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03 - A União de Sangue

Paula Caccini

Os preparativos para o casamento se desenrolaram como um cerimonial fúnebre disfarçado de festa. A casa, normalmente um santuário do silêncio pesado, foi invadida por uma legião de floristas, decoradores, chefs e costureiras. Era um turbilhão de luxo e perfeição, cada detalhe um testemunho do poder e da influência das duas famílias. E cada rosa-branca importada da Holanda, cada fio de ouro bordado no véu de seda francesa, era um prego a mais no meu caixão de noiva.

Eu me movia por entre esse caos como um fantasma. As costureiras me mediam, suas fitas métricas circundando meu peito, meus braços, minha cintura, como se estivessem tomando as medidas para uma gaiola. Aquilo não era um vestido.

Meu pai, Don Caterino supervisionava tudo com um olhar crítico e distante, aprovando ou rejeitando com um aceno de cabeça, ou um grunhido. Esse era o maior negócio de sua vida, e eu era o produto principal.

Vicenzo tentou, em alguns momentos, quebrar o gelo. Trouxe-me um doce de sfogliatella ainda quente, minha preferência durante a infância.

— Para animar a noiva. — disse ele, com um sorriso forçado.

Mas o doce tinha o gosto de cinzas na minha boca.

Nossos olhares se cruzavam, e eu via nele o mesmo conflito que me consumia: a lealdade cega ao clã contra o amor frágil por uma irmã. Ele era o herdeiro, o futuro Don, mas naquele momento era somente um irmão impotente.

A primeira vez que vi Mario Moretti após o anúncio do noivado foi num almoço formal para discutir… bem, para discutir sobre nós. Eles vieram à nossa casa, os Moretti. Don Nicolo, um homem mais alto e diferente do meu pai, é um homem elegante que trajava um conjunto de quatro peças. Com uma voz rouca de quem gritou ordens a vida toda e olhos de um azul tão claro que pareciam translúcidos e de um vazio que não sabia explicar. E ao seu lado, Mario.

Ele era, inegavelmente, bonito. Vestia um terno impecável de um azul-marinho que combinava com seus olhos escuros, herdados da sua mãe siciliana, segundo os boatos. Seu cabelo era escuro e perfeitamente cortado, e ele se movia com uma confiança que beirava a arrogância, uma posse natural do espaço que ocupava. Quando seus olhos pousaram em mim, não foi com admiração, curiosidade ou desejo.

Foi com a avaliação crítica de um homem examinando um cavalo de raça que acabará de comprar. Um rápido escaneamento, da cabeça aos pés, seguido por um sorriso estreito e calculista que não alcançou seus olhos.

— Paula — disse, tomando minha mão e levando-a aos lábios num gesto que deveria ser galante, mas que me fez sentir como se um inseto tivesse caminhado sobre minha pele. — É um prazer finalmente ver de perto a joia mais preciosa dos Caccini.

Sua voz era suave, educada, mas por trás das palavras havia um fio de posse e de conquista.

— O prazer é meu, Mario. — menti, retirando a mão com a suavidade que anos de etiqueta me ensinaram.

O almoço foi um exercício de teatro absurdo. Don Nicolo e meu pai falavam de negócios genéricos, exportação de azeite, investimentos imobiliários, mas cada palavra era uma flecha envenenada, cada elogio, uma faca escondida nas costas. Eles riam de gargalhadas que soavam falsas e ocas.

Mario, ao meu lado, desempenhava seu papel perfeitamente. Servia-me água, elogiava a comida com comentários vazios, e de vez em quando lançava um olhar para meu pai, buscando aprovação, como um cachorro bem treinado. Eu conseguia sentir a tensão nele, uma energia contida, ambiciosa. Ele não me queria, queria o que eu representava, uma chave para o reino dos Caccini.

— Espero que goste de Capri — Nicolo disse, em um momento em que a conversa entre ele e meu pai diminuiu. — Passei minha lua de mel lá. É… adequado.

— Adequado? — perguntei, erguendo uma sobrancelha, desafiando a frieza da palavra.

Ele sorriu, um pouco mais genuíno dessa vez, surpreso por eu questionar.

— Privativo. Discreto e belo. Tudo o que uma lua de mel precisa ser, não acha?

— Nunca pensei muito sobre isso — respondi, olhando para o meu prato.

— É porque você nunca precisou — Nicollo retrucou, sua voz baixa, só para mim. — Agora precisa. E eu garanto que será… adequado.

A sua mensagem ficou clara, minha opinião nunca importou. Agora, importava menos ainda. Eu era uma peça do cenário da vida de todos eles, e pelo visto Capri era o palco escolhido.

Os dias se arrastaram, cada um mais opressor que o anterior. O clímax dessa pantomima foi o jantar de véspera do casamento, realizado no salão de baile de um hotel histórico de Nápoles, com vista para a baía. O lugar estava irreconhecível, transformado em uma floresta de flores brancas e velas tremulantes. O ar estava pesado com o perfume das gardênias e o cheiro do medo e da ambição disfarçado pelos perfumes caros.

Eu usava um vestido vermelho-escuro, uma cor ousada que eu escolhera como um último ato de rebeldia silenciosa. O broche de pérola da minha mãe estava preso no decote, meu talismã secreto. Mario, ao meu lado, de smoking impecável, parecia satisfeito. Eu era o troféu que ele estava prestes a exibir.

Os dois clãs estavam ali, dividindo o mesmo espaço como dois rivais enjaulados. De um lado, os Caccini, seus homens sérios, de ternos escuros, suas mulheres elegantes e reservadas. Do outro, os Moretti, mais barulhentos, mais ostensivos em suas joias e risadas, mas com os mesmos olhos vigilantes e desconfiados. Era uma dança perigosa, onde um passo em falso, um olhar mal interpretado, poderia desencadear o caos que todos fingiam querer evitar.

Durante o jantar, sentei-me à mesa principal, entre Mario e Don Nicolo. Meu pai estava à direita de Nicolo. A conversa fluía de uma forma forçada, falavam sobre futebol, política, tudo menos o elefante na sala, o ódio que fervilhava sob a superfície polida.

Foi então que percebi. Meu pai, Don Caterino, sempre um mestre do controle, estava… tenso. Não era uma tensão visível para quem não o conhecia como eu. Era o modo como ele segurava o talher, os nós dos seus dedos brancos. Era o modo como seus olhos, normalmente impenetráveis, pousavam em Don Nicolo com a frequência de um falcão vigiando sua presa.

E Nicolo… ele estava estranhamente expansivo, sua voz rouca ecoando mais alto que o necessário. Ele brindou à “nova era de prosperidade”, ao “fim das desavenças tolas”, mas seus olhos azuis e vazios não sorriam. Eles calculavam.

— Caterino, meu velho amigo — disse Nicolo, erguendo a taça de vinho, sua voz carregada de uma ironia que cortava como vidro. — Quem diria, não é? Nossas famílias, unidas pelo sangue. Finalmente.

Meu pai ergueu sua taça, um movimento lento e deliberado.

— O sangue sempre foi o que importa, Nicolo. No final, é a única moeda que tem valor real.

E então, num momento de rara distração dos outros convidados, quando a orquestra começou a tocar uma valsa e a atenção se voltou para a pista de dança, vi. Vi o olhar que os dois homens trocaram. Não foi um olhar de aliados, de amigos celebrando a união de seus filhos. Foi um olhar carregado de um segredo imenso, pesado e perigoso. Foi um olhar de cumplicidade forjada no fogo de um ódio tão profundo que só poderia ser contido por algo maior.

Meu pai inclinou a cabeça, quase imperceptivelmente, e Nicolo respondeu com um piscar de olhos lentos. Uma mensagem silenciosa passou entre eles, e o ar ao redor da mesa pareceu ficar mais frio.

O que era? O que havia por trás dessa união? Não era apenas sobre paz, ou poder, ou expansão de território. Havia algo mais. Algo sujo. Algo que os assustava tanto que os forçava a essa aliança abominável.

Mario, ao meu lado, parecia alheio à troca silenciosa. Ele observava a multidão com um sorriso satisfeito de proprietário.

— Lindo, não é? — sussurrou, seu hálito quente no meu ouvido. — Tudo isso, por nossa causa.

Eu não respondi. Meu coração batia acelerado contra o broche da minha mãe. Eu olhei para o meu pai, tentando decifrar o código em seus olhos. Olhei para Nicolo, cuja expressão expansiva havia dado lugar a uma frieza repentina. E então, olhei para Mario, o noivo arrogante e carismático que era tão peão nesse jogo quanto eu.

Ele percebeu meu olhar fixo.

— Está bem, amore mio? — perguntou, sua voz, um misto de preocupação performática e genuíno incômodo por eu estar estragando a fachada perfeita.

— O que está acontecendo, Mario? — perguntei, minha voz mais baixa que um sussurro. — O que há por trás disso tudo?

Seu sorriso congelou por uma fração de segundo. Seus olhos escanearam meus olhos e, pela primeira vez, vi algo além de arrogância, uma pontinha de surpresa, seguida por uma cautela profunda.

— O que há por trás é o futuro, Paula. O nosso futuro. — Ele pegou minha mão sob a mesa. — Não estrague esta noite com questões tolas. Sorria. Eles estão todos olhando.

Ele estava certo. Eles estavam mesmo olhando. Toda a sala, cheia de hienas vestidas de seda, observava a mesa principal, buscando sinais de fraqueza, de discórdia. Eu forcei um sorriso, um gesto vazio que doía nos meus músculos faciais.

Mas por dentro, eu estava em frangalhos. A resignação que eu havia abraçado no jardim rachou, substituída por um terror novo e mais profundo. Não era mais somente o medo de uma vida sem amor, de um casamento infeliz. Era o medo do desconhecido, do abismo que se abria sob os meus pés. Que segredo poderia ser tão grande, tão perigoso, a ponto de unir dois homens que se odiavam com uma ferocidade que era lendária em Nápoles?

O jantar continuou, a música tocou, as pessoas dançaram. Mas para mim, o mundo havia mudado. Eu não era mais apenas uma noiva triste. Era uma mulher prestes a se casar com um estranho, arrastada para o centro de uma tempestade que eu não entendia, por homens que jogavam um jogo cujas regras eu ignorava completamente.

Mario segurou minha mão com mais força, seu toque agora era uma algema de veludo. Olhei para o broche da minha mãe, a pérola manchada com uma gota do meu sangue. Ela também havia vivido entre segredos e perigos. Ela também havia sorrido quando queria gritar.

E, naquele momento, eu entendi a única verdade que importava, minha luta não era mais por liberdade. Era por sobrevivência. Esse casamento não era o fim. Era somente o começo do meu verdadeiro pesadelo.

E eu estava entrando nele de olhos vendados, guiada por duas famílias que preferiam morrer abraçadas no ódio do que admitir o medo que as unia.

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