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A Dona do Morro
A Dona do Morro
Por: A.C. Borges
CAPÍTULO 1 - É melhor correr de mim

"Quem manda nessa porra sou eu."

A voz dela cortou o silêncio da madrugada como um raio em céu limpo.

No alto do morro, o ar carregava o cheiro da noite — mistura de terra molhada, fumaça e perigo. As luzes da cidade brilhavam lá embaixo, como se fingissem não saber o que acontecia ali em cima.

Isis estava parada na beira da viela principal, com o corpo inclinado levemente para frente, os olhos faiscando no escuro como farol de guerra. Short jeans colado, tênis branco limpo — mesmo com a lama da rua — e uma regata cavada que deixava à mostra a tatuagem na costela: um fênix renascendo das chamas.

Era o símbolo dela. Ela era o fogo.

E aqueles dois muleques de doze anos, suando frio com papelotes escondidos na meia, estavam prestes a entender isso.

— É sério isso? — Isis tombou a cabeça para o lado, como quem analisa uma criatura exótica no zoológico. — Vamo ver se eu entendi: vocês acham bonito vender veneno no pé do meu barraco?

Os garotos se entreolharam, desesperados, como se esperassem que um deles puxasse uma resposta mágica do bolso.

— Tia... foi mal... — o mais alto gaguejou — ...nóis tá no corre...

— Corre? Corre o quê, pivete? — A voz dela subiu. — É melhor correr de mim!

Num movimento rápido, ela arrancou os papelotes da mão do menor e os jogou no chão. Pisou por cima com raiva, esmagando o conteúdo como se fosse barata.

— Lugar de vocês é na escola, porra! Vai estudar, jogar bola, aprender a tocar tamborim, sei lá! Vai aprender a ser alguém!

A bronca ecoou pelo beco e saiu reverberando pelas janelas abertas. A comunidade já estava acostumada: quando a Rainha falava, era pra ouvir.

Ela gritou para um dos seguranças dela, que vigiava de longe encostado na moto:

— Leva esses dois em casa. Agora. E fala pros pais que é a última vez que eu passo pano. Se eu ver de novo nessa merda, boto os dois pra lavar banheiro da ONG de terno e gravata! Escutaram?

Os meninos assentiram com a cabeça, apavorados, antes de sumirem morro abaixo, escoltados pelo segurança armado.

Isis respirou fundo e passou a mão nos cabelos cacheados, que estavam presos num coque alto. Ainda estava com o corpo quente da raiva — mas não era só isso.

Ela não podia deixar. Não ali. Não no pedaço dela.

Ali, o comando era dela, e ela fazia do jeito dela. A grana vinha, sim — dos corres, das cargas, do sistema que empurra e não dá escolha. Mas a diferença era que ela investia. Botava o dinheiro no esporte, no samba, na escola, no básico que o Estado não fazia chegar. As crianças da comunidade tinham um lugar na ONG dela, chamada Raízes do Morro. Aulas de música, boxe, reforço escolar, alimentação, atendimento psicológico. Tudo financiado por ela. Pelo crime, sim. Mas pelo cuidado também.

Isis sabia que era uma contradição ambulante. Mas era uma contradição que fazia mais pelo povo do que muito político engravatado.

— Tá tudo bem, Rainha? — perguntou Bê, braço direito dela, chegando com uma garrafinha d’água.

Ela pegou, bebeu um gole, passou o pano no rosto.

— Tô. Só de saco cheio. Criança demais querendo virar bandido cedo. — Ela olhou pro céu. — Ainda mais no meu terreno.

— Eles te admiram. Querem ser como você.

— Eles não sabem o que é ser como eu — respondeu ela, com um sorriso sem humor. — O preço disso aqui é alto, Bê. E eles nem começaram a pagar.

Ele não respondeu. Sabia que era verdade.

Isis era respeitada. Tinha o controle do morro inteiro, homens armados sob seu comando, olheiros espalhados pelas vielas, e influência política que ela mesma articulava na surdina. Mas o coração dela... esse, ela mantinha trancado. Sempre trancado.

Pelo menos era o que ela acreditava.

**

Na manhã seguinte, o sol mal tinha batido nas lajes quando ela desceu para a sede da ONG. A fachada era simples, mas viva: pintada com cores fortes, cheia de desenhos feitos pelas próprias crianças. No mural, fotos das festas, das oficinas, dos campeonatos de futebol, da feijoada comunitária do mês passado.

— Bom dia, tia Isis! — gritou um dos meninos, correndo com a mochila nas costas.

— Bom dia, pivete! Vai pra aula, hein?

Ela entrou na sala principal, onde já rolavam os preparativos para a nova turma de boxe.

E foi ali que ela viu ele.

Camisa preta justa no corpo definido, cabelo bagunçado, tatuagens discretas no braço. Estava colocando as luvas de treino numa das crianças, com um sorriso no rosto.

Era o novo professor de boxe que tinham indicado. Disseram que era bom. Disseram que vinha do interior. Disseram que era comprometido com o projeto social.

Mas não disseram que ele era daquele jeito.

— Quem é ele? — Isis perguntou baixo pra uma das coordenadoras.

— O nome dele é Theo. Começou hoje. Simpático, né?

Ela não respondeu. Só observou.

Tinha alguma coisa naquele homem que fez o estômago dela dar um nó. Não era só beleza. Era presença. Um tipo de firmeza disfarçada de tranquilidade. Como se ele estivesse confortável demais naquele ambiente que era, sim, social, mas também era território dela.

Ele a viu. E quando os olhos dos dois se encontraram, foi como se o tempo parasse por um segundo.

Theo sorriu. Um sorriso calmo. Quase debochado.

Isis estreitou os olhos.

Ali tinha coisa.

**

O que Isis não sabia — ainda — é que Theo não era só um professor de boxe.

Era policial. Infiltrado. Estava ali com uma missão: desarticular a estrutura do tráfico da favela e reunir provas sobre ela — a mulher mais temida do morro. A líder que ninguém tocava. Que a imprensa chamava de criminosa, mas o povo chamava de Rainha.

E o que ele não esperava... era que, em pouco tempo, seria ela quem ia desarmar ele.

Coração e tudo.

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