Nicolo Moretti
Mas eu o conhecia. Conhecia cada ruga, cada mentira escondida naquelas feições de falcão. E nos seus olhos, por uma fração de segundo, eu não vi tristeza, mas… triunfo. Um brilho rápido, como se ele estivesse com uma carta ainda nas mangas.
Ele se aproximou caminhando rápido, como se estivesse desesperado para evitar alguma coisa. Ele parou há dois metros de mim e estendeu a mão livre, como se quisesse me consolar.
— Nicolo… acabei de ouvir a notícia. Uma tragédia. Uma tragédia horrível. — Sua voz era um fio de seda envenenada. — Juro por tudo que é sagrado, não fui eu. Não foi nenhum dos meus.
Eu queria cuspir na cara dele. Queria arrancar seus olhos mentirosos com os dedos.
Mas a mesma frieza que me permitira sobreviver a tantas décadas de guerra me dominou. A dor e a raiva foram comprimidas, compactadas num diamante negro de ódio puro no centro do meu peito.
Eu engoli o grito, engoli as lágrimas que queimavam atrás dos meus olhos. Eu era Don Nicolo Moretti. E um Don não chora em público. Um Don se vinga.
— Foi um acidente? — consegui articular, minha voz rouca e irreconhecível.
— Os meus homens estão investigando — ele disse, com seu olhar penetrante, testando minha reação. — Mas dado as circunstâncias… a desconfiança será inevitável. Nossas famílias estarão em guerra antes do pôr do sol e uma guerra que destruirá a ambos.
Eu sabia que ele estava certo. Sabia que meus próprios homens, ao saberem da notícia, já estariam com os dedos nos gatilhos, ansiosos por vingança. E eu os lideraria. Eu mergulharia Nápoles no fogo e no sangue para lavar a morte do meu filho.
Foi então que Caterino deu o seu xeque-mate. Seus olhos se fixaram nos meus, e ele baixou a voz para um sussurro que só eu pude ouvir, um sussurro que gelou o sangue nas minhas veias.
— A menos que demos a eles um show maior. Um sinal de unidade inquestionável. A paz deve ser selada, Nicolo. Mais do que nunca.
— O que você está sugerindo? — perguntei, embora, no fundo, eu já soubesse.
A peça se encaixava com uma clareza horrível, tanto que já podia ver o que aconteceria nas próximas meia hora.
— O casamento prossegue… — ele disse, sua voz plana, final. — Mas o noivo será você.
O ar saiu dos meus pulmões. Olhei para ele, incrédulo, tentando processar a audácia monstruosa daquela proposta.
Casar-se? Com a filha dele? A noiva do meu filho, que acabei de descobrir que está morto?
— Você está louco — cuspi.
— Estou salvando o que resta das nossas famílias — ele retrucou. — Você é viúvo. Paula é… uma jovem de valor inestimável. Um casamento entre um Don e a filha de outro Don é uma aliança ainda mais poderosa. Mostrará ao mundo que a morte de Mario, seja lá como foi, não quebrará nossa união. Pelo contrário, a fortalecerá. É a única maneira de evitar um banho de sangue.
Era um movimento de mestre.
Diabólico.
Ao me oferecer a filha, ele não estava somente evitando a guerra; estava me humilhando publicamente. Estava me forçando a aceitar as migalhas do seu reino, ao herdar a noiva do meu filho como se fosse um prêmio de consolação.
E pior: se eu recusasse, a guerra seria minha culpa. Eu seria o irracional, o emocional, o que colocou a vingança acima da sobrevivência do meu clã.
Minha mente começa a raciocinar. Imagens de Mario, criança, correndo pelos jardins. Meu filho, adolescente, atirando pela primeira vez. E agora visualizo meu filho Mario, morto, carbonizado. A dor era um animal selvagem querendo se soltar.
E então, outras imagens surgiram: imagens de vingança. Lentas e deliberadas. Se eu aceitasse… ela seria minha. Paula Caccini.
A filha amada de Caterino. A última herança dele. Ela estaria sob o meu teto. Sob o meu controle. Eu não poderia machucar Caterino diretamente, não ainda… mas eu poderia machucá-lo através dela. Eu poderia transformar a vida dela num inferno. Ela seria minha cativa, meu espólio de guerra, um lembrete constante para Caterino de que, no final, ele me deu a única coisa que talvez ainda tivesse valor para ele.
A raiva transformou-se em uma calma glacial e venenosa.
— Onde ela está? — perguntei, minha voz voltando a ser a de um Don, plana e perigosa.
Um sorriso quase imperceptível tocou os lábios de Caterino. Ele sabia que eu estava pensando em vingança. E ele não se importava. Para ele, ela era somente um peão que ele podia manipular em um jogo que o beneficiaria.
— Venha.
Ele me levou até uma sala lateral, anexa ao vestíbulo. Ao abrir a porta, eu a vi. Paula. De costas para nós, seu vestido de noiva, um clarão ofuscante na penumbra da sala. Ela estava tremendo. Ao seu lado, o irmão Vincenzo, segurava seu braço, seu rosto uma máscara de choque e revolta.
Ela se virou.
E o mundo parou novamente.
Eu a havia visto antes, é claro. Em fotos, à distância, e no jantar de noivado. Mas nada me preparou para vê-la assim.
O vestido era irrelevante. A maquiagem impecável e também irrelevante. Mas os seus olhos, eles me desmontaram completamente. Eles são enormes, da cor do âmbar, cheios de uma inteligência aguda e de um terror absoluto.
Ela não era uma menina ingênua. Ela entendia perfeitamente a armadilha em que estava. E naqueles olhos, eu não vi o seu pai. Vi a sua mãe. Isabella. A mulher que Caterino roubou de um músico muitos anos atrás e a trancou em uma gaiola dourada até a morte levá-la. Vi a mesma beleza trágica, a mesma força contida em um único olhar.
Por um instante breve e louco, a raiva diminuiu, substituída por uma pontada de… algo enquanto a olhava. Não sabia se era pelo reconhecimento de um pouco de Isabella em sua filha. Ou se era algum tipo de compreensão. Nesse pequeno encontro, nós dois éramos feras enjauladas pelo mesmo homem.
Então, a imagem do meu filho, queimado, invadiu minha mente. O sangue dele estava nas mãos do pai dela. E ela era uma Caccini. Ela carregava o mesmo sangue venenoso.
Caterino quebrou o silêncio.
— Paula. Nicolo veio te ver.
Ela não disse nada. Somente me encarou, sua respiração superficial, como a de um pássaro prestes a ser esmagado. Vincenzo deu um passo à frente, colocando-se levemente na frente da irmã, um gesto de desafio inútil, mas corajoso.
Eu a examinei, lentamente, da cabeça aos pés. Não como um homem examina uma mulher. Mas como um dono examina uma propriedade nova. Melhor, como um carcereiro, examina sua nova prisioneira. A beleza dela era inegável. E ela seria a arma da minha vingança.
Se Caterino queria me dar uma noiva. A farei dela a minha refém.
— Sim — eu disse, a palavra saindo como um suspiro mortal, meus olhos nunca deixando os dela. — O casamento prossegue.
A expressão dela se desfez por uma fração de segundo, o terror dando lugar a um desespero mudo antes de ser recomposta pela força do ferro. Ela entendia e sabia exatamente o que aquilo significava.
Eu me virei para Caterino.
— Vamos terminar com esta farsa.
E ao sair da sala, meus olhos encontraram os de Paula uma última vez. E sem dizer uma palavra, eu lhe transmiti a mensagem que seria assombrar cada um de seus dias a partir daquele momento.
Você agora é minha. E eu vou quebrá-la.