No fim da tarde, depois de horas contando caixas de sabão em pó e reorganizando prateleiras, meus ombros protestavam. Eu estava prestes a sentar no primeiro caixote vazio que encontrasse quando June apareceu, segurando duas garrafas d’água e um maço de papéis amarrotados.
“Tá inteira?” perguntou, entregando a água.
“Por pouco,” respondi, com um sorriso que nem eu esperava.
Ela se encostou na parede ao meu lado e suspirou. “Você já pensou em tomar um banho de verdade?”
A pergunta me pegou desprevenida. Eu a encarei, meio sem graça. “Aquele chuveiro no ginásio… conta?”
“Se você considera um jato gelado que pinga mais do que cai, até pode contar. Mas eu não conto,” disse, balançando a cabeça. “Tem um banheiro decente no contêiner administrativo. Eu consigo a chave de vez em quando.”
“E você quer que eu…?”
“Quero que você não fique cheirando a poeira e suor quando podia, pelo menos por um dia, lembrar que é humana,” disse ela, sem rodeios. “Vem.”
Eu quase disse não. Não queria parecer fraca ou dependente. Mas a perspectiva de água quente — ou ao menos morna — venceu qualquer orgulho. Então segui June até o contêiner, sentindo a estranha mistura de constrangimento e gratidão.
O banheiro era apertado, mas limpo. June pendurou a chave num gancho e apontou pro chuveiro.
“Tem toalha no armário. Quando terminar, só b**e na porta. Eu fico por perto.”
“Obrigada,” murmurei, mais baixo do que pretendia.
Ela me olhou por um segundo, como se quisesse dizer alguma coisa que desistiu de formular. Depois saiu, fechando a porta com cuidado.
Fiquei parada, encarando o espelho trincado. Minha imagem parecia a de uma estranha — o cabelo preso de qualquer jeito, o rosto cansado, a pele marcada de sol e poeira. Passei a mão pela bochecha, como se checando se era mesmo eu.
O chuveiro chiou antes de soltar água. Não era quente, mas tampouco era aquele fio gelado do ginásio. Conforme a água escorria pelos meus ombros, senti uma parte do peso sair, ainda que temporariamente. Fechei os olhos e respirei fundo. Pela primeira vez desde que cheguei, quase acreditei que estava limpa de mais do que só a sujeira.
Quando terminei, vesti roupas secas e amarrei o cabelo num coque frouxo. Passei a mão na nuca, surpresa com a leveza. Bati na porta. June apareceu em seguida, apoiada no batente.
“Melhor?”
“Bem melhor,” confessei.
Ela sorriu de canto, um daqueles sorrisos que parecem raros demais pra desperdiçar. “Então pronto. Vamos comer.”
O refeitório estava mais silencioso do que nos outros dias. Deborah mexia uma panela pequena no fogareiro portátil, e Gracie estava sentada na mesma cadeira de sempre, com a boneca encostada no ombro. Quando me viu, Deborah ergueu as sobrancelhas.
“Hoje resolveu se cuidar,” comentou.
“June me arrastou,” expliquei.
“Bom. Tem gente que acha que pode salvar o mundo fedendo. Eu prefiro começar cheirando a sabonete,” disse, entregando um prato fumegante.
Sentei na mesa perto da janela aberta. June ocupou o lugar à frente. Gracie nos olhou de soslaio, sem chegar mais perto. Era como se ela fizesse questão de lembrar que ainda não confiava em ninguém.
“Ela sempre fica aqui?” perguntei, apontando discretamente com o queixo.
“Quando não tem pra onde ir,” respondeu Deborah, sem virar. “Hoje a avó dela foi procurar documentos no que sobrou da casa. Pediu pra ficar de olho.”
“Ela parece… forte,” murmurei.
“Ela é,” disse Deborah. “As crianças sempre são, até alguém ensinar que não precisam mais ser.”
June apoiou os cotovelos na mesa. “E você? Já pensou no que vai fazer depois daqui?”
Eu abaixei o olhar pro prato, tentando formular uma resposta que não soasse patética.
“Não,” disse, por fim. “Ainda não.”
“Tudo bem,” disse ela, num tom surpreendentemente suave. “Ninguém aqui sabe. Alguns só fingem melhor.”
A simplicidade daquela frase me deu vontade de chorar, mas consegui engolir o nó na garganta. Eu não queria que ninguém sentisse pena de mim. Era pior do que qualquer solidão.
Depois do jantar, June se ofereceu pra me acompanhar até o ginásio. O céu já estava escuro, pontilhado de estrelas pequenas e teimosas. Eu não lembrava a última vez que tinha parado pra olhar o céu.
Enquanto caminhávamos, June comentou:
“Se quiser, amanhã pode me ajudar no almoxarifado. Eu tenho que reorganizar tudo antes do novo carregamento.”
“Claro,” disse, mais rápido do que pretendia.
Ela arqueou uma sobrancelha. “Você gosta mesmo de ter algo pra fazer.”
“Gosto. Me faz… esquecer.”
“Bom. Aqui você não vai ficar sem trabalho,” disse, com um meio sorriso.
Paramos na porta do ginásio. Por um segundo, ficamos em silêncio, observando as luzes tremeluzentes lá dentro.
“Obrigada pelo banho,” falei, finalmente.
“De nada,” respondeu. “Não conta pra todo mundo que sou boazinha.”
Eu ri, um som baixo que me surpreendeu.
“Seu segredo tá seguro.”
Ela balançou a cabeça, divertida. “Boa noite, Isabelle.”
“Boa noite.”
Quando entrei no ginásio, sentei no colchão e fiquei alguns minutos só ouvindo o rangido do ventilador. A água fria parecia ter lavado não apenas a poeira, mas alguma parte minha que eu não sabia que ainda existia.
Eu ainda não tinha um plano. Ainda não sabia quem eu era sem tudo que tinha perdido. Mas, naquela noite, pela primeira vez, pensei que talvez fosse possível começar de novo. Não como quem esquece. Mas como quem aprende a carregar a lembrança sem deixar que ela pese tanto.
E, por algum motivo, esse pensamento não me pareceu tão impossível quanto ontem.