Narrado por Mariana
O hospital estava mais silencioso do que o normal naquela manhã.
O tipo de silêncio que antecede alguma tempestade. Aquele que faz a gente olhar por cima do ombro, mesmo sabendo que não tem ninguém atrás. Que faz o coração apertar sem explicação. Eu já tinha aprendido a não ignorar esses sinais.
Entrei na ala ortopédica com os olhos fixos na prancheta. João já tinha me avisado no começo do plantão que o paciente da fratura — aquele mesmo — ainda estava internado. "Alemão", ele disse, como quem cuspia o nome. "Tá lá ainda, cheio de sorrisinho."
— Vai lá ver como ele tá? — João perguntou, com aquele ar maroto de sempre. — Ou vai evitar ele também?
— Vou fazer o meu trabalho. É diferente.
— Claro, doutora. Só cuidado, dizem que esse cara é mais perigoso do que parece.
Respirei fundo.
Não era novidade. Desde a primeira vez em que tratei daquela fratura no braço esquerdo — dias atrás —, eu já sentia o incômodo. Era mais do que o típico desconforto por tratar alguém envolvido até os ossos com o crime. Era o modo como ele me olhava. Como se tivesse o direito.
Empurrei a porta do quarto com um leve estalo. Ele estava sentado na cama, camiseta branca folgada, o braço ainda enfaixado, mas os olhos atentos como de sempre — claros, frios e… fixos em mim assim que entrei.
— Mariana. — O nome saiu dos lábios dele como se tivesse gosto. — Pensei que tivesse me abandonado.
— Vim saber se está com alguma dor, ou se sentindo algum incômodo. Nada além disso.
— Estou sentindo falta de você. Isso conta?
Revirei os olhos e me aproximei, sem responder. Conferi a tala no braço, a rigidez do osso sob o enfaixado, os batimentos — estáveis. Ele cheirava a sabonete novo e perfume forte. Como se quisesse estar preparado pra me receber. Como se soubesse que eu viria.
— Evolução boa — murmurei, anotando na ficha. — Vai sair daqui em breve, se não causar problema.
— Depende. Se você estiver do lado de fora, talvez eu prefira continuar internado.
— Isso aqui é um hospital, não seu esconderijo.
— Mas você está aqui. E onde você estiver, eu posso querer estar também.
Levantei os olhos e o encarei com firmeza.
— Você tá acostumado a mulheres abaixando a cabeça pra você, né?
— Não todas. As que mais me atraem são as que olham assim… com ódio.
— Então se apaixone à vontade.
Ele riu, mas não desviou o olhar.
— Você tem esse ar de quem despreza tudo que eu sou. Mas ainda assim, veio aqui duas vezes cuidar de mim. Estranho, né?
— É o meu trabalho. Eu cuido de gente ferida. Mesmo os que merecem.
— E você acha que eu mereci?
— Acho que ninguém entra pro tráfico por engano. E que você, como muitos outros, só colhe o que planta.
A resposta fez ele sorrir de lado, como quem gosta de apanhar na conversa. Mas havia um brilho nos olhos dele — algo doentio. Uma fixação silenciosa. Era diferente do Rei. O Rei me olhava com posse, com cálculo. O Alemão me olhava como se quisesse descobrir meus pontos fracos um por um, e arrancar as camadas até chegar na parte em que eu cederia.
Só que eu não ia ceder.
[...]
Voltei pra sala dos médicos me sentindo suja. Camila me notou logo.
— E aí? Sobreviveu ao loiro?
— Ele tá criando uma novela dentro da cabeça.
—Quer dizer que tá interessado?
— Interessado, obcecado, sei lá. Ele tem aquele olhar…
— Igual ao do outro?
Levantei a cabeça rápido.
— Não fala isso.
— Eu tô falando sério, Mari. Desde que você atendeu o Rei, tá andando com essa sombra em volta. Agora tem dois querendo te marcar.
— Eu não sou território.
— Mas eles te veem assim.
E era isso que me apavorava. Não era só sobre homens perigosos com armas e poder. Era sobre o que eles enxergavam em mim: uma chance de controle, um símbolo, talvez um prêmio.
[...]
Terminei o turno exausta. Fui pro vestiário com a cabeça latejando. Tinha mensagens da minha mãe no celular, uma cobrança do aluguel, e uma notificação no I*******m: uma conta nova me seguindo. Foto de perfil preta. Sem seguidores. Zero publicações.
Mas o nome era sugestivo demais: Reiknows.
Engoli seco.
[...]
À noite, em casa, coloquei duas cadeiras encostadas contra a porta. Um ritual inútil, talvez, mas que me fazia sentir no controle.
Deitei, mas o sono não veio. As palavras de Alemão ecoavam. O jeito como ele me olhava. O modo como o Rei apareceu dias atrás, calado, imponente, só pra dizer: "Ele tá aqui, né?"
Sim, estava. E agora me queria também.
A briga entre eles não era só por território. Começava a virar pessoal. Começava a me envolver. E o pior… eu era só médica. Só alguém que tentava viver longe desse inferno. Mas o inferno tinha batido na minha porta. E agora queria entrar.
[...]
No dia seguinte, encontrei João fumando no estacionamento.
— O loiro vai ter alta amanhã. Quer apostar que ele vai arrumar um jeito de voltar?
— Não quero apostar nada.
— Tá com medo?
— Tô cansada. De ser observada, de andar na rua como se alguém estivesse me seguindo.
— Mari… você sabe que o Rei apareceu aqui ontem, né?
— Eu sei.
— Ele ficou horas lá fora. Sem falar com ninguém. Só olhando.
Olhar. Sempre o olhar. O do Rei, gelado e controlador. O do Alemão, quente e obsessivo. Um querendo me dominar. O outro querendo me possuir.
E eu? Eu só queria paz.
Mas a Rocinha era guerra.
E dessa vez… eu era o campo de batalha.