Início / Máfia / Destinos Trocados / 05 - A Geada da Fúria
05 - A Geada da Fúria

Nicolo Moretti

O eco dos sinos da basílica martelava meus ouvidos, cada badalada um lembrete fúnebre do espetáculo que estava prestes a encenar. O ar na igreja estava pesado, carregado com o perfume enjoativo de gardênias e o cheiro acre do suor disfarçado de centenas de pessoas que me odiavam, me temiam.

Eu, Don Nicolo Moretti, deveria estar radiante.

Hoje é o grande dia da união das famílias mais poderosas da região. O dia em que meu sangue se misturaria com o dos Caccini e enterraríamos finalmente o machado de guerra, pelo menos até eu ter a chance de cravá-lo nas costas de Caterino no momento certo.

Mas não havia aquele sentimento de felicidade em mim. Havia somente uma fria e familiar desconfiança, um nó de gelo no estômago que não se dissolvia há dias.

Eu sorria, cumprimentava os convidados com acenos de cabeça e apertos de mão firmes, mas por dentro, cada risada soava falsa, cada olhar era uma potencial facada. A máscara de Don tranquilo e satisfeito era pesada, uma armadura que eu usava há décadas, mas hoje ela estava me sufocando demais.

Mario. Meu único filho, que será o meu herdeiro. O menino que ensinei a atirar, a negociar, a comandar o respeito pelo medo. Ele tinha a fúria necessária, mas não a paciência.

A sua ambição, mas não era com frieza. E na noite passada, ele havia cometido o erro supremo, desobedecer-me. Saiu para uma despedida de solteiro imbecil, num bordel do território Caccini, depois de eu tê-lo expressamente proibido.

A união estava selada, sim, mas e a confiança?

A confiança era um artigo raro e frágil, que não se comprava com acordos de paz. Caterino era uma raposa velha. Eu o conhecia muito bem e talvez até mesmo melhor que o seu conselho mais antigo. E um homem não abandona cinquenta anos de ódio numa noite.

— Don Nicolo, tudo pronto? — Meu consigliere, Bruno, sussurrou ao meu ouvido, seu rosto sério como sempre.

— Onde está Mario? — minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia.

— Ainda não chegou. Disseram que saiu tarde do… — ele hesitou e olhei para ele desconfiado. — Estabelecimento. Deve estar a caminho.

— Disseram? — virei-me completamente para ele, baixando a voz para um rosnado. — Eu não pago você para me trazer um disseram. Eu pago para saber. Encontre-o. Agora.

Bruno assentiu, afastando-se rapidamente. A ansiedade no meu peito transformou-se em uma brasa de raiva.

O idiota, o pequeno idiota impulsivo. Depois de tudo que lutei para construir, após engolir meu orgulho e me sentar à mesa com o homem que matou meu irmão mais novo vinte anos atrás, ele arriscava tudo por uma última noite de libertinagem.

Era por ela. Tinha que ser por causa daquela ragazza, que ele resolver fazer rebeldia a essa hora, faltando alguns minutos para esse teatro de casamento. Mário estava pensando com o pau ao se envolver com aquela cantora de ópera barata com quem se envolveu e obriguei a sumir de Nápoles. Seu que ele estava tentando apagá-la da sua cabeça e talvez até do seu coração, esquecê-la na cama de outras putas e no álcool. O problema é que, no processo, ele estava prestes a incendiar tudo o que construímos.

Os minutos se arrastaram. A igreja estava cheia e o murmúrio dos convidados começou a ganhar um tom diferente, de curiosidade mórbida.

“Onde estava o noivo?”

Olhei para o altar vazio. Aquele espaço vazio era uma afronta, um buraco negro sugando toda a fachada de normalidade que eu tanto trabalhara para erguer.

Foi quando o burburinho começou. Não vindo dos convidados comuns, mas dos meus homens. Eles se agruparam perto da entrada, vozes baixas e urgentes. Vi Bruno se aproximando deles, seu rosto pálido sob a luz dos vitrais.

Algo estava errado. Muito errado.

Meu coração, um velho órgão endurecido por décadas de violência e traições, começou a bater com uma força que me surpreendeu. Avancei em direção ao grupo, ignorando os olhares curiosos. Os homens se afastaram, seus rostos um misto de horror e hesitação.

— Bruno — gritei, minha voz ecoando na nave silenciosa, fazendo todos se virarem. — O que foi?

Ele se aproximou, seus passos pesados. Seus olhos não encontravam os meus.

— Don Nicolo… temos notícias de Mário.

— Fale, caralho! — gritei, perdendo o resto da compostura.

O nó de gelo no meu estômago explodiu em uma geada que se espalhou por todo o meu corpo.

— Eles encontraram um veículo… o carro de Mario — sua voz falhou. — Na estrada costeira, perto do farol. Ele estava… estava em chamas e, pelo cenário que nossos homens relataram, ele devia estar queimando há muitas horas.

O mundo desfocou naquele momento, senti o meu peito apertar e a minha cabeça comprimir.

O som na igreja sumiu, substituído por um zumbido agudo que elevou ainda mais a fúria que estava sentindo. Olhei para o Bruno e o agarrei pela lapela do terno, meu punho tremendo de uma fúria cega.

— E ele? Onde está Mario? — Me recuso a acreditar que o meu único filho tenha se machucado.

Bruno engoliu em seco, seus olhos finalmente se encontrando com os meus, e neles eu vi a verdade antes mesmo que ele a pronunciasse. Vi o fim de toda a minha linhagem, vi a morte usando a sua túnica negra com a maldita foice, olhando diretamente para mim com um sorriso encoberto pela porra do tecido que a escondia.

— O corpo… Don Nicolo, pelo amor de Deus… o corpo estava dentro. Carbonizado. Impossível de identificar, mas… era o veículo dele. As placas…

Não ouvi o resto. A palavra “carbonizado” ecoou na minha mente, queimando tudo em meu peito. Meu filho. Meu único filho. Minha carne, meu sangue, reduzido a cinzas num carro incendiado num desvio de estrada. A dor foi tão física que me curvei, sentindo uma pontada aguda no peito como se uma faca a tivesse perfurado.

A raiva que se seguiu foi tão absoluta, tão negra, que eu quase perdi o controle ali mesmo. Sentia o peso das minhas pistolas nas costas e o desejo de matar cada maldito que estava naquela igreja, estava me deixando enlouquecido.

Quase gritei, quase ordenei que todos os meus homens sacassem suas armas e transformassem aquela igreja maldita num banho de sangue.

Caterino. Só podia ter sido Caterino.

Uma emboscada, fomos feitos de idiotas enquanto ele nos servia aquele jantar na noite de ontem. Talvez ele tenha dado algum aviso naquelas trocas de olhares que trocamos. Mas jamais esperei que ele fosse fazer uma traição tão vil e tão completa, que beirava o genial em sua maldade. Ele sabia que Mario sairia.

Mas quem passou a informação de que meu filho sairia do hotel para ele poder armar a emboscada no lugar certo? Em um lugar onde demoraríamos horas para encontrá-lo.

Foi então que eu o vi. Ele saiu do carro e começou a caminhar em direção à nave central, com a filha pelo braço, vestida de branco, um fantasma de noiva para um noivo morto.

Don Caterino maldito, seu rosto estava sério, solene, a máscara perfeita de um homem que estava feliz por estar casando a sua única filha enquanto o seu filho estava no púlpito e conversava com alguém.

Os vi entrar na sala antes da entrada da igreja e Vincenzo passou quase que correndo em direção ao pai. Sabia que agora é um momento de preocupação. Palavras erradas podem ser o estopim de uma guerra onde todos podemos sair dessa igreja mortos. Não demorou muito para que ele saísse daquela sala e viesse em minha direção, sem os filhos.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App