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08 - A Herança de Cinzas

Nicolo Moretti

O perfume delicado de Paula, um aroma de flor de laranjeira que deveria ser doce, agora me enojava. Era o cheiro da traição, da conspiração. Cada solavanco do carro na estrada costeira era um martelo batendo na minha têmpora, lembrando-me do destino que meu filho sofrera nesta mesma via.

Começa a criar uma imagem de Mario, carbonizado em minha mente, ela dançava na minha frente dos meus olhos, mesclando-se com o perfil pálido e estático de Paula, encolhida em seu canto.

A raiva, temporariamente contida pelo choque do seu toque na igreja, voltou a ferver, mais potente e venenosa que nunca. Ela era o símbolo vivo da minha perda, a prova da minha humilhação. E ela estava ali ao meu lado, quieta. Muito quieta.

Sua resignação me enfurecia ainda mais. Por que não gritava? Por que não suplicava? Era assim que os Caccini treinavam as vadias das mulheres com seu sangue? Para serem fantasmas silenciosos e obedientes?

Não consegui mais suportar. A voz saiu de mim rouca, carregada de um ódio que queimava por dentro.

— O seu pai é um carniceiro. — A acusação ecoou no espaço confinado, em um projétil direto naquela figura imóvel.

Ela estremeceu, mas não me olhou. Continuou encarando a paisagem que passava, como se eu não existisse.

— Ele matou o meu filho. O sangue do Mario está nas mãos dele. E nas suas.

Dessa vez, ela se virou. Seus olhos âmbar, ainda vermelhos pelo choro, não estavam mais cheios de pena. Estavam cheios de medo, sim, mas também de um lampejo de fogo.

— Eu não tive nada a ver com isso.

— Você é um Caccini! — gritei, perdendo o controle, minha voz atingindo um tom estridente. — O seu sangue é o mesmo dele! Sua vida pertence a ele! E agora pertence a mim. E eu juro por tudo que é sagrado, você nunca será feliz. Nunca terá um momento de paz. Vou fazer da sua vida um inferno, Paula. Cada segundo do seu dia será um lembrete do que o seu pai fez. Você vai sofrer como eu estou sofrendo. É uma promessa.

Ela engoliu em seco e eu vi suas mãos se apertarem no colo, os nós dos dedos brancos. O medo nela era algo tangível, a via como um animal acuado. Mas então, algo mudou em sua expressão. Uma resignação profunda, mas também uma centelha de algo que parecia… desafio.

— Se o senhor quiser — ela disse, sua voz surpreendentemente firme, considerando a situação. — Podemos ter um filho.

A declaração foi tão absurda, tão fora de qualquer expectativa, que por um segundo eu fiquei sem ar. Fiquei literalmente sem fala, olhando para ela como se ela tivesse crescido uma segunda cabeça.

— O quê? — foi tudo que consegui articular.

— Eu não sou minha família, Nicolo — ela continuou, ousando usar meu nome de batismo. — Fui ensinada para ser leal ao meu marido. Para honrá-lo. O senhor está me julgando sem me conhecer. Eu não sou uma assassina.

Um filho.

A sugestão ecoou na minha mente, grotesca e repugnante. A ideia de tocar naquela carne, de gerar uma vida dentro daquela mulher que carregava o sangue de Caterino… era a profanação final. Era colocar um novo Moretti no mundo com o veneno Caccini correndo em suas veias. Era uma traição à memória do meu filho.

— Um filho? — minha voz saiu como um sibilo de desprezo. — Você acha que eu colocaria minha semente em você? Que eu criaria um filho com o sangue do homem que matou Mario? Você me enoja. A simples ideia me enoja.

Avancei para o lado dela no banco. O carro balançou, mas eu não me importei. Agarrei seu queixo com força, forçando-a a me encarar. Meus dedos pressionaram a carne macia de seu rosto, e eu soube, com uma satisfação doentia, que deixaria marcas roxas.

— Escute-me bem, sua puta. Esta noite, vou tirar o que é meu por direito. Vou foder você até que não sobrem dúvidas, dê a quem você pertence. Vou arrancar sua virgindade, se é que ainda a tem, e vai doer. Vai doer muito. Mas isso será depois. Depois que eu vir com meus próprios olhos o que o seu pai fez com o meu filho.

Ela não lutou. Não tentou se soltar. Seus olhos começam a inchar com lágrimas novamente, mas ela as manteve contidas, olhando fixamente para mim. E então, com uma coragem que eu não sabia que ela possuía, ela falou, sua voz tremula, mas clara.

— Então, o senhor não cumprirá suas obrigações matrimoniais tão cedo.

Eu franzi a testa, confuso.

— O quê?

— Porque não foi meu pai — ela sussurrou, segurando meu olhar. — E a sua busca pela verdade… ela vai consumir cada segundo do seu tempo. A sua vingança será a sua única amante.

A frieza da afirmação, a precisão com que ela atingiu o cerne da questão, me deixou atordoado por um segundo. Ela não estava errada. A obsessão já estava se apoderando de mim, envenenando cada pensamento. Mas ouvi-la dizer aquilo, com uma clareza assassina, foi como um balde de água gelada.

Soltei seu queixo com um empurrão de nojo. Ela recuou, levando a mão ao rosto onde meus dedos haviam deixado marcas vermelhas que me deram uma enorme satisfação.

Não trocamos mais uma palavra pelo resto da viagem. A estrada subiu, serpenteando por penhascos acima do mar. O cheiro de fumaça começou a impregnar o ar, mesmo com as janelas fechadas. Um cheiro doce e enjoativo de plástico queimado, borracha e… algo mais. O odor de algo orgânico pairava no ar.

O carro parou atrás de uma barreira de viaturas policiais. A cena era caótica. Homens da lei tentavam conter curiosos e jornalistas, enquanto os bombeiros davam os últimos jatos de água nos restos fumegantes de um veículo que mal podia ser reconhecido. Era uma carcaça negra e retorcida, um monumento à morte.

Meu coração parou. O mundo desfocou novamente. Desci do carro, minhas pernas bambas. Bruno se aproximou, seu rosto ainda marcado, sua expressão sombria.

— Don Nicolò… é melhor não…

Eu o ignorei. Caminhei em direção aos destroços como um sonâmbulo. O calor residual chegava ao meu rosto. E então eu vi, no chão, ao lado do que fora o carro de Mario, uma forma longa e negra envolta em um saco de corpo.

— Abram — ordenei, minha voz rouca.

Um legista hesitou, mas um olhar dos meus homens foi suficiente. A bolsa de zíper foi aberta.

O que havia dentro não era um homem. Era uma coisa. Uma estátua de carvão e carne retorcida. O rosto era irreconhecível, os membros contraídos numa posição fetal de agonia suprema. O cheiro era indescritível. Um cheiro que eu nunca esqueceria.

Uma onda de náusea e dor tão avassaladora me atingiu que eu quase desmaiei ali mesmo. Meu filho, um garoto arrogante e estúpido, mas mesmo assim meu filho. Reduzido àquilo. Aquela massa negra e horrível.

A raiva voltou, cem vezes pior. Uma fúria cega, incontrolável. Precisava de um culpado. Precisava de um rosto para aquela dor que estava sentindo. E o único rosto por perto era o dela.

Virei-me, meus olhos procurando Paula. Ela havia saído do carro, ficando parada a alguns metros, observando a cena com horror. Seu vestido de noiva era um insulto grotesco naquele cenário de morte.

Avancei em direção a ela. Ela tentou recuar, mas meus homens a cercaram. Agarrei-a pelo braço com uma força desumana, arrastando-a através da terra suja, ignorando seus gritos de protesto.

— Olhe! — gritei, arremessando-a de joelhos ao lado do saco negro. Sua mão entrou no saco preto e acabou tocando no peito que um dia foi músculo e agora era só um torrão chamuscado.

Ela tocou o tecido ensanguentado e gritou, um som de puro terror.

— OLHE PARA O QUE O SEU PAI FEZ! OLHE PARA O SEU NOIVO, SUA MALDITA ASSASSINA!

Ela estava tremendo incontrolavelmente, seu rosto enterrado nas mãos, seu corpo convulsionando em soluços. A visão era grotesca, a noiva de branco, ajoelhada na sujeira, ao lado dos restos carbonizados do noivo, com o novo marido gritando acusações de assassinato.

Os policiais olhavam em choque. Meus homens estavam tensos, prontos para qualquer coisa. O mundo parou para assistir à minha loucura.

Paula levantou o rosto, suas feições distorcidas pela dor e pelo nojo. As lágrimas haviam limpado caminhos limpos em seu rosto sujo de terra e lágrimas.

— Eu não fiz isso — ela chorou, sua voz um fio de esperança no meio do desespero. — Por favor… eu não fiz isso.

Mas eu já não a ouvia. A dor era grande demais. A raiva era tudo que me restava. Apontei para ela, para o corpo, para o mundo.

— ELA É UMA CACCINI! — gritei, minha voz se perdendo no vento que soprava do mar. — O SANGUE DELES ESTÁ NISSO! EU OS DESTRUIREI! DESTRUIREI TODOS ELES!

E naquele momento, ajoelhada na lama ao lado do corpo do homem que deveria ser seu marido, Paula não me olhou com medo ou ódio. Ela me olhou com uma pena tão profunda, tão absoluta, que me cortou mais profundamente que qualquer lâmina.

Ela via que eu já estava destruído. E que a minha vingança seria a minha própria condenação.

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