O morro acordou com cheiro de vela apagada e som de janelas se abrindo devagar.
A paz era aparente, mas no peito de quem morava ali, vivia também o receio. A noite anterior ainda pesava como névoa nas esquinas. O ataque da facção rival foi contido — nenhum tiro, nenhuma baixa. Mas quem entende de favela sabe: ausência de sangue não é sinônimo de vitória. Foi um baque. Uma ameaça. Uma quebra de código. Na sede da ONG, onde normalmente ecoavam risadas e o cheiro doce do mingau matinal, o silêncio reinava. Só o barulho da porta pesada interrompeu. Isis entrou. Roupa limpa. Mas os olhos... ainda eram os de ontem. Ela não dormiu. Não comeu. Mas estava ali. Firme. No comando. Andou até o centro da quadra e parou. Os funcionários, os responsáveis pela cozinha, oficina, costura... todos pararam. Até os meninos congelaram a bola no pé. Ela girou o rosto, observando cada rosto ali. Cada olhar abaixado. — “Pode parar tudo. Vou falar uma coisa só uma vez.” O silêncio era tão denso que dava pra ouvir o coração de quem estava mais perto. — “Ontem, a paz do morro foi quebrada. O acordo que a gente sustentou com custo e coragem... foi violado.” Uma jovem da cozinha mordeu o lábio, nervosa. — “E não foi por erro. Foi por traição.” Um burburinho começou, como vento atravessando telhado velho. Ela ergueu a mão. O silêncio voltou, pesado. — “Nosso problema é com o sistema. Com a polícia. A outra facção sabe disso. Sempre souberam. Quando invadiram, sabiam que iam quebrar a linha.” Ela respirou fundo. Os olhos, antes sóbrios, agora cortavam. — “Se invadiram… é porque alguém aqui de dentro entregou o caminho. Falou demais. Mostrou entrada. Expôs trajeto. Nome. Horário.” Dois passos à frente. A respiração dos outros se prendia no peito. — “Quem é, sabe. E eu vou descobrir.” Voz calma. Tom que machuca mais do que grito. — “E quando eu descobrir... não vai ter reunião. Não vai ter perdão. Vai ter justiça.” Ela virou de costas. A comunidade não aplaudiu. Ninguém ousaria. Ela saiu da quadra deixando um vácuo de medo e respeito no ar. Porque o morro podia até parecer um lugar sem lei. Mas quando a lei tem nome e rosto — Isis — a liberdade vinha com limite. E traição… tinha preço. --- ONG – QUADRA – DIA SEGUINTE Theo mexia no quadro de tarefas da aula de boxe. Organizava luvas. Mas a cabeça estava longe. Nos tiros que não aconteceram. Na mulher que peitou homens armados sem levantar uma arma. E nas palavras que circulavam nos corredores: — “Disseram que a Isis quase bateu no Zóio...” — “Ela gritou com ele. O cara sumiu depois.” — “Se ele for o X9, ela mata.” Theo enxugou o suor da testa. O som de chinelos anunciou a chegada dela. Isis entrou. Cabelo preso no alto, jeans escuro, camisa branca com letras pretas: "Por nós, por hoje, por sempre." A quadra silenciou. De novo. — “Bom dia, professor.” — ela disse, seca. — “Bom dia...” — ele respondeu, medindo o tom. — “Como você tá?” Ela sorriu de lado. — “A pergunta é: como o morro tá. Eu? Tô em alerta.” Ela parou perto do ringue. Observou o treino. Binho, agora assistente oficial, orientava os pequenos. Tênis frouxo, mas coração no lugar. — “Esse menino tem brilho.” — disse Isis, sem olhar Theo. — “Você que escolheu?” — ele perguntou. — “Ele se escolheu. Gente que quer mudar brilha diferente.” Theo a encarou. — “E você? Quer mudar?” Ela riu. Um riso sem alegria. — “Professor... mudar o quê? Eu sou o morro. E o morro não muda. O morro resiste.” Silêncio. Mas entre eles… algo nascia. --- CASA DE ISIS – TARDE Zé do Gás e Mariana chegaram. Reunião informal. Café fraco. Papo reto. — “Você tá achando mesmo que foi o Zóio?” — Mariana foi direta. — “Tô achando que tem algo errado. E ele tava no lugar errado. Na hora errada. Com as pessoas erradas.” — “Mas sumir com o moleque sem prova é arriscado…” — disse Zé, coçando a barba. Isis ergueu a sobrancelha. — “Eu sumi?” Silêncio. — “O povo tá falando.” — Mariana. — “Tão dizendo que você tá dura demais. Que esse clima de caça às bruxas vai azedar a ONG.” Isis se levantou. Lenta. Controlada. — “A ONG é minha vida. Mas a favela é meu sangue. E se tiver que sangrar pra manter viva… eu sangro.” Zé tentou argumentar. — “Mas...” — “Não tem mas. Aqui, quem cala, consente. E quem consente com traição... é cúmplice.” --- QUARTO DE THEO – NOITE Theo reouvia áudios do rádio. Procurava pistas do vazamento. Nada. Mas em uma câmera, um vulto passou. Cabelo raspado. Boné baixo. Ele pausou. Deu zoom. Zóio. Trinta segundos antes do ataque. Theo fechou o notebook. Inquieto. — “E se for ele mesmo? Vai morrer?” — “E se não for?” Ele era policial. Mas… Isis não era só uma missão. E isso era perigoso. --- QUADRA DA ONG – DIA SEGUINTE Os alunos entravam. Um novo mural aparecia: fotos, frases, desenhos infantis. No meio, colada com fita preta, uma folha escrita à mão: “Quem fala, vive. Quem trai, cai.” Isis passou. Viu. Não tirou. Não comentou. Não negou. Theo viu. Binho também. — “Cê acha que a tia Isis vai descobrir quem foi?” — perguntou Binho. — “Acho.” — Theo respondeu. — “Ela sempre descobre.” Binho mordeu o lábio. — “Se fosse eu… cê me protegia?” Theo olhou nos olhos dele. — “Você não faria isso. E se fizesse… não pediria proteção. Pediria perdão.” Binho baixou a cabeça. Voltou pro treino. Isis, do canto, observava. Olhar de quem vê tudo. Até o que ninguém mostra. --- Naquela noite, mais uma vela foi acesa no beco. Não por morte. Mas por medo. A favela tem memória curta pra festa… mas longa pra traição. E Isis… nunca esquece. ---E aí, leitores… vocês acham que o Zóio traiu mesmo? E se fosse você no lugar do Theo… contaria a verdade? Quero saber tudo nos comentários! Curte, comenta, compartilha e segue acompanhando! A história tá só começando… Com carinho, A.C. Borges