Após um furacão devastar sua cidade na Louisiana, Isabelle Laurent, uma mulher à beira do divórcio e do colapso emocional, encontra refúgio em uma base humanitária. Ela só queria silêncio. Um pouco de paz. E a chance de desaparecer entre destroços que não fossem os seus. Mas paz é a última coisa que encontra quando conhece Callum Fraser, um engenheiro civil escocês que carrega nas costas mais do que ferramentas de reconstrução — carrega fantasmas. Rígido, fechado, quase rude, Callum trabalha como se pudesse apagar com concreto o que perdeu. Entre vigas quebradas e muros erguidos, os dois descobrem que talvez, no meio do caos, ainda exista espaço para recomeçar. Mesmo quando tudo dentro de você parece irrecuperável. Mesmo quando o coração ainda treme como se outra tempestade estivesse a caminho. Porque às vezes, o amor não chega com flores. Chega com vento, com lama, com rachaduras. E ainda assim, ele fica.
Ler mais“Meu nome é Isabelle. Eu sei o que você está pensando — mais uma coitada procurando salvação entre escombros. Mas eu não vim salvar ninguém. Eu vim porque minha casa virou lama. Porque o silêncio em Belle Rive começou a me gritar. E porque... não sobrou nenhum lugar meu pra voltar.”
A van parou com um solavanco seco, e eu senti que, se mais alguma coisa sacudisse dentro de mim, talvez não sobrasse nada em pé.
Do lado de fora, o calor da Louisiana me acertou como um tapa: úmido, denso, impossível de ignorar. Respirei fundo — ou pelo menos tentei. O ar cheirava a desinfetante barato, café requentado e alguma coisa azeda que eu preferia não identificar.
“Saint Martine Community Relief Base,” dizia a faixa presa com fita no portão. Letras tortas, manchadas de chuva. Ninguém ali estava preocupado com estética. Só com sobrevivência.
A mulher da van — cujo nome eu já tinha esquecido — me entregou minha mochila e desejou boa sorte. Sorte. Sorri com a educação de quem cresceu para agradar e fechei o zíper até esmagar o tecido de uma blusa dentro. Tarde demais.
Atravessar aquele portão foi como entrar num mundo paralelo. Gente indo e vindo com pranchetas, galões de água, caixas de suprimentos. Crianças brincando perto de um gerador barulhento. Homens suados montando uma barraca que parecia grande demais para a pressa em que estavam. Ninguém notou minha chegada — e isso, de algum modo, foi um alívio.
Eu não queria ser vista. Só queria não sumir.
Fiquei parada alguns segundos, observando, até que um rapaz com colete laranja apontou para um prédio ao fundo.
“Alojam as mulheres naquele ginásio ali, senhora.”
“Obrigada,” murmurei, mesmo sem saber se ele ouviu. Minhas pernas começaram a andar antes que minha cabeça decidisse se era mesmo pra lá que eu queria ir.
No caminho, passei por uma fila de doações, por um par de olhos curiosos de uma adolescente que usava um vestido amassado e chinelos com corações. Ela sorriu pra mim. Eu não soube sorrir de volta.
O ginásio era abafado. Um teto alto, ventiladores presos em suportes improvisados, colchões no chão separados por cortinas improvisadas com lençóis e varais de metal. Mulheres sentadas, algumas conversando em espanhol, outras só encarando o nada. Uma criança dormia com uma boneca encardida no colo. Um rádio tocava música gospel muito baixo, como se tivesse medo de incomodar.
Deixei minha mochila num canto vazio e me sentei. E ali fiquei.
Por um tempo que não sei medir, só fiquei ali.
Talvez uma hora. Talvez dez minutos. Talvez desde Belle Rive.
Meu ex-marido dizia que eu dramatizava tudo.
“Você é intensa demais, Isabelle. Vê tragédia até onde não tem.”
Ele nunca viu uma casa virar lama.
Não literalmente, pelo menos. Quando o furacão passou, a cidade virou uma pintura borrada. Belle Rive deixou de ser Belle. O telhado caiu. As paredes cederam. A água levou o que restava do nosso armário de casamento, e por algum motivo bizarro, meu vestido de noiva sobreviveu. Encharcado, embolorado, mas ainda lá. Como se fosse a única coisa que se recusasse a partir.
Eu fui embora dois dias depois. Não porque não tinha mais casa, mas porque não tinha mais silêncio.
Quando tudo desmorona por fora, as pessoas finalmente olham pra você com empatia. Mas quando desmorona por dentro? Você vira exagerada. Amarga. Ingrata. Escolhi a base em Saint Martine porque era longe o bastante pra não ouvir ninguém dizer “pelo menos você tá viva”.
Às vezes, esse “pelo menos” dói mais que a perda.
Alguém me ofereceu uma garrafa d’água. A garrafa estava quente. A água também. Mesmo assim, bebi. Sentia areia na garganta desde Belle Rive.
“Você tá chegando hoje?”
A voz vinha de trás de uma cortina improvisada. Virei devagar. Uma mulher, talvez na casa dos trinta, cabelos ruivos presos num coque desleixado. Não era hostil. Nem simpática. Só… real.
Assenti.
“Boa sorte com os mosquitos,” ela disse, antes de desaparecer outra vez.
Suspirei. Não era hostil. Mas ainda era cedo pra confiar em alguém que parecia saber exatamente como aquilo tudo funcionava. E eu não sabia se queria me misturar. Talvez preferisse, por enquanto, ser só a estranha. A mulher sem história.
Mais tarde, depois de uma refeição que mal lembro o gosto, alguém me chamou pra ajudar com mantimentos. Eu disse sim porque não sabia como dizer não. Puxei caixas, suei, tropecei. Um dos caras me mandou levantar com as pernas, não com as costas. Agradeci. Ele não ouviu.
Foi quando eu vi ele.
De costas, empilhando sacos de cimento com a facilidade de quem não pensa no próprio peso. Camisa suada colada nas costas, braços marcados por sol e esforço. Silencioso. Rígido. Preciso. O tipo de homem que parece sempre medir o mundo em centímetros e falhas.
Ele virou o rosto um instante. E por um segundo, nossos olhos se cruzaram.
Não foi um momento mágico. Não teve música de fundo. Eu nem saberia descrever a cor dos olhos dele depois.
Mas algo nele… doeu.
Não como dor boa. Nem como lembrança. Doeu como uma intuição antiga. Como se meu corpo soubesse reconhecer outro corpo quebrado.
Abaixei o olhar antes que virasse pergunta.
Voltei pro ginásio com cheiro de suor e cimento nas mãos. As luzes estavam mais fracas. A noite havia caído e o rádio agora tocava uma música que minha avó cantava baixinho quando lavava roupa: uma canção triste em francês, que falava de amor e de guerra e de perdas que não se curavam.
Me enrolei num cobertor doado, que cheirava a lavanda e outras pessoas.
E pensei:
Eu não vim aqui pra me curar.
Nem pra recomeçar. Vim pra fugir.Só que até onde sei… não existe lugar do mundo onde a gente consiga fugir da gente mesma.
Meu nome é Isabelle.E se alguém me dissesse que um dia eu acordaria com cheiro de pão fresco, com uma chave na porta e um coração que não tremesse de medo, eu teria rido.Eu teria dito que essas coisas só acontecem nos livros que a gente lê quando é jovem demais para saber como o mundo pode ser cruel.Mas estou aqui.Eu sei o que você deve estar pensando — que essa é só mais uma história de quem perdeu tudo e encontrou redenção, como se fosse simples assim.Mas não é isso.Eu não fui salva por ninguém.Ninguém chegou com promessas de consertar tudo, ou com respostas prontas para as perguntas que eu carregava no peito.Eu só fui ficando.Um dia depois do outro, sem planos, sem certezas.Eu fui ficando mesmo quando tudo dentro de mim gritava para eu ir embora, encontrar outro canto onde não precisasse encarar a bagunça que sobrou de quem eu fui.E de repente, sem que eu percebesse, entendi que a vida nova não era um lugar aonde se chega de malas feitas e coração limpo.Era o caminho.E
Se alguém me contasse, um ano atrás, que eu acordaria num lugar como esse, teria rido. Mas ali estava eu, com o rosto afundado no travesseiro, ouvindo o som da vida acontecendo lá fora: crianças correndo, galinhas ciscando, o cheiro doce de pão fresco escapando pela janela.Levantei devagar. O sol entrava pelas cortinas cor de creme que June escolhera comigo. Na parede, o relógio antigo marcava pouco depois das seis. Vesti uma blusa clara e saí pela porta da frente, onde Callum me esperava sentado nos degraus.— Bom dia — disse ele, estendendo uma caneca de café.— Bom dia — respondi, sorrindo.Sentei ao lado dele, com a caneca entre as mãos. Dava pra ver tudo dali: a casa da June com as janelas abertas, a horta cheia de pés de tomate maduros, o galinheiro improvisado que agora parecia parte da paisagem.— Faz quanto tempo que você chegou aqui? — perguntei.— Quase um ano — disse ele. — Mas parece uma vida inteira.— Eu sinto o mesmo — falei.Ele me olhou com aquele jeito tranquilo qu
Acordei com a luz suave atravessando as cortinas. Por um instante, pensei que ainda fosse o dia do festival, que ainda haveria bancas no pátio, crianças correndo, música no rádio antigo. Mas a casa estava em silêncio, e o cheiro de pão fresco tinha sido substituído pelo aroma de madeira que já começava a perder o verniz.Sentei na beira da cama, passando os olhos por cada detalhe: o tapete colorido que Gracie me dera, a estante feita de caixotes que Deborah ajudara a instalar, as flores já um pouco murchas na janelinha da cozinha. Aquilo era meu. Tudo. Até o silêncio.Levantei devagar e fui até a porta. Quando abri, vi June parada no pátio, com um balde de tinta numa mão e uma expressão satisfeita.— O que você tá aprontando? — perguntei, bocejando.— Pintando minha porta — disse ela, erguendo o balde. — Decidi que branco era sem graça.— E que cor escolheu?— Verde-água — respondeu, séria. — Porque combina comigo.— E combina mesmo — falei.Ela sorriu e encostou o balde no chão.— E
Naquela manhã, acordei com o som de vozes animadas lá fora. Por um instante, pensei que estivesse sonhando. Mas quando abri a cortina, vi o pátio tomado por bancas coloridas, cordões de bandeirinhas dançando no vento e crianças correndo entre as mesas.Era o festival.Me vesti depressa, tentando conter o frio na barriga. Quando saí, June já estava na banca do café, ajeitando xícaras esmaltadas em fileiras perfeitas. O avental azul amarrado na cintura, o cabelo preso num coque alto.— Dormiu? — perguntou ela, fingindo severidade.— Tentei — respondi, rindo.Ela se aproximou e passou o braço pelo meu ombro.— Hoje é o nosso dia — disse, baixinho. — Ninguém vai estragar.— Eu sei — falei, com a voz embargada.A banca da geleia ficava bem em frente à do café. Deborah estava lá, conferindo etiquetas nos potes.— Não acredito que a gente conseguiu — murmurei, olhando em volta.— Eu acredito — disse ela, ajeitando um vidro. — Cada pessoa aqui fez isso acontecer.Callum surgiu carregando um c
Acordei antes do sol nascer. Por um instante, não soube onde estava. A claridade suave entrando pelas cortinas brancas, o silêncio absoluto… nada lembrava o contêiner apertado que fora meu quarto por tanto tempo.Demorei uns segundos até perceber: aquela era minha casa. Meu lugar.Me sentei na beira da cama, sentindo o coração bater devagar, como se também estivesse aprendendo a morar ali. O cheiro de madeira nova se misturava ao aroma doce da cesta de pães que Deborah deixara no dia anterior. Fiquei olhando o espaço à minha volta — tão simples, mas tão cheio de significado.Levantei devagar. Os pés descalços no piso frio me deram uma alegria estranha. Abri a porta e respirei o ar fresco da manhã. O céu estava num tom de azul suave que só durava poucos minutos. Foi ali, parada no degrau, que entendi: eu não precisava mais ter medo de acordar.Quando fui até o refeitório, June já estava lá, organizando caixotes com frutas e potes de geleia.— Bom dia, dona de casa nova — disse ela, fin
O céu amanheceu limpo, como se tivesse decidido celebrar com a gente. Quando saí do contêiner, o pátio fervilhava de gente carregando caixas, montando bancas, pregando cartazes coloridos nos postes improvisados.Deborah estava no meio da confusão, apontando para um grupo que desembalava toalhas de tecido.— A banca de geleias vai do lado da de bolos! — gritava, com a prancheta erguida. — E a do café fica perto da entrada, pra quem chegar sentir o cheiro logo!June surgiu do outro lado equilibrando duas placas escritas à mão: SUCO NATURAL e PÃO FRESCO. O cabelo preso num coque bagunçado, a testa suada, mas o sorriso iluminado.— Tá se divertindo? — perguntei, me aproximando.— Muito — respondeu ela. — E você ainda acha que isso não vai dar certo?— Acho que vai ser lindo — falei, com a voz embargada.Ela só me olhou e assentiu. Não precisava dizer mais nada.Enquanto as bancas iam tomando forma, Callum se aproximou com as chaves na mão. O coração disparou antes mesmo que ele dissesse q
Último capítulo