Ela salvava vidas. Ele tirava. Mariana nunca imaginou que costurar o abdômen de um dos criminosos mais temidos da Rocinha a colocaria no centro de uma guerra. Caio, conhecido como o Rei, comanda seu império com mãos de ferro e olhar implacável, mas basta um toque da médica de língua afiada para que o controle comece a ruir. Entre ameaças, promessas sussurradas no escuro e beijos que queimam mais do que pólvora, Mariana vai descobrir que não existe neutralidade quando se é desejada por um homem como ele — e que, no jogo entre a ética e o coração, nem sempre salvar é a única escolha. Enquanto isso, do outro lado desse mundo de sangue e silêncio, Melissa tenta escapar dos próprios fantasmas. Recém-chegada ao hospital da Rocinha, ela carrega segredos que sangram mais do que os cortes dos seus pacientes. É ali que ela cruza o caminho de Bruno, o braço direito do Rei — um homem treinado para matar, mas que nunca aprendeu a amar. Unidos por cicatrizes que o tempo não apagou, os dois vão descobrir que às vezes é preciso enfrentar o passado de frente... mesmo que isso signifique se afundar ainda mais no perigo. Dois casais. Dois amores improváveis. Um mundo onde cura e destruição caminham lado a lado. E ninguém sai ileso.
Leer másNarrado por Mariana
Eu já devia ter aprendido que paz demais era sinal de que alguma merda estava prestes a acontecer. A noite estava abafada, o plantão corria num ritmo quase entediante no Hospital Geral do Norte, e o café da máquina tinha gosto de arrependimento. Eu me recostava na parede do corredor, revisando prontuários, tentando manter a mente ocupada com algo que não me lembrasse o porquê de eu estar ali — ou melhor, o que eu estava tentando esquecer. Foi quando o rádio interno chiou, seguido por passos apressados e olhares trocados entre os plantonistas. Antes que eu pudesse entender, um dos seguranças do hospital apareceu com olhos arregalados, suando frio. — Dra. Mariana... é melhor a senhora vir comigo. — Aconteceu alguma coisa? — perguntei, já me colocando de pé, instintivamente ajustando o jaleco. Ele hesitou. — Não é... comum. Mas... ele tá pedindo pela senhora. — Ele quem? O segurança engoliu em seco. — O Rei. Eu congelei. O nome soou como um trovão. Eu já tinha ouvido histórias, todos tinham. O homem que comandava o tráfico na zona norte da cidade como se fosse um império. Ninguém ousava contrariá-lo. E agora, supostamente, ele estava pedindo por mim? Fui levada até a saída dos fundos do hospital, onde uma SUV preta, com vidros escurecidos, me esperava com o motor ligado. Dois homens armados abriram a porta traseira. — Entra. Agora. — Isso é sequestro? — Isso é um favor que você vai nos fazer, doutora. E vai ser melhor pra todo mundo se você colaborar. Minha consciência gritava para correr, mas o instinto de sobrevivência falou mais alto. Entrei. O carro arrancou em disparada. [...] O barraco onde me levaram era discreto, enfiado em algum beco da favela onde nem a polícia ousava entrar. O cheiro de sangue e pólvora dominava o ambiente. E ali, deitado sobre um colchão manchado, estava ele. O Rei. Tinha um ferimento feio na lateral do abdômen, e sangue escorrendo sem trégua. Mas mesmo assim, seus olhos estavam afiados, cravados em mim, como se me analisasse peça por peça. — Até que enfim — ele resmungou. — Pensei que médicos eram mais rápidos. — Pensei que traficantes sabiam desviar de balas — rebati, ajoelhando ao lado dele com a maleta de emergência que me enfiaram às pressas nas mãos. Houve um murmúrio entre os capangas. Ele sorriu de canto, cínico. — Tem língua afiada, doutora. Isso vai te trazer problemas. — E você tá sangrando, então acho que seus problemas são maiores que os meus. Ele não respondeu de imediato. Me observou enquanto eu cortava a camisa ensanguentada dele, analisava o ferimento, limpava o excesso de sangue e verificava se o projétil ainda estava alojado. Estava. — Vai conseguir tirar? — perguntou, como quem desafia. — Vou tentar. A menos que prefira morrer devagar. — Você é sempre assim? Irritante e convencida? — Só quando sou arrancada do hospital no meio da noite pra atender um criminoso. O silêncio se instalou por alguns segundos. Senti o olhar dele cravado em mim enquanto eu enfiava a pinça no ferimento com a precisão de quem já fez isso dezenas de vezes — mas nunca nessas condições. Ele não gritou. Nem gemeu. Só contraiu o maxilar. — Dói, né? — murmurei, sem olhar pra ele. — Pena que não trouxe anestesia. — Eu gosto da dor. Arrogante. Frio. E perigoso. Era assim que ele era descrito, e nada na sua expressão contrariava isso. Mas havia algo ali, um brilho nos olhos, um mínimo de curiosidade... como se ele tentasse entender por que eu não tremia diante dele. Talvez porque eu já estivesse quebrada demais por dentro pra ter medo de mais alguma coisa. [...] Depois de remover a bala, estancar o sangramento e fazer um curativo improvisado, me levantei. Minhas luvas estavam sujas de sangue, o jaleco manchado, a alma cansada. — Já terminou? — ele perguntou, ainda deitado. — Já. Vai viver. Pra continuar fazendo as merdas que faz, imagino. — Você fala como se soubesse da minha vida. — Eu sei o suficiente pra querer distância. Ele soltou um riso baixo. — É... talvez você seja interessante, doutora. Dei meia-volta. Não queria ouvir mais nada. — Alguém me leva de volta — falei, sem olhar pra trás. Um dos homens assentiu. Mas antes de sair, ouvi a voz do Rei novamente, baixa, rouca: — Mariana, né? Parei por um segundo, surpresa por ele lembrar meu nome. — Espero não precisar de você de novo. Mas se precisar... eu vou chamar. Virei o rosto só o suficiente pra encará-lo. — E eu espero que da próxima vez, a bala seja na cabeça. Ele sorriu. Um sorriso perigoso. Quase divertido. — Gosto de você. [...] Naquela noite, de volta ao hospital, lavei as mãos mais vezes do que o necessário. Mas o sangue dele ainda parecia estar ali. Nas minhas mãos. Na minha memória. No meu corpo inteiro. E eu sabia. Aquilo não era o fim. Era o começo.Narrado por Enzo A notícia chegou como um tiro mudo: sem som, mas rasgando tudo por dentro. Estávamos no hospital, Maya com a mão apertando a minha, os olhos dela varrendo o corredor vazio. Do outro lado da porta, médicos corriam, enfermeiras cochichavam. O sangue de Bruno ainda quente. A bala mal tinha esfriado. Ele havia tido uma complicação após uma cirurgia. Então a porta abriu. A médica estava pálida, os olhos fundos de quem já perdeu batalhas demais. — Perdemos ele. O chão fugiu debaixo dos nossos pés. Maya não gritou — o grito dela ficou preso, desabando só nos olhos. Ela deslizou pelo azulejo como uma boneca partida. Eu a segurei, a abracei, mas era como tentar segurar água: escorria dor demais. Melissa chegou segundos depois. A mulher que sempre foi uma muralha, caiu como uma folha. Foi ela quem gritou. Um grito que encheu o hospital, fez enfermeira chorar, fez gente rezar. E eu... eu não podia chorar. Não naquele momento. Porque todos olhavam pra mim. O velório foi no
Narrado por Enzo Voltar para Porto de Galinhas foi estranho. Era como ver um filme em câmera lenta passando diante dos olhos. As mesmas ruas de paralelepípedo, o cheiro do mar logo cedo, os coqueiros balançando como se me saudassem silenciosamente. Mas eu não pertencia mais àquele lugar.Passei poucas horas lá. Tempo suficiente pra assinar os papéis da transferência da faculdade de Medicina. O coordenador me olhou como quem se despede de um filho que cresceu rápido demais.— Vai fazer falta por aqui, Enzo.Sorri com educação, mas sem muita emoção. Eu só conseguia pensar nela. Maya. E no filho que a gente esperava.Peguei o voo de volta no mesmo dia. Na janela do avião, vi o céu misturado com minhas lembranças. Ali eu deixava parte do que eu fui. No Rio, começaria a descobrir o que eu ainda podia ser.[...]Primeiro dia na faculdade nova. Campus enorme, tudo acelerado. Gente que nunca vi, rostos que não sabiam quem eu era nem o que eu já tinha vivido. Parecia que todo mundo estava num
Narrado por EnzoA Rocinha nunca dormia completamente. Às vezes, era só um sussurro de vozes entre vielas, um rádio distante tocando um samba abafado, ou o som vapores nas bocas lá no fundo, lá onde os olhos não alcançavam. Mas naquela noite em que tudo parecia repousar, eu não conseguia. Porque o mundo tinha mudado. Eu tinha mudado.Maya dormia de lado, os cabelos soltos no travesseiro, a respiração calma e constante. A barriga ainda era discreta, mas ali dentro já batia um coração — o coração do nosso bebê.Me aproximei devagar, sentindo o cheiro doce do cabelo dela, e passei os dedos levemente por sua cintura até pousar a mão ali, sobre aquela curva suave que escondia o início da vida que criamos. Eu nunca pensei que fosse sentir isso tão cedo. Nunca pensei que amaria tanto. Mas ali, naquele toque silencioso, o mundo parava.— Eu vou cuidar de vocês — sussurrei, baixinho, como se o bebê pudesse me ouvir. — Mesmo que eu tenha que largar tudo. Faculdade, sonhos... tudo. Agora vocês
Narrado por MayaO tempo tem um jeito estranho de passar quando tudo muda de uma vez. Às vezes, ele parece correr, como se quisesse fugir das nossas emoções. Outras, ele simplesmente congela, como se nos obrigasse a olhar pra dentro e enfrentar o que estamos sentindo. Desde que descobri a gravidez, tenho vivido entre esses dois extremos.Os dias seguintes foram uma mistura de silêncio e caos interno. Minha mente não parava. Acordava com a sensação de que tudo era um sonho estranho, e à noite, chorava em silêncio por não saber o que fazer. O enjoo matinal me lembrava o tempo inteiro de que era real. Havia uma vida crescendo dentro de mim. Uma vida feita de mim... e do Enzo.Hoje foi o dia do meu primeiro pré-natal. Minha mãe foi comigo. Minha mãe me olhava com um cuidado diferente, como se, de repente, tivesse voltado a me ver como uma criança. Eu tentava sorrir, tentava fingir força, mas por dentro ainda estava tentando entender como minha vida tinha virado do avesso.O consultório er
CAPÍTULO 47Eu não conseguia parar de andar de um lado para o outro no quarto. O lençol amassado ainda guardava vestígios da noite anterior, e meu corpo, embora já vestido, ainda tremia com as lembranças. Enzo. O filho dos meus padrinhos, meu proibido, meu... tudo. Meus dedos tremiam enquanto tocavam a cortina da janela entreaberta, tentando buscar alguma paz no horizonte de Porto de Galinhas. Mas não havia paz. Só o caos pulsando dentro de mim.Clarisse estava sentada na cama, me observando como quem assiste a uma tragédia em câmera lenta. Ela não dizia nada, o que me deixava ainda mais nervosa.— Clarisse... — comecei, hesitante. — Eu preciso te contar uma coisa.Ela ergueu as sobrancelhas, como se dissesse "finalmente".— Eu já sei, Maya.Meus olhos se arregalaram.— Como assim?Ela sorriu de canto, e se levantou devagar, caminhando até mim.— Você acha mesmo que eu não percebi? Desde o momento em que vocês dois começaram a se olhar como se fossem as únicas pessoas no mundo... eu s
Narrado por Maya Eu estava sentada no tapete fofo do quarto de Clarisse, encostada na beirada da cama, com as pernas cruzadas e um pacote de batata chips ao meu lado. Clarisse estava deitada de barriga pra baixo no colchão, com o queixo apoiado nas mãos, os olhos grudados em mim com aquele sorrisinho maroto que sempre me dava arrepios. Ela era uma figura.— Você precisa sair dessa vibe. — Ela mordeu o canto do lábio, divertida. — Vai acabar criando raízes aqui dentro.Revirei os olhos, mas não consegui conter o sorriso. A Clarisse sempre sabia como me provocar.— E ir pra onde? — perguntei, me esticando para alcançar uma latinha de refrigerante. — Tá tudo um caos lá fora. Enzo surtaria só de saber que nós pisamos na calçada, você sabe como o seu irmão é. — Aí que tá. — Ela se ajeitou, apoiando o cotovelo no colchão e o rosto na palma da mão. — A gente não precisa contar pra ele. Vamos sair só um pouquinho. Boate nova, ambiente fechado, música alta, gente bonita... Prometo que te dev
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