Isabela, mais conhecida como Isis, não escolheu o morro. Ela foi moldada por ele. Criada em meio à violência, ela virou o oposto do que esperavam: não vítima, mas rainha. Comanda o alto como uma líder nata, entre ações sociais e decisões perigosas — amada pela comunidade, temida por quem ousa enfrentá-la.Theo, um policial infiltrado, assume o disfarce de professor de boxe na ONG dela. O plano era simples: investigar. O problema? Ele não contava com o charme de Isis, com a força do morro... nem com os próprios sentimentos.Entre festas regadas a funk, tiroteios inesperados e alianças instáveis, os dois vivem uma tensão que vai além do certo e do errado. Mas quando uma invasão policial coloca tudo em risco, eles vão precisar decidir: continuar jogando um contra o outro — ou queimar juntos?Será que o coração sobrevive onde só a bala dita as regras?
Ler mais"Quem manda nessa porra sou eu."
A voz dela cortou o silêncio da madrugada como um raio em céu limpo. No alto do morro, o ar carregava o cheiro da noite — mistura de terra molhada, fumaça e perigo. As luzes da cidade brilhavam lá embaixo, como se fingissem não saber o que acontecia ali em cima. Isis estava parada na beira da viela principal, com o corpo inclinado levemente para frente, os olhos faiscando no escuro como farol de guerra. Short jeans colado, tênis branco limpo — mesmo com a lama da rua — e uma regata cavada que deixava à mostra a tatuagem na costela: um fênix renascendo das chamas. Era o símbolo dela. Ela era o fogo. E aqueles dois muleques de doze anos, suando frio com papelotes escondidos na meia, estavam prestes a entender isso. — É sério isso? — Isis tombou a cabeça para o lado, como quem analisa uma criatura exótica no zoológico. — Vamo ver se eu entendi: vocês acham bonito vender veneno no pé do meu barraco? Os garotos se entreolharam, desesperados, como se esperassem que um deles puxasse uma resposta mágica do bolso. — Tia... foi mal... — o mais alto gaguejou — ...nóis tá no corre... — Corre? Corre o quê, pivete? — A voz dela subiu. — É melhor correr de mim! Num movimento rápido, ela arrancou os papelotes da mão do menor e os jogou no chão. Pisou por cima com raiva, esmagando o conteúdo como se fosse barata. — Lugar de vocês é na escola, porra! Vai estudar, jogar bola, aprender a tocar tamborim, sei lá! Vai aprender a ser alguém! A bronca ecoou pelo beco e saiu reverberando pelas janelas abertas. A comunidade já estava acostumada: quando a Rainha falava, era pra ouvir. Ela gritou para um dos seguranças dela, que vigiava de longe encostado na moto: — Leva esses dois em casa. Agora. E fala pros pais que é a última vez que eu passo pano. Se eu ver de novo nessa merda, boto os dois pra lavar banheiro da ONG de terno e gravata! Escutaram? Os meninos assentiram com a cabeça, apavorados, antes de sumirem morro abaixo, escoltados pelo segurança armado. Isis respirou fundo e passou a mão nos cabelos cacheados, que estavam presos num coque alto. Ainda estava com o corpo quente da raiva — mas não era só isso. Ela não podia deixar. Não ali. Não no pedaço dela. Ali, o comando era dela, e ela fazia do jeito dela. A grana vinha, sim — dos corres, das cargas, do sistema que empurra e não dá escolha. Mas a diferença era que ela investia. Botava o dinheiro no esporte, no samba, na escola, no básico que o Estado não fazia chegar. As crianças da comunidade tinham um lugar na ONG dela, chamada Raízes do Morro. Aulas de música, boxe, reforço escolar, alimentação, atendimento psicológico. Tudo financiado por ela. Pelo crime, sim. Mas pelo cuidado também. Isis sabia que era uma contradição ambulante. Mas era uma contradição que fazia mais pelo povo do que muito político engravatado. — Tá tudo bem, Rainha? — perguntou Bê, braço direito dela, chegando com uma garrafinha d’água. Ela pegou, bebeu um gole, passou o pano no rosto. — Tô. Só de saco cheio. Criança demais querendo virar bandido cedo. — Ela olhou pro céu. — Ainda mais no meu terreno. — Eles te admiram. Querem ser como você. — Eles não sabem o que é ser como eu — respondeu ela, com um sorriso sem humor. — O preço disso aqui é alto, Bê. E eles nem começaram a pagar. Ele não respondeu. Sabia que era verdade. Isis era respeitada. Tinha o controle do morro inteiro, homens armados sob seu comando, olheiros espalhados pelas vielas, e influência política que ela mesma articulava na surdina. Mas o coração dela... esse, ela mantinha trancado. Sempre trancado. Pelo menos era o que ela acreditava. ** Na manhã seguinte, o sol mal tinha batido nas lajes quando ela desceu para a sede da ONG. A fachada era simples, mas viva: pintada com cores fortes, cheia de desenhos feitos pelas próprias crianças. No mural, fotos das festas, das oficinas, dos campeonatos de futebol, da feijoada comunitária do mês passado. — Bom dia, tia Isis! — gritou um dos meninos, correndo com a mochila nas costas. — Bom dia, pivete! Vai pra aula, hein? Ela entrou na sala principal, onde já rolavam os preparativos para a nova turma de boxe. E foi ali que ela viu ele. Camisa preta justa no corpo definido, cabelo bagunçado, tatuagens discretas no braço. Estava colocando as luvas de treino numa das crianças, com um sorriso no rosto. Era o novo professor de boxe que tinham indicado. Disseram que era bom. Disseram que vinha do interior. Disseram que era comprometido com o projeto social. Mas não disseram que ele era daquele jeito. — Quem é ele? — Isis perguntou baixo pra uma das coordenadoras. — O nome dele é Theo. Começou hoje. Simpático, né? Ela não respondeu. Só observou. Tinha alguma coisa naquele homem que fez o estômago dela dar um nó. Não era só beleza. Era presença. Um tipo de firmeza disfarçada de tranquilidade. Como se ele estivesse confortável demais naquele ambiente que era, sim, social, mas também era território dela. Ele a viu. E quando os olhos dos dois se encontraram, foi como se o tempo parasse por um segundo. Theo sorriu. Um sorriso calmo. Quase debochado. Isis estreitou os olhos. Ali tinha coisa. ** O que Isis não sabia — ainda — é que Theo não era só um professor de boxe. Era policial. Infiltrado. Estava ali com uma missão: desarticular a estrutura do tráfico da favela e reunir provas sobre ela — a mulher mais temida do morro. A líder que ninguém tocava. Que a imprensa chamava de criminosa, mas o povo chamava de Rainha. E o que ele não esperava... era que, em pouco tempo, seria ela quem ia desarmar ele. Coração e tudo.A noite caiu pesada sobre o morro. As luzes dos postes piscavam como corações em alerta. Um zunido de rádio cortava o silêncio, e, no alto da viela mais estreita, um sussurro se espalhava entre os becos: — A polícia subiu. Na ONG Raízes do Morro, Theo ainda guardava os materiais da última atividade do dia. As crianças já haviam ido embora com os voluntários responsáveis, mas o suor da tarde permanecia colado à pele. Camiseta úmida, corpo tenso. Ele sentiu o ar mudar. Pesado. Elétrico. Como o céu antes da tempestade. — Tio! A movimentação tá estranha! — um dos meninos que ajudavam na arrumação entrou correndo, olhos arregalados. — Vi gente armada subindo lá em cima! Theo largou os blocos de EVA na mesa. Do lado de fora, as vozes abafadas viravam gritos. Passos apressados. O barulho do rádio. Sirenes. Corações em pânico. Isis surgiu na porta da ONG como um raio contido. Coturno, moletom, olhar em brasa. — Recolham as crianças! Todos pro protocolo emergencial! — ela gritou para os
O sol se despedia atrás dos barracos coloridos, tingindo de laranja o céu sobre o morro. As fachadas descascadas brilhavam douradas, como se cada tijolo tivesse sido pintado à mão pela própria esperança. A ONG Raízes do Morro, mesmo marcada por tiros e sustos recentes, pulsava viva de novo. As mães vieram ajudar na limpeza, os adolescentes carregavam baldes, vassouras e cimento. Um mutirão espontâneo, como se toda a comunidade tivesse decidido, ao mesmo tempo, reconstruir o que os de farda tentaram quebrar. Ali, juntos, eram mais fortes. Theo estava sentado na beira da quadra, cercado por crianças. Uma menininha de trança — Lorena, oito anos, língua afiada — tentava ensinar ele a fazer uma pulseira de linha. — Assim, ó, enrola por trás e puxa por dentro! — ela dizia, como se explicasse uma fórmula da NASA. — E se enrolar pela frente? — Vai dar ruim, tio! Olha o que você fez, embaralhou tudo de novo! A molecada ria alto. Theo também. Envergonhado, mas feliz. O sorriso dele ali n
O cheiro de pólvora ainda estava no ar. Parecia impregnado nas paredes da ONG Raízes do Morro, no chão da quadra que antes era brincadeira e agora era silêncio, e principalmente nas lembranças de quem sobreviveu à tempestade. O vento da manhã trazia poeira, mas também os ecos da noite anterior. Balas perdidas, gritos, correria. A violência tinha passado por ali feito vendaval — e o que doía agora era o vazio. A quadra, onde geralmente ecoavam risos e sons de bola batendo no chão, estava vazia. Só as marcas no muro — perfurações feias, covardes, sujas — diziam que ali se lutava por futuro. Isis estava sentada na mureta da entrada da ONG, coturno sujo de terra, braços cruzados, expressão travada. O olhar, perdido. Os olhos dela estavam acesos, mas distantes. Como se estivesse revendo tudo. Cada grito. Cada disparo. Cada criança que ela teve que esconder atrás de armários, de paredes finas como papel. Theo chegou em silêncio, camisa suada, o rosto duro, a fúria contida nos punhos cer
Era pra ser só mais um dia de aula. O cheiro de cuscuz fresco se misturava com o som das crianças jogando bola na quadra. Os voluntários chegavam aos poucos, vestindo o colete da ONG como se fosse armadura. Theo ajudava a colar um cartaz novo na parede da sala de leitura: "Meus sonhos cabem nesse mundo. E eu também." — Ei, professor — chamou Bê, encostando na porta com o boné virado pra trás. — Ficou maneiro isso aí. Quase chorei. — E você chora por alguma coisa, Bê? — Theo sorriu. — Só quando o Flamengo perde e quando o gás acaba no meio do banho. Eles riram. Riram de verdade. Era aquilo. O improvável. O impossível. O milagre de paz no alto do morro. Mas o futuro tem mania de ser interrompido. PÁ. PÁ. PÁ. Estalos secos rasgaram o ar, vindos do beco dos Pinheiros. O riso parou. As crianças congelaram. O mundo virou susto. — Deita! — gritou Theo, cobrindo os pequenos com os braços. Na rua, Barril puxava o rádio com a urgência de quem já viveu isso mil vezes. Doquinha saiu co
O sol subia devagar no céu do morro, como quem também acordava cansado depois de três dias de festa.Restos de bandeirinhas ainda balançavam preguiçosas nos fios, como se se recusassem a ir embora. Copos plásticos espalhados, cheiro de churrasco se misturando ao da terra molhada. A paz parecia real, mas tinha algo no ar… um peso invisível, sutil, que nem a brisa da manhã conseguiu levar embora.Theo abriu a porta de sua casinha simples no alto da ladeira, enxugando o suor da nuca com a camiseta. Ainda estava com o corpo mole de tanto dançar, rir, brincar com as crianças — e pensar em Isis. Mas havia algo naquele dia que chamava. Algo diferente.Lá embaixo, o pátio da ONG voltava a viver: bola rolando, criança rindo, menino no pandeiro improvisado. Theo sorriu sozinho. No meio daquele caos bonito, sentia algo que não sabia explicar. Paz, talvez. Ou pertencimento.— E aí, professor! Vai dormir até meio-dia agora? — gritou Bê, surgindo com o cigarro pendurado no canto da boca e um copo d
O terceiro e último dia da Festa das Raízes amanheceu com cheiro de chão molhado. A chuva tinha caído fina durante a madrugada, lavando o pó, o sangue seco da tensão, e talvez até umas mágoas antigas. Agora o sol batia firme nas telhas, secando a roupa no varal e aquecendo o peito do morro como um abraço de mãe. Era dia de celebrar. De respirar fundo e sorrir sem medo. Na quadra da ONG, a criançada já esperava ansiosa. Pés descalços, olhos brilhando, luvas de boxe nas mãos pequenas. Hoje era o “Aulão do Professor”, o momento mais esperado da festa. E lá vinha ele. Theo surgiu com a camiseta branca suada, cabelo bagunçado, e aquele sorriso de quem se encontrou. Carregava uma sacola com doces e uma energia de moleque de doze anos. — Hoje a gente não vai só lutar! — gritou ele, com a voz empolgada. — Vai ter premiação pra quem fizer a melhor esquiva… e brigadeiro pra quem me derrubar no chão! — Ebaaa! — gritaram várias vozes infantis ao mesmo tempo, pulando, rindo, batendo palma.
Último capítulo