Narrado por Rei
O rádio chiava no canto da sala enquanto eu terminava de enrolar mais um baseado. O vento da manhã ainda tava úmido, carregando aquela fumaça suja que sobe do asfalto molhado lá de baixo. A Rocinha respirava em silêncio, mas o que vinha dentro de mim era puro trovão. Desde a última noite eu não dormia direito. Aquela cena da Mariana mexendo nos curativos, os olhos dela cravados nos meus, ainda dançava na minha mente. Só que hoje... hoje o bagulho mudou de figura. — Chefe — Cebola entrou devagar, sem levantar a voz — a informação chegou. Levantei o olhar. — Fala logo. — A médica cuidou do Alemão. Ele deu entrada no Hospital da Rocinha, ficou sob os cuidados dela. E... teve caô. Fechei a mão devagar, o sangue fervendo até a ponta dos dedos. — Que tipo de caô? — Dizem que ele deu em cima dela. Pegou no braço dela, chamou de bonita. Uma enfermeira contou que ele tentou segurar a mão dela depois do curativo. Mariana deu uma cortada, saiu da sala, mas ele ficou falando merda. Disse que se ela quisesse, ela podia largar esse morro de bosta e ir pra um lugar melhor com ele. Levantei num pulo. A cadeira caiu pra trás, fazendo barulho seco no chão. — Esse filho da puta... Alemão e eu já tínhamos contas antigas, fora os últimos acontecimentos. Anos atrás ele tentou invadir meu território pela parte de cima do Beco do Rato. A gente fechou ele no cerco, tomou os fuzis dele, queimou tudo que tinha. Ele só sobreviveu porque jogou o corpo pra trás de uma van. Eu mesmo disparei contra ele naquela noite. O foda é que eu mesmo o coloquei naquele hospital, se a Mariana está na reta dele. Com certeza é por minha culpa! Mas o que ele não sabia — e o que eu não sabia até agora — era que ele tinha ido parar no meu hospital. No meu território. E ainda teve a ousadia de tocar na minha mulher. Peguei a Glock da gaveta e enfiei na cintura. Cebola ficou me encarando. — Vai descer lá, chefe? — Vou fazer mais que descer. Vou cravar no peito dele que a próxima vez que ele ousar pensar nela, vai ser a última coisa que ele pensa. — Quer que reúna os homens? — Não. Isso é pessoal. Desci pelas vielas já conhecidas. Os meninos me olhavam passar, sabiam que meu humor não era coisa pra brincadeira. Passei direto pela boca do Pátio Azul, atravessei o beco do Barroso até chegar na outra entrada da favela onde os inimigos costumavam fazer ponto. A boca onde o Alemão tava escondido não era longe. Eu sabia onde procurar. Cheguei em silêncio. A porta da casa tava entreaberta. Bati com o pé, firme. Quando ele apareceu na porta, com um curativo no ombro e o peito coberto de marcas, eu vi nos olhos dele a surpresa. Mas também vi desafio. — Tu veio terminar o serviço, Rei? — ele debochou. — Vim te dar uma chance de não morrer agora, Alemão. Ele riu de lado. — Vai me ameaçar por causa de mulher? Logo você, que sempre disse que mulher não se mistura no corre? — Mariana não é qualquer mulher. Ela é minha. E se tu ousar tocar nela de novo, ou sequer sonhar com ela, eu arranco tua língua fora e enfio pela tua garganta. — Ela não é tua, porra. Cês tão ficando doente. Mulher não é propriedade. Nesse momento, uma voz atrás de mim me congelou. — E finalmente alguém disse o óbvio. Me virei. Mariana tava parada no corredor, jaleco aberto, olhos queimando de raiva. — Que porra vocês acham que tão fazendo? Medindo ego em cima de mim? Eu sou o quê pra vocês, um troféu? Uma bandeira num território? — ela cuspiu as palavras, sem medo. — Mariana — comecei a falar, mas ela levantou a mão. — Cala a boca, Rei. Tu cala a boca agora. E tu também, Alemão. Eu não sou mulher de bandido. Eu sou médica. E vocês dois... vocês são exatamente o tipo de homem que eu mais odeio nesse mundo. Acham que podem mandar na vida dos outros com base em quem carrega mais fuzil? Em quem berra mais alto? O Alemão tentou se justificar. — Eu só tava falando com ela. Eu não fiz nada... — Não interessa — ela cortou. — Se quiserem se matar, se matem. Mas longe de mim. Porque se algum de vocês ousar encostar um dedo em mim ou aparecer no hospital de novo, eu juro... juro que meto um processo, denuncio vocês, chamo até a porra do exército. Tô cansada dessa merda. O silêncio ficou pesado. Eu nunca tinha visto ela daquele jeito. E porra... era linda. Até furiosa. Ela se virou pra mim, por fim. — E você, Rei. Da próxima vez que vier aqui resolver briga de macho, lembra que eu não sou tua. Nunca fui. Nunca serei. E se quiser me proteger, comece parando de me usar como desculpa pra mostrar poder. Virou as costas, entrou pela enfermaria e bateu a porta. Fiquei parado, a Glock ainda no coldre. O Alemão me olhava com aquele sorriso torto de escárnio. — Bonita ela, né? Dei um passo pra frente e enfiei um soco no meio do peito dele, só pra ouvir o ar sumir dos pulmões. — É, mas você não pode sequer olhar. — falei baixo. — Vê se lembra do que eu disse. Pensa nela de novo... e tu vira estatística. Saí dali sem olhar pra trás. O sangue ainda fervia, mas agora tinha outra coisa borbulhando dentro de mim. Não era só raiva. Era orgulho ferido. Era desejo. E era aquela maldita mulher, que com um olhar, desmontava tudo em mim. Mariana. Eu ainda vou fazer você querer ser minha por vontade. Nem que isso me custe tudo que eu construí.