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07 - Nicolo Moretti

Nicolo Moretti

Deixei-a no altar, uma boneca de porcelana em um vestido branco num palco de horrores. O som da minha própria respiração era um rugido nos meus ouvidos, abafando o murmúrio consternado dos convidados, o cheiro do incenso, o peso dos olhos em mim.

Caminhei pela nave central, um sobrevivente num naufrágio que eu mesmo havia ordenado. Minhas pernas moviam-se por pura força de vontade, cada passo um esforço monumental contra a maré de dor e fúria que ameaçava me arrastar para o abismo.

Bruno estava à minha espera perto da porta lateral, seu rosto um quadro de ansiedade contida. Os homens, meus homens, estavam agrupados, suas posturas rígidas, suas mãos próximas às armas sob os paletós. Eles olhavam para mim não como seu Don, mas como uma fera ferida, imprevisível e perigosa. E é isso que eu era.

— Nicolo — Bruno começou, sua voz cautelosa, o tom que se usa para acalmar um animal enjaulado.

Eu o ignorei. Meus olhos vasculharam a igreja, passando por cima do seu ombro. E os vi.

Vincenzo, com o seu braço protetor ao redor de seus ombros de sua irmã. O seu rosto é uma máscara de revolta impotente. E Caterino. Meu sogro. O carniceiro do meu filho parecia completamente indiferente.

Ele falava com um de seus capangas, seu rosto uma escultura de gelo, mas seus olhos… seus olhos brilhavam com uma satisfação obscena. Ele estava furioso pela quebra do protocolo? Talvez. Mas ele também estava vitorioso. Ele conseguiu evitar um banho de sangue em seu território. Mas isso não significa que ele conseguirá enfiar-me em uma coleira ou que vá aceitar algo vindo dele tão facilmente.

A visão dele fez o negro ódio no meu peito ferver, subir pela minha garganta como bile.

— O corpo — a palavra saiu rasgada, uma caveira cuspida no chão de mármore. — Onde está? Preciso vê-lo.

Bruno hesitou. Ele olhou para Paula, isolada e pálida no altar ao lado do seu irmão, depois de volta para mim.

— Don Nicolo… talvez seja melhor… cuidar primeiro da sua esposa. Levá-la para… — ele não conseguiu terminar a frase. Para onde? Para a minha casa? Para o covil do lobo?

A menção dela, a sugestão de que eu tinha deveres para com aquela… aquela Caccini… foi o estopim. A corda que prendia minha sanidade, já esticada ao limite, arrebentou de uma vez.

— A minha ESPOSA? — gritei, minha voz ecoando como um tiro na cúpula da basílica, fazendo centenas de pessoas estremecerem pelo silêncio que foi rompido. — Você está me dizendo para cuidar da FILHA DELE enquanto a carne do MEU FILHO está queimando em algum lixão?

Avancei contra Bruno antes que ele pudesse reagir. Agarrei a lapela impecável do seu terno caro, torcendo o tecido em meus punhos, e o esmaguei contra a parede de pedra às suas costas. O impacto foi seco e ossudo. Um baque surdo que silenciou até o último sussurro na igreja.

— Onde está o corpo do meu filho, seu filho da puta incompetente? — rosnei, meu rosto a centímetros do dele, meu hálito quente contra sua pele pálida. — Você era para vigiá-lo! Você era para mantê-lo a salvo! ONDE ELE ESTÁ?

Bruno engasgou, seus olhos arregalados de terror e surpresa. Ele me conhecia há trinta anos. Ele tinha me visto cometer atrocidades. Mas nunca havia visto isso. Ele nunca havia visto o monstro sem rédeas.

— Nicolo… por favor… os homens…

— OS HOMENS QUE SE FODAM! — Berrei, sacudindo-o contra a parede outra vez.

A raiva, a dor, a impotência, tudo se fundiu num redemoinho cego e assassino. Minhas mãos subiram, encontraram seu pescoço. A carne era quente e pulsante. Sua artéria carótida batia frenética contra meus polegares.

— ELE FEZ VOCÊ DE PALHAÇO! E VOCÊ DEIXOU! VOCÊ DEIXOU MEU FILHO MORRER!

Apresso-me. Apertei meus dedos contra o seu pescoço, sentindo a musculatura afinando em proporção à minha raiva que aumentava. A visão de Bruno começou a ficar turva, sua boca abria e fechava como a de um peixe fora d’água, tentando sugar ar que eu não permitia que chegasse aos seus pulmões.

Sua pele começou a ganhar uma tonalidade púrpura horrível. Ele não lutou. Sabia que seria inútil. Seus olhos fitavam os meus, cheios de um entendimento terrível. Ele estava morrendo. E eu ia matá-lo. Ia matar o homem que era meu braço direito, meu irmão de armas, porque ele estava ali, e porque a minha dor precisava de um rosto para destruir.

O mundo ao meu redor desapareceu. Não havia igreja, não havia convidados, não havia guerra. Havia somente a pulsação selvagem do meu sangue nas têmporas, o calor do pescoço de Bruno sob minhas mãos, e a imagem do meu filho, queimado, gritando por um pai que não estava lá para salvá-lo. Eu estava lá agora, de uma forma errada, vingando-o. Matando o mundo inteiro com minhas próprias mãos.

Ninguém se moveu. Meus homens estavam paralisados, presos entre a lealdade e o medo. Os homens de Caterino observavam, alguns com satisfação disfarçada, outros com horror. O padre, um velho decrépito, ficou parado a alguns metros, seus lábios movendo-se em silêncio, administrando a extrema-unção a um homem que ainda não estava morto. Era o circo final. A mais pura loucura.

Foi então que eu senti.

Um toque.

Leve. Quase imperceptível. Como a pata de um passarinho pousando no meu braço.

A sensação foi tão estranha, tão fora de lugar naquele inferno, que por um segundo meu cérebro se recusou a processá-la. Minhas mãos, porém, afrouxaram a pressão por uma fração de milímetro. Em um momento de surpresa.

Virei a cabeça, os olhos injetados de sangue em puro ódio, o rosto distorcido por um ódio que não era mais humano.

Eu a vejo lá ao meu lado.

Paula.

Minha esposa.

Ela não gritava. Não tentava me puxar. Somente estava ali, seu vestido de noiva, um clarão surreal na penumbra do canto da igreja.

Seu rosto estava pálido, manchado de lágrimas silenciosas que escorriam por suas bochechas, sem estragar a maquiagem impecável. Mas seus olhos… seus olhos âmbar não estavam cheios de medo. Estavam cheios de… pena. Uma pena profunda, compreensão, que me perfurou de uma forma que o grito de Bruno nunca poderia.

Aquilo… aquilo me enfureceu ainda mais. Quem era ela para me olhar com pena? A filha do carniceiro! A herdeira do sangue que matou meu menino!

— O que você… — comecei a gritar, minha voz um rugido animal, mas as palavras morreram na minha garganta.

Ela não recuou. Seus dedos, finos e frios, ainda repousavam no meu braço, sobre a lã áspera do meu terno. A aliança de ouro que eu mesmo, num ato de pura ironia macabra, havia colocado em seu dedo há menos de uma hora, brilhava com uma luz fraca.

— Solte-o — ela disse.

Não foi uma ordem, tão pouco foi um apelo, foi um sussurro. Claro. Calmo e cortante como um diamante. Um som tão puro e fora de lugar naquele pandemônio que pareceu silenciar até o rugido na minha própria cabeça.

Dentro de mim, uma guerra colossal eclodiu. A fera queria destruí-la, arrancar aquele braço impertinente que ousava tocar-me. Queria esmagar aquela piedade insultuosa junto com a traqueia do meu consigliere.

Mas outra parte, uma parte minúscula e soterrada sob escombros de dor, reconheceu algo.

Coragem.

Não há coragem estúpida de Mário, de se inflar e desafiar. Mas uma coragem quieta. Desesperada. A coragem de quem não tem mais nada a perder.

E meus dedos… meus dedos traidores… afrouxaram.

Ela não quebrou o contato visual. Seus olhos estavam fixos nos meus, segurando-me ali, na beira do abismo. Eles diziam: Eu sei. Sei da sua dor. Mas isso não é o fim.

Bruno caiu de joelhos, engasgando, ofegante, uma mão no pescoço, onde as marcas dos meus dedos já estavam ficando roxas. Ele olhou para Paula com uma expressão de incredulidade absoluta, depois para mim, e se afastou rastejando para longe da minha fúria.

Continuei parado, ofegante, minhas mãos ainda tremendo com a necessidade de estrangular, de destruir. Olhei para Paula. A raiva ainda fervia em mim, mas agora misturada com uma confusão profunda, envergonhada.

Ela havia me domado, em plena igreja, na frente de todos, ela, uma Caccini, havia acalmado a fera com um toque e um sussurro.

A humilhação juntou-se à dor, criando um coquetel venenoso. Eu me sentia como se estivesse nu, exposto. Derrotado pelo simples maldito toque de uma mulher.

Sem uma palavra, sem olhar para ninguém, eu agarrei o braço dela. Minha pegada foi forte e tenho quase certeza de que foi dolorosa, um aviso e uma afirmação. Eu ainda era o Don. Ela ainda era minha propriedade.

Ela não resistiu. Não fez nenhum som. Somente permitiu que eu a puxasse, seus passos vacilantes acompanhando os meus passos largos e furiosos em direção à saída.

Ignorei Caterino, cujo rosto eu nem queria ver. Ignorei Vincenzo, que deu um passo à frente, mas foi contido por um olhar do pai. Ignorei todos os olhares de horror, nojo, medo e fascínio.

Atravessei as grandes portas da basílica, arrastando minha noiva para a luz cegante do sol napolitano. Meu automóvel estava lá, a porta aberta e um homem meu segurando-a.

Joguei Paula no banco de trás, entrando atrás dela. Antes de fechar a porta, gritei para o motorista, minha voz rouca da gritaria e da emoção.

— Para onde encontraram o carro. Agora.

O motorista, estava pálido, somente assentiu com a cabeça e acelerou.

Dentro do carro, o silêncio era mais pesado que na igreja. O perfume dela, algo suave e floral, misturava-se com o cheiro do meu suor e do medo. Ela estava encolhida no canto, olhando pela janela, seu véu desalinhado e via as suas mãos tremendo no colo.

Eu a olhei, meu coração ainda batendo como um tambor de guerra. A raiva ainda estava lá, um vulcão prestes a entrar em erupção novamente.

Mas agora, havia outra coisa. Uma pergunta que começava a se infiltrar em minha consciência muito mais do que todas as outras coisas. Era um reconhecimento perturbador.

Quem era essa mulher que tinha a coragem de tocar no demônio?

E, mais importante: o que eu faria com ela agora que ela havia testemunhado a extensão da minha loucura?

Olhei pela janela, os prédios de Nápoles passando como um borrão. Estávamos indo ver o que restara do meu filho. E eu levava comigo a filha do meu inimigo. A única testemunha do meu colapso. E minha única âncora, por mais paradoxal que fosse, naquele mar de escuridão.

Estava em um pesadelo, eu percebi que nesse momento ele somente mudara de forma. E ela, Paula, estava no centro dele junto comigo.

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