer silencioso que a consumiu sem fazer alarde, como tudo em nossa esfera.
Foi ela quem me deu pequenas doses de beleza pura, não manchada por transações ou lealdades compulsórias. Me ensinou a tocar piano, não canções napolitanas, mas Debussy e Chopin. “A música, minha pequena Paula”, ela dizia, com os olhos perdidos na janela que dava para o mar, “é a única coisa que é só nossa. Eles não podem comprá-la, nem a vender, nem a controlar. Ela simplesmente é.”
Ela partiu, levando consigo o pouco de suavidade que existia nestas paredes espessas. O silêncio da casa ficou mais profundo, mais carregado de coisas não ditas.
Vicenzo, meu irmão mais velho, mergulhou de cabeça no universo do nosso pai, ansioso para provar seu valor, para carregar o fardo do sobrenome com orgulho. Enquanto eu, fiquei no limbo, uma mulher crescendo num reino de homens, meu valor calculado não pela minha inteligência ou pelo meu caráter, mas pela minha utilidade futura.
Eu era um trunfo, um bem a ser guardado a sete chaves e negociado no momento certo.
E o momento certo chegou hoje.
A refeição da noite foi tensa. O ragù cozinhou por seis horas, mas o sabor se perdeu na minha boca, estava insosso diante da notícia que eu sabia que estava por vir. Meu pai mastigava devagar, metodicamente, seus olhos escaneando a mesa como um estrategista avaliando um campo de batalha. Vicenzo evitava meu olhar, focando no vinho tinto como se nele estivesse a soVicenzoo para algum problema complexo.
— Nicolo Moretti veio me visitar hoje — disse meu pai, pousando os talheres.
A declaração ecoou na sala de jantar como um disparo.
Os Moretti. Outro sobrenome pesado, do outro lado da cidade. Aliados, às vezes. E concorrentes, na sua grande maioria. Uma dinastia que queria se expandir, consolidar poder. Eu senti um nó de gelo se formar no meu estômago.
— Ele propôs uma… fusão — continuou-o, a palavra soando obscena e comercial. — Uma aliança que traria estabilidade para todos. Que acabaria com décadas de desconfiança estúpida.
Vicenzo finalmente olhou para mim. Havia uma pontinha de pena em seus olhos, rapidamente suplantada pela resignação. Ele já sabia.
Todos sabiam, menos eu, até aquele exato segundo.
— Que tipo de fusão, pai? — perguntei, minha voz soando estranhamente calma, como se pertencesse a outra pessoa.
Ele me fitou, sem hesitação, sem emoção. Era um negócio.
— Seu filho, Mario. Ele acha que vocês fariam um bom casal. E eu concordo.
O mundo não desabou. Não houve raios nem trovões. Somente o tilintar da faca de Vicenzo contra o prato. A fusão é o mesmo que dizer a palavra casamento.
Mario Moretti. Conhecia-o de vista, de eventos sociais onde nós, os filhos da realeza do submundo, éramos exibidos como troféus bem-vestidos. Ele era bonito, sim, com a beleza polida e vazia de um homem que nunca teve que duvidar de seu lugar no mundo. Mas seus olhos eram frios, calculistas, como exatamente os do meu pai.
— Mario Moretti? — consegui articular. — Pai, ele é…
— Ele é um bom partido — interrompeu-me, sua voz deixando claro que a discussão não era bem-vinda. — Vai herdar o império do pai. É educado e discreto. A união das nossas famílias será benéfica para todos e trará paz.
Paz. A palavra mais horrenda que já ouvi.
Paz para eles e para mim seria uma guerra perpétua, travada dentro de quatro paredes ainda mais douradas e opressoras do que estas.
— E o que eu quero? — A pergunta saiu num sussurro, uma heresia perigosa.
Meu pai inclinou a cabeça, como um cientista, observando uma cobaia comportando-se de forma inesperada.
— Você quer o que é melhor para esta família, Paula — disse, e cada palavra era uma pedra assentando meu destino. — Você é uma Caccini. Seu sangue, seu nome, sua vida, pertencem a esta casa. Este casamento é o que é melhor. A cerimônia será em três meses. Os detalhes já estão sendo acertados.
Ele retomou a refeição e o assunto foi encerrado. Vicenzo baixou a cabeça. Olhei para o meu prato, a comida agora me dando náuseas. A sala estava silenciosa novamente, mas desta vez o silêncio gritava. Gritava o fim de todas as minhas pequenas esperanças secretas, dos devaneios tolos de estudar música em Milão, de ter uma vida comum, de amar alguém por escolha e não por obrigação.
Após o jantar, subi para meu quarto, meus passos pesados sobre os degraus de mármore que eu escalava em segredo quando criança. Fechei a porta atrás de mim e encostei nela, como se pudesse barrar o futuro do outro lado. Meu quarto era meu único refúgio, cheio de livros e partituras, o último território onde Paula, apenas a Paula, ainda existia. E agora, até isso me era tirado.
Meus olhos pousaram na pequena caixa de joias no meu criado-mudo. Abri-a com dedos trêmulos. Lá, no fundo, envolto em veludo negro, estava o único pedaço tangível que me restava dela: um broche de prata com uma pérola solitária. Não era a joia mais valiosa que ela tinha, mas era a sua preferida. Ela era simples, elegante e não ostentava poder, apenas beleza.
Nicolo MorettiDeixei-a no altar, uma boneca de porcelana em um vestido branco num palco de horrores. O som da minha própria respiração era um rugido nos meus ouvidos, abafando o murmúrio consternado dos convidados, o cheiro do incenso, o peso dos olhos em mim.Caminhei pela nave central, um sobrevivente num naufrágio que eu mesmo havia ordenado. Minhas pernas moviam-se por pura força de vontade, cada passo um esforço monumental contra a maré de dor e fúria que ameaçava me arrastar para o abismo.Bruno estava à minha espera perto da porta lateral, seu rosto um quadro de ansiedade contida. Os homens, meus homens, estavam agrupados, suas posturas rígidas, suas mãos próximas às armas sob os paletós. Eles olhavam para mim não como seu Don, mas como uma fera ferida, imprevisível e perigosa. E é isso que eu era.— Nicolo — Bruno começou, sua voz cautelosa, o tom que se usa para acalmar um animal enjaulado.Eu o ignorei. Meus olhos vasculharam a igreja, passando por cima do seu ombro. E os v
Nicolo MorettiMas eu o conhecia. Conhecia cada ruga, cada mentira escondida naquelas feições de falcão. E nos seus olhos, por uma fração de segundo, eu não vi tristeza, mas… triunfo. Um brilho rápido, como se ele estivesse com uma carta ainda nas mangas.Ele se aproximou caminhando rápido, como se estivesse desesperado para evitar alguma coisa. Ele parou há dois metros de mim e estendeu a mão livre, como se quisesse me consolar.— Nicolo… acabei de ouvir a notícia. Uma tragédia. Uma tragédia horrível. — Sua voz era um fio de seda envenenada. — Juro por tudo que é sagrado, não fui eu. Não foi nenhum dos meus.Eu queria cuspir na cara dele. Queria arrancar seus olhos mentirosos com os dedos.Mas a mesma frieza que me permitira sobreviver a tantas décadas de guerra me dominou. A dor e a raiva foram comprimidas, compactadas num diamante negro de ódio puro no centro do meu peito.Eu engoli o grito, engoli as lágrimas que queimavam atrás dos meus olhos. Eu era Don Nicolo Moretti. E um Don
Nicolo MorettiO eco dos sinos da basílica martelava meus ouvidos, cada badalada um lembrete fúnebre do espetáculo que estava prestes a encenar. O ar na igreja estava pesado, carregado com o perfume enjoativo de gardênias e o cheiro acre do suor disfarçado de centenas de pessoas que me odiavam, me temiam.Eu, Don Nicolo Moretti, deveria estar radiante.Hoje é o grande dia da união das famílias mais poderosas da região. O dia em que meu sangue se misturaria com o dos Caccini e enterraríamos finalmente o machado de guerra, pelo menos até eu ter a chance de cravá-lo nas costas de Caterino no momento certo.Mas não havia aquele sentimento de felicidade em mim. Havia somente uma fria e familiar desconfiança, um nó de gelo no estômago que não se dissolvia há dias.Eu sorria, cumprimentava os convidados com acenos de cabeça e apertos de mão firmes, mas por dentro, cada risada soava falsa, cada olhar era uma potencial facada. A máscara de Don tranquilo e satisfeito era pesada, uma armadura qu
Paula CacciniAmanheceu com um sol implacável, como se o universo insistisse em ironizar o luto que se aninhava no meu peito. O vestido, uma obra-prima de renda e seda marfim, pesava sobre o meu corpo como uma armadura medieval. Cada pérola costurada à mão era um grão de areia me puxando para o fundo do mar. As mulheres da família, minhas tias e algumas primas, rodeavam-me como abutres admirados ou ajustando a cauda interminável do vestido, além do véu que mais parecia uma mortalha.— Que visão deslumbrante, Paula — disse uma das minhas tias, seus olhos brilhando com um lustre de vitória. — Don Caterino ficará tão orgulhoso.Orgulhoso. A palavra ecoou na minha mente, oca e amarga.Meu pai não estava lá. Ele não viera me ver, não me dera uma bênção, nem mesmo um aviso. Estava ocupado, disseram quando perguntei por ele. Estava gerindo os últimos detalhes da segurança.A palavra “segurança” foi sussurrada com uma importância que gelou meu sangue. Por que tanta segurança para um casamento
Paula CacciniOs preparativos para o casamento se desenrolaram como um cerimonial fúnebre disfarçado de festa. A casa, normalmente um santuário do silêncio pesado, foi invadida por uma legião de floristas, decoradores, chefs e costureiras. Era um turbilhão de luxo e perfeição, cada detalhe um testemunho do poder e da influência das duas famílias. E cada rosa-branca importada da Holanda, cada fio de ouro bordado no véu de seda francesa, era um prego a mais no meu caixão de noiva.Eu me movia por entre esse caos como um fantasma. As costureiras me mediam, suas fitas métricas circundando meu peito, meus braços, minha cintura, como se estivessem tomando as medidas para uma gaiola. Aquilo não era um vestido.Meu pai, Don Caterino supervisionava tudo com um olhar crítico e distante, aprovando ou rejeitando com um aceno de cabeça, ou um grunhido. Esse era o maior negócio de sua vida, e eu era o produto principal.Vicenzo tentou, em alguns momentos, quebrar o gelo. Trouxe-me um doce de sfogli
Paula CacciniPeguei-o e me dirigi ao espelho em pé no canto do quarto. A mulher que me encarava tinha olhos muito grandes em um rosto pálido. Os olhos da minha mãe. Prendi o broche na blusa, justo acima do meu coração. A pérola leitosa parecia uma lágrima solitária contra o tecido escuro.E então, olhando para meu próprio reflexo, a fachada de resignação rachou.Mamãe, pensei, a palavra um mantra desesperado em minha mente. O que eu faço?Ela não respondeu, é claro. Havia somente o meu reflexo, a joia dela e o peso esmagador de um sobrenome que eu nunca pedi para carregar.— Eu não o amo… — sussurrei para a mulher no espelho, e a mulher no espelho me olhou com um terror que era inteiramente meu. — Eu nem mesmo o conheço.Mas isso não importava. Eu não era paga para amar. Era paga para obedecer. Para consolidar alianças. Para perpetuar um nome. Eu era o preço da tal paz.Lembrei-me dos olhos de Mario Moretti. Havia neles uma centelha de ambição que não era muito diferente da de Vicenz
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