A primeira interação com as crianças foi tranquila, talvez porque estivessem cansadas e já tivessem visto muitas babás para se importarem com mais uma. Logo depois do banho, jantarame foram dormir. Os problemas começaram no dia seguinte.
Acordei cedo e quando fui chamar para o café da manhã, Davi não queria sair da cama, se revirava de um lado para o outro, me chamando de chata. Fiquei agradecida pelo fato de que palavrões ainda não haviam chegado ao ouvido dele, então seu vocabulário se resumia a “chata”, “bobona”, “idiota” e “ridícula”.
— Tudo bem, não vou insistir — sentei-me na cama ao lado dele, que se escondeu embaixo do lençol. — Podemos ficar aqui mais um pouco. Mas por que você não quer levantar? Está um sol lindo lá fora, as férias estão acabando... Podemos ir ao parque, nadar na piscina, fazer um monte de coisas mais legais do que ficar aqui.
— Não quero ir ao parque com você. Quero ir com o meu pai — ele disse com raiva e mágoa na voz.
Eu não tinha uma solução. Era uma criança querendo o pai, e eu nem sabia quando ele voltaria. Senti um certo ódio do meu chefe por ser tão relapso e ausente.
— Tudo bem, vamos fazer assim, e se eu pedir para a Carmen trazer o café da manhã aqui? Posso chamar seus irmãos e podemos fazer uma sessão de filmes aqui mesmo — eu sabia que estava indo contra as regras, e nem havia televisão no quarto, mas isso eu podia resolver.
— Não podemos comer no quarto — ele disse, colocando a cabeça para fora do lençol.
— Podemos fazer uma exceção hoje. Só hoje, claro — sorri para ele, que me olhava desconfiado.
A novidade funcionou em partes. Consegui convencer Carmen a montar uma bandeja linda e colorida, com frutas, iogurte, pães, leite e suco. Forrei um lençol no meio do quarto e, interessado na bagunça, Davi esqueceu a birra. Os gêmeos ficaram animados. Foi uma zona, confesso, mas eu pretendia limpar para não deixar nas costas da Tânia.
Peguei a televisão do meu quarto e instalei em cima da cômoda. Coloquei filmes da Disney, e passamos parte do dia assistindo Como Treinar o Seu Dragão, Os Incríveis e Procurando Dory, comendo pipoca. À noite depois de conseguir negociar o banho, eles desceram para jantar porque queriam contar para Carmen sobre os filmes que tinham assistido. Ela ouvia tudo atenta e interessada. Percebi que gostava muito das crianças e ficava feliz ao vê-las sorridentes e agitadas.
Márcia tinha me dito para limitar o contato com telas, e no meu primeiro dia eu já havia quebrado umas três regras. Mas como não pretendia repetir aquilo com frequência, estava com a consciência tranquila. No fim do dia, ainda fizemos um quiz de brincadeira para testar a atenção deles, e foi muito divertido. Davi agora queria um boneco de dragão no quarto.
Eu havia ganhado pontos com eles, de forma totalmente apelativa, mas era um começo.
No dia seguinte, foi mais fácil convencer os três a brincar no quintal. Montamos uma barraca e fingimos que era um acampamento. Eu tinha um repertório amplo de criatividade, disso podia me orgulhar. Aos dezesseis anos, fui jovem aprendiz em uma escola e observava as atividades que as professoras faziam com os alunos.
Porém, à noite, quando fui para o quarto depois do banho das crianças, havia um sapo no meio da minha cama. Não precisava ser um gênio para saber que Davi devia ter achado o coitado no quintal e o trouxera para dentro de casa. Não me assustava fácil e não tinha medo de sapo. Perto do abrigo onde cresci havia um córrego lotado deles, que faziam barulho à noite e, de vez em quando, pulavam no quintal. Medo mesmo eu tinha era de cobra, ainda que nunca tivesse visto uma. Mas isso o menino não tinha como saber, e duvido que achasse uma para me assustar.
Resolvi pegar o sapo com um papel para soltá-lo no mato, mas antes passei no quarto de Davi, que ainda estava acordado.
— Olha só o que achei na cama — falei, mostrando o sapo, o menino fez uma cara de culpa, mas também de curiosidade. — Sabia que um sapo pode comer até cem insetos por dia? Acho que esse aqui se perdeu. Vou levá-lo para o quintal, o bichinho deve estar com fome.
Davi não ia confessar, então ficou em silêncio enquanto eu levava o sapo. Tive certeza de que ele já havia usado esse truque antes para assustar outras babás.
No terceiro dia, foi a vez de Alice ter uma birra homérica, porque cismou de brincar com um enfeite que estava em cima da estante da sala, uma estatueta de porcelana de uma dançarina. Peguei o enfeite e mostrei que era frágil e poderia quebrar, mas ela ficou com raiva e queria brincar com ele. Os meninos ficaram meio de lado, tentando entender. Eu tentava negociar com muita paciência, quando Eduardo chegou.
Ele nos encontrou na sala, comigo quase sentada no chão, falando com calma com Alice, que já estava vermelha de tanto chorar. Claro que eles esqueceram tudo em um minuto e correram para o pai, que me olhou estranho.
Provavelmente me achando incapaz.
— Por que a Alice está chorando? — ele perguntou, ignorando os filhos que o rodeavam.
— Ela queria brincar com isso. Estava tentando explicar que não é brinquedo — disse, mostrando o enfeite na mão.
— Não parece que estava tendo muito sucesso.
— As crianças às vezes demoram para entender a frustração.
Eu podia ter falado mais, mas Davi queria ser ouvido e chamou a atenção do pai, falando sobre os filmes que tinha assistido. Pela expressão no rosto de Eduardo, já imaginava que ele reclamaria em algum momento.
Esse momento chegou depois que coloquei as crianças na cama. Eduardo me chamou ao escritório.
— Pelo que entendi do meu filho, vocês passaram o dia assistindo a filmes. Não sei se a Márcia te passou como meus filhos são criados, mas se a sua ideia de cuidar deles é colocar televisão para entretê-los e facilitar o seu trabalho, seu lugar não é aqui.
— Não fiz isso para tornar meu trabalho mais fácil — falei, indignada. — Eles estão de férias, quis fazer um dia diferente e eles adoraram, ficaram empolgados, brincamos, inventamos brincadeiras... E sabe por que eu precisei fazer isso? Porque o Davi queria o pai. Não queria ninguém levando ele ao parque, ele queria o pai. Eu não tinha um pai para dar para ele, então tive que improvisar algo mais interessante que o pai.
Falei de uma vez, sem dar chance ao homem de retrucar. Quando parei, sem fôlego, ele me olhava com fúria nos olhos.
Ótimo, eu já estava cavando a minha próxima demissão.
— Tudo isso aqui, inclusive seu salário, é pago com o meu trabalho. Meu filho precisa entender isso, e você também. Não tenho tempo a perder com birra de criança.
Eu estava em pé no escritório, ele sentado, com toda sua imponência, falando daquele jeito arrogante, desmerecendo a saudade do próprio filho. Senti meu sangue ferver.