Enquanto a comunidade vibrava lá fora, o som de moto subindo o beco e fogos de advertência cortando o céu como códigos secretos, Theo seguia enfiado no quartinho abafado, de olho na tela do notebook. Gravações. Câmeras escondidas. Relatórios acumulados. O trabalho dele era ouvir, cruzar dados, observar.
Só que nada batia. Tudo que tinha sobre Isis apontava pra um tipo de criminosa. Mas o que ele via, ali, de dentro do morro, era outro tipo de liderança. Líder de verdade. Com moral. Respeitada sem precisar levantar a voz. Naquele exato momento, o rádio da frequência do grupo tático chia na base: — “Movimento estranho na parte baixa do Santa Fé. Grupo armado invadiu terreno da viela Dois. Alvo em deslocamento: Isis.” — “Códigos da facção rival confirmados. Ataque não autorizado. Caos armado.” Theo parou. Endireitou a postura. Jogou a mochila pro lado e andou até a janela. Fogos em linha reta. Isso significava alerta de perigo real. O morro inteiro se movia como um corpo só, e no centro dessa movimentação… estava ela. --- LÁ EMBAIXO Isis atravessava o beco com duas mulheres e três moleques armados no flanco. Nenhum deles devia ter mais de vinte anos. Os olhos dela estavam secos, atentos. Não havia pânico, só estratégia. — "Porta de cima fecha. Baixo, desce por trás da escola. Ninguém atira primeiro. Eu resolvo." Ela não gritou. Só falou. E todos obedeceram. A comunidade, que minutos antes dançava no batidão, agora recolhia as crianças, fechava portas, acendia velas. Não era religião. Era sobrevivência. Do alto, Theo via o comando dela. E entendeu: aquilo não era fachada. Era guerra com disciplina. Ali, cercada de becos e possibilidades, Isis não parecia acuada. Parecia pronta. Não tirava o salto, nem o brinco dourado. Não escondia o cabelo cacheado preso num coque firme. E o rádio na cintura transmitia as ordens dela pra cada canto do morro. — "Fica de olho na entrada da Biquinha. Qualquer passo estranho, recua. Eu vou de frente." — "Vai sozinha, Isis?" — uma das meninas perguntou. — "Se eles me chamaram, vão me escutar. E se não escutarem... aí eles aprendem." --- DE VOLTA AO QUARTO Theo abriu o áudio da câmera oculta mais próxima. Deu play. > — “Tu acha que eles iam atacar em pleno sábado? Quando o projeto tem aula com as mães?” — “Elas iam subir com criança no colo, você tem noção do estrago?” — “Tira as famílias da reta. Eu vou conversar com eles.” A voz era dela. Conversar? Com homens armados? Theo fechou o notebook. Jogou o fone na cama. Não aguentava só assistir. Mas também não podia agir. Não sem se queimar. Não sem se entregar. Ela estava sozinha, mas não tava fraca. Estava no comando. No risco. E com tudo a perder. E ele ali... policial, espiando tudo, com a mente fervendo. Será que ela sabia? Será que ela já desconfiava de mim? Ou pior... Será que eu queria mesmo derrubar ela? --- DEZ MINUTOS DEPOIS... O beco da viela Dois silenciou. As motos da facção rival foram vistas voltando. Sem disparar um tiro. A notícia subiu o morro como rastilho de pólvora: — “Zero tiros. Zero mortos. A Isis fez os caras recuar.” — “Como?” — “Ninguém sabe. Mas recuaram.” Na varanda da ONG, Dona Rita — uma das mulheres mais antigas do morro — só comentou: — “Essa menina tem a língua mais afiada que navalha. Bota medo em muito homem fardado.” — “Ela bota moral, é isso sim.” — “Ela é raiz. Raiz forte não tomba.” --- NO QUARTO DE THEO Ele se encostou na parede, suando. Pensando. “Quem é essa mulher?” Abriu o armário velho, puxou a pasta preta com a sigla da polícia. Abriu de novo. Olhou os dados dela. Isabela Souza dos Santos. Vulgo: Isis. No relatório, ela era "líder perigosa". Na prática, ela era a muralha que impedia o caos total. Theo fechou os olhos e encostou a cabeça na parede. Ali, naquela noite, ele entendeu que o buraco era muito mais embaixo. E que talvez, só talvez... estivesse começando a torcer por ela. ---