O céu sobre o morro tava meio acinzentado naquela manhã, e o clima parecia acompanhar o humor de Isis.
Ela caminhava pela viela principal, ladeada por seus seguranças, os olhos atentos em cada detalhe. O boné aba reta escondia parte do rosto, mas o jeito de andar... era inconfundível. Onde ela passava, as pessoas abriam caminho. Alguns sorriam, outros abaixavam a cabeça. Respeito e temor se misturavam naquela figura que comandava tudo de cima, como uma leoa no topo da cadeia. Na tela do celular, a mensagem piscava: “Confirmado. Dois da Linha Verde na área da Biquinha. Armados.” Ela trincou o maxilar e apertou o passo. O morro era dela. E se alguém ousasse invadir o território, ia sentir o peso da coroa. Chegando na ONG, o clima parecia mais leve. A criançada corria, os tambores batiam forte no salão de percussão, e o cheiro de arroz com feijão saía da cozinha comunitária. Era o contraste da guerra silenciosa com a paz que ela tentava construir. Theo já tava lá. Camisa cinza, calça de tactel preta, o cabelo molhado e o olhar atento. Ele orientava um grupo de meninos sobre postura de defesa, enquanto Binho — agora promovido a assistente — segurava os aparadores com orgulho. — Isso, Léo. Braço firme. Não é só bater, é saber onde e como. — Theo corrigia, paciente. Isis parou na beira do ringue e cruzou os braços, observando sem falar nada. Por um instante, esqueceu da mensagem, dos rivais, da tensão no morro. Ficou só olhando ele ali, lidando com os moleques do jeito certo, sem arrogância. Do jeito que ela sempre sonhou. Binho notou a presença dela primeiro. — Tia Isis! — ele gritou, sorrindo. — O professor tá fazendo milagre aqui, hein! Ela sorriu de canto. — Milagre ou feitiçaria? Theo ergueu o olhar e respondeu sem hesitar: — Às vezes é só ter alguém que acredita neles. E cobrar como se fossem capazes de tudo. A resposta bateu fundo. Ela odiava admitir, mas ele tava ganhando terreno. — E você, Binho? Já tá mandando nos outros agora? — ela brincou. — Ué, foi o professor que escolheu! — ele respondeu, empolgado. — Disse que eu tenho jeito pra ensinar. Isis ergueu uma sobrancelha, surpresa. — Ah, é? O valentão agora é educador? — Só quando não tão me irritando, né... — ele disse, arrancando risadas da turma. Theo aproximou-se dela, baixando o tom da voz. — Esses meninos têm talento. Só precisam de alguém que veja isso antes que o tráfico veja primeiro. Ela assentiu com um leve movimento de cabeça, mas a tensão nos ombros não desaparecia. — Fica de olho na Biquinha. — ela disse baixinho, para que só ele ouvisse. — Se ver alguém estranho por ali, não age. Me avisa. — Linha Verde? — ele perguntou, com o maxilar travado. Ela não respondeu. Só olhou pra frente, como quem ouve e não confirma. Mas aquilo foi o bastante pra acender o alerta em Theo. A missão dele não era mais só observar. Era infiltrar. E agora ele tava bem no olho do furacão. Mais Tarde... No fim do dia, a quadra do morro tava em clima de roda cultural. A batucada tomava conta do espaço, os meninos treinavam capoeira no canto, e as meninas ensaiavam coreografias no novo espaço de dança — ainda com cheiro de cimento fresco. Isis, sentada no topo da arquibancada, fumava devagar. Os olhos percorriam o morro de ponta a ponta. Ao lado dela, Theo se aproximou com duas garrafinhas de água. Entregou uma sem falar nada. — Vai querer me hidratar agora também? — ela ironizou. — Alguém precisa cuidar de você também. — ele rebateu, tranquilo. Ela soltou uma risadinha, sem desviar os olhos da comunidade. — Tá querendo marcar território, professor? — Já tô dentro dele, não tô? Isis virou devagar e encarou ele. O silêncio entre os dois não era vazio. Era carregado. Ela se inclinou ligeiramente, os olhos cravados nos dele. — Cuidado com o que você marca. Aqui, quem não sabe onde pisa, cai. Theo manteve o olhar firme. — Eu sei exatamente onde tô pisando, Tia Isis. Ela respirou fundo e desviou o olhar de novo. Na tela do celular, outra mensagem chegou: “Querem reunião. Linha Verde quer falar.” Ela ficou imóvel por alguns segundos, depois digitou uma resposta curta: “Manda subir. Eu mesma recebo.” Theo viu a mudança no semblante dela. Quente. Ameaçador. E ficou ainda mais intrigado com o que ela escondia por trás daquele escudo. Noite cai. E com ela, a tensão. Na entrada do morro, os homens de Isis já estavam posicionados. Todos armados, discretos, atentos. Um carro preto subia devagar, faróis baixos, vidros fechados. No banco de trás, um homem com cicatriz no rosto e uma camisa social aberta até o peito. Djalma, o novo chefe da Linha Verde. Isis estava no alto, esperando. Quando o carro estacionou, ela desceu as escadas com passo firme. O morro em silêncio. Os olhos em alerta. Djalma saiu do carro sorrindo, como se aquele encontro fosse uma visita de cortesia. — Dona Isis... — ele disse, estendendo a mão. — Prazer enorme conhecer a rainha pessoalmente. Ela olhou pra mão dele, depois pro rosto, depois cruzou os braços. — Vai direto ao ponto, Djalma. O que tu quer aqui? — Paz. — ele disse, ainda sorrindo. — Ou pelo menos, uma trégua. Ouvi dizer que tua ONG tá fazendo milagre. Criança da minha quebrada tá querendo estudar aqui. E eu... não sou de negar futuro pra ninguém. Isis o analisou de cima a baixo. — Que interesse repentino é esse pelas crianças? — Vamos dizer que... meu irmão mais novo foi morto num confronto. Tava armado. Mas se tivesse numa ONG, quem sabe tava vivo. Cansei de guerra. Ela ficou em silêncio. Era difícil confiar. Mas algo no tom dele... soava real. — Tu tá dizendo que quer botar os filhos da Linha Verde pra estudar na minha ONG? — ela perguntou, ainda desconfiada. — Isso mesmo. Sem guerra. Sem invasão. Só educação. Theo assistia tudo de longe, tentando entender os códigos por trás daquela conversa. Mas uma coisa era certa: aquela aliança podia mudar tudo. Isis estendeu a mão. Finalmente. — Se quebrar, eu quebro junto. Mas se fizer certo, a favela vence. Djalma apertou a mão dela com força. — É disso que o sistema tem medo, rainha. Enquanto os dois se encaravam, o morro inteiro respirava em expectativa. E Theo... anotava tudo mentalmente. Mais uma peça no tabuleiro havia se movido. E o jogo tava só começando. ---