Eduardo, consumido pela culpa pela morte da esposa, ergueu muros ao redor de si e de seus sentimentos. Mas a presença doce e determinada de Sofia, que conquista não apenas as crianças, mas também os cantos mais sombrios de sua alma, começa a abalar suas defesas. Entre as diferenças sociais, a grande diferença de idade e os julgamentos alheios, Sofia e Eduardo terão que enfrentar muito mais do que seus próprios medos para viver um amor que ninguém acreditava possível.
Ler maisO som de copos quebrando ecoou como um estrondo. O barulho de vidros se espatifando ressou no exato momento em que eu deixava a bandeja com a louça suja na pia, no susto senti o coração disparar. Saí correndo da cozinha para ver o que tinha acontecido.
— Ei, não precisa gritar assim, foi um acidente — intervi, me colocando no meio. A menina era mais nova que eu e tinha começado há apenas uma semana.
— Essa infeliz não olha por onde anda! — ele falou, quase rosnando. Minha chefe saiu correndo de trás do balcão.
— Luana, vai lá dentro e pega a pá e o rodo — falei para ela, que tremia. A ideia era tirá-la dali. Acidentes aconteciam. Eu mesma já tinha derrubado algumas bandejas quando comecei a trabalhar. Até entendia a raiva de ter café derramado na roupa, mas também não precisava exagerar.
— Me desculpe, senhor. É que a menina é nova, e sabe como são esses jovens hoje em dia, tudo desastrado — disse minha chefe.
Neide queria amenizar a situação só porque o cara parecia ter dinheiro. Caso contrário, ela nem sairia de trás do balcão.
— Isso não é desculpa para contratar gente incompetente — ele respondeu com rispidez.
Comecei a ficar com raiva do cara, mesmo ele tendo sido a vítima nesse caso. Mas eu estava com fome, já passava das duas da tarde. Eu tinha entrado às seis, e minha chefe só me deixava tirar a pausa do almoço depois desse horário, quando o movimento diminuía. Tudo porque ela não gostava de atender os clientes. Queria ficar apenas no caixa, recebendo o dinheiro e já tinha uma pessoa que ficava lá, então ela não fazia nada. Mas, para se desculpar com esse cara, saiu de trás do balcão rapidinho.
— Mil desculpas, senhor — ela repetiu, intimidada pela presença dele.
— Desculpas? Acha que suas desculpas servem pra quê? Essa incompetente arruinou um terno que custa mais do que o salário miserável que vocês devem ganhar aqui.
— Olha aqui — sim, eu estava apontando o dedo para ele. Eu não sabia quem era o homem, mas não podia admitir que falasse assim com as pessoas. Nesses momentos, eu esquecia que devia ficar de boca fechada. — Foi um acidente, acontece. Já pedimos desculpas, mas o senhor não aceita e ainda vem aqui gritar, ser arrogante, agir como um louco...
— Quem você pensa que é para falar assim comigo?! — ele disse, ainda mais irritado. Eu podia ver uma veia pulsando em sua testa.
— Alguém que não vai abaixar a cabeça só porque recebe menos do que esse terno ridículo que o senhor está usando — falei sem elevar o tom de voz, porque não queria me rebaixar ao mesmo descontrole que ele.
Ele era uns bons quinze centímetros mais alto, cabelos um pouco longos, barba cheia e meio desleixada. Se apoiava numa bengala. Os olhos, que naquele momento transbordavam ódio, eram castanhos claros, quase verdes. Seria um homem bonito, se não tivesse aquela carranca no rosto.
— Quer saber? Isso aqui não vale a pena. Dá pra ver, pelo tipo de gente que trabalha aqui, que esse lugar devia fechar as portas — disse ele, virando de costas e saindo da lanchonete em direção a um carro grande, estacionado do outro lado da rua.
Luana voltou com o rodo e a pá, começando a limpar o chão, enquanto as pessoas murmuravam sobre o que tinha acontecido.
— Você ficou louca, menina? De destratar um cliente como ele? Tem noção do que fez? Alguém como ele pode acabar com esse lugar em cinco minutos. Você está demitida!
Neide tinha me puxado pelo braço para um canto mais afastado para os clientes não ouvirem.
— Demitida? Mas eu não fiz nada! Só não ia deixar aquele cara falar daquele jeito. — Tentei me defender.
— Você não entende nada mesmo, né? Some daqui e não precisa voltar.
Era muita injustiça. Mas eu conhecia a mulher e sabia que ela era irredutível. Então tirei o avental, peguei minhas coisas e saí.
Antes da confusão, eu tinha visto Aninha do outro lado da rua, acenando animada. Parecia muito feliz, e eu imaginava que tivesse uma boa notícia — e eu estava precisando de algo bom.
Quando saí, Aninha estava na porta. Com certeza tinha visto tudo e se aproximou para entender o que tinha acontecido.
— Vamos — falei, puxando-a pelo braço para longe da lanchonete.
— Meu Deus, o que aconteceu ali? Que cara grosso! Tá bom que eu ia ficar puta se derramassem café em mim, mas falar daquele jeito?
— A Neide me demitiu.
— O quê? Aquela vaca fez o quê?
— Pois é. Disse que eu não devia ter falado daquele jeito com um "cliente importante".
— Cliente importante? Nunca vi aquele cara por aqui! Como ela sabe que ele é importante? Pode ser só um idiota metido a besta.
— Dinheiro. O cara cheirava a dinheiro. E isso, pra ela, já é o suficiente.
— Não fica assim. Tenho uma notícia que vai te animar! A Tia Cleide me ligou para avisar que te indicou para uma vaga de babá. E adivinha onde? No condomínio Rio das Flores!
— Sério?
— Seríssimo! Você vai precisar dormir na casa, mas não é exploração. Tem registro e tudo. O salário é mais de dez mil. Você não vai pagar aluguel e ainda vai conseguir juntar dinheiro. Dá até pra contratar um detetive — Aninha falava empolgada, como se eu já tivesse conseguido o emprego. Mas eu estava desconfiada. O salário era bom demais para ser verdade. Tinha alguma coisa errada.
— Tudo isso pra um emprego de babá?
— São três crianças. Parece que eles tiveram problemas com as outras babás. É pra um cara ricaço, tipo muito rico, dono de uma mega fazenda de produção de leite. Ele é viúvo, vive viajando a trabalho. Os três filhos ficam em casa e precisam de uma babá. A tia disse que a mais velha tem uns nove anos e é um menino bem difícil. As babás vivem fugindo de lá. O salário é esse mesmo. Tem plano de saúde, alimentação feita na casa... A tia garantiu que não é exploração. Acho que até ligou para outra babá que trabalhou lá. O problema realmente são as crianças.
— Tá... Mas se ninguém aguenta, por que vocês acham que eu vou conseguir?
— Porque você é perfeita! Brincadeira. Porque você tem cursos, já trabalhou em escola e como babá. É um poço de amor e paciência. E, o mais importante, cresceu em um abrigo. Sofia, a gente cresceu ao lado de todo tipo de criança. Você se dava bem com todos, até com o esquisito do Paulo. Então a tia te recomendou porque achou que você é mais do que competente.
— O Paulo não era esquisito... Mas eu entendi. Vou falar com a tia. Mas, pelo que você disse, pode ser que eu também saia correndo de lá.
— Duvido! E tem outra coisa: eles estão com urgência. Então você tem uma entrevista marcada às cinco.
— Como é?! E você me fala isso agora? Nem aceitei ir!
— Eu sei, mas a tia achou melhor já deixar agendado. E agora que aquela megera que nem te dava horário de almoço te demitiu, você pode correr pra casa e se arrumar. É uma oportunidade excelente. E você vai poder realizar os itens da sua lista.
Pensei um pouco. Era realmente um bom dinheiro, mas muita responsabilidade cuidar dos filhos dos outros, ainda mais de crianças que, pelo que entendi, tinham perdido a mãe e o pai vivia fora. Minha experiência de babá tinha durado uns quatro meses e foi antes de eu mudar de cidade. Eu cuidava de uma menininha fofa de três anos enquanto os pais trabalhavam. Não imaginava como seria cuidar de três.
— Eu vou. Até porque agora não tenho muita escolha. Tem o endereço?
— Tenho! Vou te mandar por mensagem.
Corri para a pensão. Ainda não eram três horas e todo mundo estava fora trabalhando, então pude tomar um banho caprichado pra tirar o cheiro de fritura. Eu tinha um cabelão cacheado que ia até o meio das costas, que consegui lavar e secar com tempo.
Coloquei minha melhor roupa: um vestido social preto com gola padre e mangas ¾. Tinha detalhes de botões dourados em forma de abelha, um verdadeiro achado de brechó. Ficava ótimo no corpo, nem muito largo, nem muito justo, ideal para uma entrevista. Eu não tinha muita coisa, já que morava em um quarto de pensão. Meu sonho era morar sozinha num cantinho só meu, mas meu salário na lanchonete mal dava pra comer. Quem dirá pagar aluguel.
Pedi um carro de aplicativo. Rio Claro do Sul era uma cidade pequena, então a corrida não ia sair cara. No caminho, o carro passou pela rua da lanchonete, fiquei agradecida porque nunca mais iria encontrar aquele cliente novamente.
Meu nome é Sofia Valente, tenho 20 anos e cresci em um abrigo para menores. Quando tinha três anos, minha mãe deu entrada num hospital passando muito mal. Infelizmente, era tarde demais: estava com um quadro avançado de pneumonia e acabou falecendo. Como não encontraram nenhum parente ou documentos, fui enviada para casas de acolhimento. Passei por diversos abrigos até completar 18 anos.
Não fui adotada. Já tinha três anos, era meio doentinha e subnutrida, vivia indo ao médico. Quando fiquei melhor, já era uma criança de sete anos, então minhas chances eram poucas.
Mas não me sinto triste com a minha história. Conheci pessoas que cuidaram de mim, fiz amizades, convivi com muitas crianças que tinham histórias ainda mais difíceis e precisavam de um ombro amigo. Quando chegou a hora de sair para o mundo, foi muito difícil, mas eu tinha planos e objetivos. Foquei em correr atrás deles.
Um desses objetivos era descobrir mais sobre minha mãe, saber quem ela era, se tinha alguma família. No meu registro, não constava nome de pai, apenas o dela e dos meus avós — que nunca foram encontrados.
Foi por isso que vim para a pequena cidade de Rio Claro do Sul, onde supostamente tudo começou, já que foi aqui que minha mãe morreu. Vim morar numa pensão com Ana, minha irmã de coração, que cresceu comigo no abrigo. Consegui um emprego numa lanchonete, passei no vestibular e comecei a investigar o destino da minha mãe, mais de vinte anos depois.
Se esse novo emprego der certo, com o salário poderei finalmente pagar um bom detetive e começar a entender minha própria história.
Quando Sofia desmaiou, mal tive tempo de largar a bengala para ajudá-la. Algumas pessoas na rua se aproximaram, e meu motorista saiu do carro às pressas. Colocamos Sofia no banco de trás e a levamos imediatamente para o hospital.Ela estava apoiada no meu ombro, e eu a abraçava com cuidado. Estava pálida, e aquilo me preocupava de maneira dolorosa, trazendo de volta fantasmas do passado. Beatriz havia escutado uma conversa entre mim e minha irmã — o assunto era Sofia. Eu tinha pedido à minha secretária que investigasse onde ela estava trabalhando e se estava bem. Mas não esperava que Beatriz fosse me confrontar com raiva, jogando na minha cara que Sofia estava envolvida com o irmão dela e, pior ainda, que estava grávida.Fiquei em choque, mas precisava ouvir a verdade da boca de Sofia. Agora ela estava ali, ao meu lado, e nada mais importava, o mais urgente era que ficasse bem.No hospital, meu motorista correu para buscar ajuda. Logo Sofia foi levada para dentro, e um medo primitivo
Eu ainda tinha o contato do Eduardo. Desde que saí da casa dele, nunca mais tínhamos nos falado. Foi um combinado entre nós de cortar contato, que nunca desrespeitou. Meu plano era simples: mandar uma mensagem avisando que precisava conversar. Talvez fosse no escritório dele mesmo, um lugar neutro.Mas toda vez que pegava o celular para digitar aquelas palavras, a ansiedade tomava conta e depois de alguns minutos escrevendo e apagando, eu acabava desistindo. Mais um dia passava. E outro. E mais outro. Enquanto isso, os sintomas da gravidez se intensificavam, e já não dava mais para esconder, até as minhas colegas de apartamento sabiam. Alguns dias eu vomitava tanto que parecia estar expulsando até a alma. Trabalhar em restaurante era um desafio a parte, eu vivia com o estômago embrulhado e fingir que estava tudo bem exigia uma força que eu já não tinha.— Minha filha, já falei que você precisa falar com o Eduardo logo — dizia tia Cleide com firmeza, mas com um toque de carinho — Ele
Antônio me levou para casa em silêncio. O caminho curto parecia uma eternidade. Minha chefe disse que conversaríamos depois, mas o olhar dela já dizia tudo. A verdade era que eu tinha perdido o emprego.Sim, eu podia apelar para a gravidez, dizer que fui provocada, tentar tocar o coração dela. Mas não queria piedade. Muito menos trabalhar num lugar onde eu não era bem-vinda. Seria humilhante demais, mesmo precisando trabalhar. Enquanto caminhava até a porta, eu só conseguia pensar na Beatriz. Provavelmente, nesse exato momento, ela estava inventando mentiras para o Eduardo. A raiva que crescia em mim era silenciosa e pesada.— O que aconteceu? — perguntou tia Cleide, assim que me viu chegar mais cedo, com Antônio logo atrás. A preocupação estampada no rosto dela.— Minha irmã apareceu no restaurante, provocou a Sofia, e as duas acabaram discutindo feio — explicou Antônio antes que eu conseguisse abrir a boca, percebi que ele omitiu o fato de eu ter batido na Beatriz e ela ter me ame
— Sério, você precisa parar de aparecer aqui — falei, ao ver Antônio mais uma vez entrando no restaurante.— Só vim ver como você está, se está precisando de alguma coisa — ele disse, sentando-se na mesa que eu estava limpando.— Não preciso de nada. Já falei que não precisa se preocupar, muito menos ficar vindo aqui.Antônio não me deu ouvidos e pediu o prato do dia. Eu queria reclamar, mas também não podia negar o serviço para ele. Antônio aparecia dia sim, dia não no restaurante, sempre perguntando como eu estava e se precisava de alguma coisa. No início, insistia em saber quando eu contaria para o Eduardo, mas nos últimos dias havia desistido — assim como Tia Cleide — já que eu ficava irritada. A vantagem de estar grávida era que ninguém queria me deixar nervosa.Fui até o balcão buscar o pedido do Antônio e, quando voltei, quase deixei o prato cair no chão. Beatriz havia surgido do nada e estava sentada ao lado dele.— Então é aqui que você está trabalhando agora? Bem mais apropr
Acordei mais cedo do que o habitual. Tia Cleide já estava de pé, preparando um café da manhã que enchia a casa com um cheiro delicioso — pão na chapa, café passado na hora e um bolo simples, minhas colegas de apartamento nem conseguiam disfarçar a felicidade de se aproveitar da situação. — Você não vai poder comer agora, por isso vou levar uns pedaços para depois. Vai fazer exame de sangue em jejum, mas depois precisa estar alimentada — disse, colocando pão e uns pedaços de bolo em um pote. Eu só balancei a cabeça, ainda meio sonolenta. A ansiedade acumulada no peito como uma pedrinha incômoda, hoje eu faria os primeiros exames e meu primeiro ultrassom.Na clínica, o cheiro de desinfetante e a sala cheia de grávidas me fizeram sentir deslocada. Algumas estavam acompanhadas dos parceiros, outras vinham com mães ou irmãs. Eu estava com Tia Cleide, que segurava minha ficha como se fosse a responsável legal de uma adolescente. O que não estava muito longe da verdade. — Sofia Valente
Tia Cleide chegou a Rio Claro do Sul mais rápido do que eu esperava. Como ainda não tinha um lugar definido para ficar, consegui convencer minhas duas colegas de apartamento a abrigá-la por alguns dias. Claro que elas não reclamaram, não depois que a mulher baixinha, que não sabia ficar quieta, deu uma faxina na casa e fez uma comida fresca, coisa rara nos nossos dias apressados.Ela não era minha tia de verdade, é claro. Tia Cleide, ou apenas Tia, tinha trabalhado a vida toda no abrigo, e levava suas obrigações muito além do contrato, tratando todo mundo como filhos sem distinção. No meu caso e no de Aninha, talvez ela tivesse extrapolado ainda mais, porque nós duas realmente não tínhamos ninguém fora dali.Tia Cleide foi a mãe que eu não tive. Sempre apoiando, ensinando, aconselhando e brigando quando era preciso. Mesmo depois que saímos do abrigo, aos dezoito, ela tentava manter contato, apesar de também ter seus próprios filhos em casa.Por isso, no primeiro dia em que chegou, dep
Último capítulo