O barro da ladeira secava sob o sol das nove da manhã, e as cores das casas pareciam sorrir de novo.
No alto do morro, a ONG “Raízes do Morro” já não era só um projeto. Virou refúgio. Virou fôlego. Virou nome falado até no pé da serra, onde antes só ecoava silêncio e abandono. Ali, entre muros grafitados e janelas abertas, a vida acontecia. Theo ainda se surpreendia. Vindo da “missão”, esperava um cenário de medo, tensão, guerra. Mas o que encontrou foi resistência viva, colorida, pulsando no compasso das crianças correndo, das mães na fila com panelões de alumínio, e dos adolescentes criando arte na lateral da quadra. E no centro de tudo… Isis. Caderno de anotações enfiado debaixo do braço, camiseta colada no corpo, e aquela pose de quem manda com amor, mas não aceita desaforo. — “A gente vai pintar os muros da ONG com os nomes das mulheres que criaram esse morro.” — ela disse, no meio da roda de conversa. Theo ouviu, de longe, e sentiu o peito apertar. Ele dava aula. Ela dava propósito. --- — “E aí, minha rainha do caos!” — gritou Barril, invadindo o portão com o mesmo fôlego de sempre, sorriso torto e dentes desalinhados. — “Respeita, Barril, a mulher tá em modo presidenta hoje.” — zombou Doquinha, apoiando o facão na cintura mais por estilo que por ameaça. — “Cês vão trabalhar ou só bater boca aqui?” — disse Isis, fingindo impaciência, mas com aquele riso escondido no canto da boca. Eles riram. Sempre riam. Era isso que fazia deles os xodós do pedaço — homens armados com alma de criança. O povo temia, mas amava. Porque Barril carregava bala na cintura e pirulito no bolso. E Doquinha, se matava quando precisava… também tocava flauta pras crianças à noite. --- Mais tarde, dentro da sala de equipamentos da ONG, Theo dobrava coletes de treino quando ouviu a porta abrir. Isis entrou. Sem cerimônia. Fez isso como quem já sabia que o espaço era dela — porque tudo ali era. — “Preciso de você.” — disse, direta. — “Pra quê?” — “Vamos organizar uma festa.” Theo franziu a testa. — “Festa?” — “Três dias. ‘Morro em Festa’. Música, comida, rodas de conversa, campeonato de boxe, desfile das crianças… O povo precisa lembrar que ainda tem motivo pra sorrir. E você… vai ficar responsável pelo campeonato.” Theo deu um sorriso torto. — “Tá me colocando pra trabalhar, hein.” — “Você disse que queria fazer parte.” Ele assentiu. Devagar. Mas o que prendeu mesmo não foi o pedido. Foi o olhar dela. Dois segundos a mais. Um silêncio cheio de coisas que ainda não tinham nome. Dentro dele, algo coçava. Algo que queria ficar. Mesmo sem poder. --- No fim da tarde, na laje, Doquinha e Barril jogavam dominó. Peças batendo. Cigarro queimando. Olhar no horizonte. — “Tô dizendo, Barril… esse professor novo. Cês não acham ele certinho demais?” Barril bufou. — “Tu desconfia até do cachorro da padaria.” — “Mas esse aí... tem coisa. O Zóio sumiu depois de discutir com a Isis. E agora esse professor tá onde? No meio.” Barril parou. Pensou. — “A Isis vai resolver. Sempre resolve.” Silêncio. O rádio chiou. — “Base avisando: movimento da facção rival na entrada do complexo. Tão observando.” Barril ajeitou o boné. O sorriso sumiu. — “Eles não esperam. Rondam antes da festa até começar.” Ali, entre fumaça e concreto, os dois sabiam: A paz era só uma trégua. E trégua… não dura muito. --- No outro dia, enquanto Theo distribuía luvas para os moleques, uma movimentação começou na entrada da ONG. Barril apareceu ofegante, com a camisa suada e o olhar em alerta. — “Isis! Gente da favela de baixo tá vindo.” — “Quem?” — “Mães. Crianças. Tudo bem vestido… mas com o medo no olho.” Isis caminhou até o portão. Lá estavam elas. Dez, doze mulheres. Filhos pela mão. Umas de salto, outras de chinelo. Todas com a mesma coisa no olhar: esperança sofrida. Uma delas se adiantou. — “Disseram que aqui tem aula, comida… que aqui criança é tratada como gente. A gente pode trazer os nossos?” Isis olhou pro grupo. Depois pra Barril. — “Aqui, quem quer crescer, entra. Só não entra quem vem pra atrapalhar.” E abriu o portão. Theo, lá de dentro, viu. Isis com os braços abertos. As mães entrando com dignidade. As crianças correndo direto pros brinquedos. Ele sorriu. Mas… no fundo do peito, a preocupação martelava. Se aquelas famílias vieram… É porque o outro lado não dava mais conta. E onde o Estado some… o perigo ocupa. --- Enquanto isso, Mariana e Zé cochichavam no canto da quadra. Theo ouviu pedaços: — “…ela tá se perdendo nesse orgulho. O menino desapareceu...” — “…ela nem confirmou se foi o Zóio. E se ele for inocente?” — “…mas se for culpado e ela acobertar… a confiança na ONG vai ruir.” Ele afastou o olhar. A dúvida sobre Zóio agora era coletiva. E a pressão… caía sobre Isis. --- À noite, Isis e Theo revisavam o cronograma da festa. Theo segurava a prancheta, mas não prestava atenção. O jeito dela com as palavras, a firmeza nas decisões, o brilho discreto no olhar... tudo nela começava a gritar mais alto que sua missão. Ela falava dos horários, das oficinas, do som que a Formiga ia trazer com DJ da comunidade. Até que ele interrompeu: — “Por que você me escolheu pra isso?” — “Pra organizar o campeonato?” — “Pra confiar em mim. Eu sou novo aqui. Você nem me conhece.” Isis largou o papel devagar. Olhou nos olhos dele. — “Eu confio porque você não tenta ser o que não é. E porque tem gente que nasce pra somar, mesmo sem saber direito como.” Theo engoliu em seco. A resposta foi simples. Mas bateu fundo. Porque no fundo… Ele queria ser isso. Queria somar. Queria ficar. Mas ele tinha um segredo. E segredos… sempre cobram conta. ---A trégua foi selada. Mas até quando ela vai durar? E o Zóio… será que ele foi mesmo o traidor? Ou tem coisa aí que ninguém sabe ainda? 👀 Conta aqui nos comentários o que você faria no lugar da Isis! E se tá curtindo a história, deixa seu coração e continua acompanhando. Com amor e coragem, A.C. Borges