Paula Caccini
Amanheceu com um sol implacável, como se o universo insistisse em ironizar o luto que se aninhava no meu peito. O vestido, uma obra-prima de renda e seda marfim, pesava sobre o meu corpo como uma armadura medieval. Cada pérola costurada à mão era um grão de areia me puxando para o fundo do mar. As mulheres da família, minhas tias e algumas primas, rodeavam-me como abutres admirados ou ajustando a cauda interminável do vestido, além do véu que mais parecia uma mortalha.
— Que visão deslumbrante, Paula — disse uma das minhas tias, seus olhos brilhando com um lustre de vitória. — Don Caterino ficará tão orgulhoso.
Orgulhoso. A palavra ecoou na minha mente, oca e amarga.
Meu pai não estava lá. Ele não viera me ver, não me dera uma bênção, nem mesmo um aviso. Estava ocupado, disseram quando perguntei por ele. Estava gerindo os últimos detalhes da segurança.
A palavra “segurança” foi sussurrada com uma importância que gelou meu sangue. Por que tanta segurança para um casamento que supostamente selava a paz?
No carro que nos levava à basílica, o silêncio era mais espesso que o veludo dos bancos. Meu pai, enfim ao meu lado, não olhava para mim. Seu perfil era uma escultura de granito, seus olhos fixos na estrada, escaneando cada beco, cada janela, cada rosto anônimo na calçada.
Sua mão, apoiada no joelho, estava cerrada, os nós dos dedos brancos.
— Pai… — minha voz saiu frágil, quebrando aquele silêncio opressivo.
Ele se virou, e seu olhar não era o de um pai no dia do casamento da filha. Era o olhar de um general no dia da batalha. Frio, calculista e impaciente.
— O que é, Paula?
— Está tudo bem? — perguntei, sentindo a pergunta idiota mesmo antes de terminá-la.
Ele fitou-me por um segundo longo demais, como se eu fosse uma estranha falando uma língua que ele não compreendia.
— Tudo está sob controle — respondeu, a voz plana, sem emoção. — Hoje, tudo será resolvido. Você fará sua parte e não teremos mais problemas.
Ele voltou a olhar pela janela, encerrando o assunto. Fazer minha parte. Acabara de me tornar um soldado, sendo enviado para a linha de frente, sem saber contra quem ou pelo quê eu lutaria.
Ao chegarmos à basílica, a sensação estranha intensificou-se. Havia muitos homens, eles não usavam smoking, usavam ternos escuros e sérios, com discretos fones no ouvido. Homens dos Caccini e homens dos Moretti, misturados, mas não integrados.
Eles não conversavam, mas observavam-se mutuamente com a desconfiança tensa de cães de rinha prestes a serem soltos. E todos, absolutamente todos, olhavam na direção do carro onde estava. Não com admiração pela noiva, mas com uma avaliação intensa. Como se eu fosse um pacote frágil e valiosíssimo que não podia ser danificado antes de ser entregue.
Meu pai agarrou meu braço com mais força que o necessário, quase me arrastando pela nave central em direção ao altar. Seus olhos não paravam de se mover, vasculhando cada canto, cada rosto na congregação. Ele não via a igreja; via um campo minado.
— Onde está Mario? — sussurrei, meu coração acelerando num ritmo de pânico. O noivo deveria estar à frente, esperando. O lugar estava vazio.
— Ele chegará — rosnou meu pai, sua paciência claramente no limite.
Fomos posicionados no vestíbulo, escondidos da vista dos convidados. O som do órgão era ensurdecedor, abafando o ruído dos meus próprios pensamentos. Foi então que comecei a ouvir os sussurros. Primeiro, baixos, vindos de um grupo de homens Moretti perto da porta principal.
— Dizem que foi uma emboscada na estrada costeira…
— O carro explodiu… nada sobrou…
— Tradimento… foi uma armadilha dos Caccini…
As palavras cortaram o ar como facas. Emboscada. Explodiu. Tradimento. Meu sangue pareceu congelar nas veias. Olhei para o meu pai. Seu rosto estava pálido, mas seus olhos brilhavam e pude ver um pânico que não esperava naquele momento.
Foi quando Vincenzo entrou no vestíbulo. Seu smoking estava desalinhado, seu rosto estava manchado de sujeira, ou era fuligem? E seus olhos estavam arregalados.
— Pai… — sua voz foi um sopro rouco, cortando a música solene. — É verdade. O carro de Mario… foi atingido na curva do Farol. Ele… ele não teve chance. Está morto, o seu corpo foi incinerado.
O mundo desabou. O som do órgão transformou-se num zumbido distante. A beleza opressora da basílica dissolveu-se numa névoa grotesca. Mario estava morto. O homem com quem deveria me casar, o arrogante estranho que era meu destino, tinha sido apagado da existência.
Meu pai não se moveu. Ele somente assentiu, lentamente, como se recebesse um relatório sobre o clima.
— E Nicolo? — sua voz era calma, quase serena.
— Ele está lá dentro. Os homens dele estão enlouquecendo. Eles gritam por vingança. Dizem que fomos nós. Que foi uma traição.
Meu pai soltou meu braço. Finalmente, ele olhou para mim, mas não me viu. Viu uma peça no tabuleiro que precisava ser movida com urgência para evitar que o perdesse o jogo.
— Fique com ela — ordenou a Vincenzo.
E sem outra palavra, virou-se e entrou na igreja, caminhando com passos firmes em direção ao caos que se instalara.
Vincenzo agarrou meus ombros, seus dedos trêmulos.
— Paula… por Deus, o que está acontecendo?
Olhei para ele e, pela primeira vez, não vi o meu irmão durão. Vi um garoto assustado.
— Eles mataram Mario — sussurrei, a realidade começando a perfurar o meu estado de choque. — Pelo que vejo, nosso pai não parece surpreso.
Os olhos de Vincenzo se arregalam em compreensão e, em seguida, com terror. Ele entendia as implicações tão bem quanto eu. Uma guerra sangrenta estava prestes a eclodir naquele santo lugar, e o estopim havia sido a morte do herdeiro Moretti, talvez esse sangue esteja nas mãos dos Caccini.
Não demorou mais que cinco minutos. Cinco minutos em que Vincenzo e eu ficamos paralisados, ouvindo os gritos abafados vindos do interior da igreja, o som de vidros quebrando, o órgão parando de tocar abruptamente. Então, a porta do vestíbulo se abriu com violência.
Meu pai estava lá. Seu smoking estava impecável, mas seus olhos eram os de um homem que acabara de conquistar um império e exterminar um inimigo num único movimento. Em seus passos, vindo da escuridão da igreja, estava Nicolo Moretti.
O Don Moretti era irreconhecível. Seu rosto, outrora arrogante, era uma máscara de dor e fúria incontida. Seus olhos azuis, antes vazios, estavam injetados de sangue, fixos no meu pai com um ódio tão puro que era quase tangível. Mas sob esse ódio, havia algo mais: uma rendição absoluta e esmagadora.
Meu pai ignorou-o. Dirigiu-se a mim.
— Paula. Venha.
— Pai… — minha voz falhou. — O que… o que vamos fazer?
— O casamento prosseguirá — ele anunciou, sua voz clara e cortante como um diamante.
Eu estremeci, confusa. Vincenzo deu um passo à frente.
— Pai, ele está morto! Como?
— O noivo não será mais Mario… — interrompeu meu pai, seu olhar nunca deixou o meu. — Será Don Nicolo.
O ar saiu dos meus pulmões. O mundo girou. Olhei para Nicolo, o homem que era para ser meu sogro, o homem que acabara de perder seu filho e cujo olhar prometia morte e destruição.
E ele iria se casar comigo?
— Não — a palavra saiu como um gemido, um protesto fraco e inútil. — Pai, por favor, você não pode fazer isso…
— Posso e farei! — sua voz trovejou, ecoando no vestíbulo vazio. — A aliança deve ser selada e a paz deve ser garantida. A morte de Mario foi uma tragédia. Uma tragédia que poderia incendiar Nápoles. A única maneira de evitar uma guerra total é mostrar unidade. O casamento de minha filha com o Don Moretti mostrará que as famílias estão unidas, apesar da perda. Que a traição não veio de nós.
Era uma loucura. Uma obscenidade. Olhei para Nicolo, procurando por qualquer sinal de recusa. Mas ele somente permaneceu ali, seu ódio contido por algo maior que desconhecia.
— É a sua honra, Paula — disse meu pai, sua voz baixando para um sussurro mortal. — É o seu dever. Mario está morto. Sua vida agora pertence a Nicolo. É a compensação.
Compensação?
Eu era o pagamento por uma dívida de sangue que provavelmente foi o meu próprio pai que havia criado. Com certeza, esse homem que me odiaria para sempre.
Meu pai pegou meu braço novamente. Ele me puxou para fora do vestíbulo, para a nave central da basílica. Os convidados estavam em pé, confusos e aterrorizados com o caos que reinava. Mas quando meu pai apareceu, arrastando-me pela nave, com Nicolo Moretti caminhando atrás de nós, um silêncio mortal caiu sobre todos.
Ele não me levou ao altar. Ele me apresentou àquele circo de horrores. Parou diante do padre, que estava pálido, talvez temendo pela própria vida.
— Proceda. — ordenou meu pai para o padre que tremia.
— Mas… o noivo… — gaguejou o padre.
— O noivo está aqui — rugiu meu pai, olhando para Nicolo.
Nicolo deu um passo à frente. Seus olhos encontraram os meus.
Não havia um pingo de humanidade neles, somente um abismo de dor e ódio. Ele não me via como uma pessoa. Eu era um espólio de guerra e talvez a mandante do assassinato do seu único filho.
O padre, sob o olhar assassino do meu pai, começou a cerimônia. Suas palavras, sagradas e cheias de promessas de amor e honra, soavam como as blasfêmias mais grotescas já proferidas. Eu mal conseguia ficar em pé.
Quando chegou a hora dos votos, o padre olhou para Nicolo.
— Você, Nicolo, aceita Paula como sua legítima esposa?
Nicolo fitou-me. O silêncio na igreja era absoluto. Pude ver o conflito rasgando-o por dentro, a dor da perda do filho e uma fúria controlada naquele momento. Por um segundo, achei que ele recusaria, que ele gritaria e começaria a atirar, matando a todos.
Mas, seus olhos se encontraram com os do meu pai. E algo passou entre eles. Um aviso final. Uma ameaça não verbalizada. Nicolo voltou a olhar para mim e, antes que dissesse algo, via o quanto a sua mandíbula estava tensa.
— Sim. — Sua voz saiu rouca.
A palavra ecoou como um tiro.
O padre então se virou para mim, seus olhos suplicando por cooperação, por um fim rápido para aquela farsa.
— E você, Paula, aceita Nicolo como seu legítimo esposo?
Todos os olhos estavam sobre mim. Do meu pai, frios e exigentes. De Nicolo, ardendo em ódio. Dos convidados, cheias de choque e morbidade. Olhei para o broche da minha mãe, a pérola manchada de meu sangue.
“Sobrevivência, sussurrou ela em meu ouvido. Apenas sobreviva.”
Abri minha boca. Nenhum som saiu.
Engoli o nojo, o medo, o desespero. Fechei os olhos e vi o rosto do meu irmão, a lealdade cega que o mantinha vivo. Respirei fundo.
E menti para Deus e para todos naquela igreja.
— Sim.
A palavra não foi mais que um sussurro, mas foi o suficiente. Meu pai soltou um suspiro quase inaudível de satisfação. E vi quando Nicolo cerrou os punhos.
O padre declarou-nos marido e mulher.
Não houve música, não houve aplausos. Somente um silêncio pesado e constrangedor, quebrado pelo som dos passos do meu pai se afastando, de mim e do meu então marido.
Nicolo se virou para mim. Seu olhar não era mais somente de ódio, era de posse. Eu não era mais Paula Caccini. Eu era Paula Moretti. A viúva de um homem que nunca foi meu marido. A esposa de um homem que era o meu carcereiro.
Ele se curvou, seu rosto chegando perto do meu, seu hálito cheirando a uísque e raiva.
— Você agora é minha — sussurrou, em meu ouvido. — E eu vou me certificar de que cada dia da sua vida seja um inferno, para pagar pelo sangue do meu filho.
Ele se afastou, deixando-me ali paralisada no altar, vestida de branco com manchas de cinzas e sangue que somente eu podia ver. Olhei para a multidão de rostos chocados e temerosos.
O pesadelo havia acabado de começar.
Nicolo encontrou um novo e vulnerável protagonista para a sua novela.
E eu fiquei ali sozinha e nesse momento era a noiva em cinzas.