Capítulo 7

O dia seguinte amanheceu abafado, como se o calor tivesse decidido ficar para sempre. Eu acordei antes do barulho dos outros colchões se mexendo. Fiquei um instante deitada, tentando lembrar onde estava. Já não era tão difícil reconhecer o teto alto do ginásio, o rangido do ventilador, o cheiro de lona e sabão. Ainda não era casa, mas já não parecia tão hostil.

Quando cheguei ao galpão, June estava ajoelhada no chão, cercada por caixas abertas. Ela olhou por cima do ombro e ergueu uma das etiquetas, como quem exibe um troféu.

“Você não vai acreditar no que encontrei.”

Me aproximei, curiosa. Ela apontou para uma pilha de pequenos pacotes coloridos. “Sabonetes de hotel. Desses que ninguém usa e acabam doados.”

“E isso é bom?” perguntei, contendo o riso.

“É ótimo,” disse ela, séria. “Metade do pátio tá cheirando a mofo. Vamos distribuir.”

A manhã passou num vai e vem de listas, caixas, pilhas de sabonetes e pacotes de absorventes. Eu descobri que June tinha um talento peculiar para arrumar tudo de modo tão eficiente que parecia que o espaço dobrava. Entre uma tarefa e outra, começamos a conversar de um jeito que parecia natural, como se a intimidade surgisse por inércia.

“Você sempre trabalhou com isso?” perguntei, enquanto lacrava uma caixa com fita.

“Ajuda humanitária?” Ela balançou a cabeça. “Eu trabalhava numa editora. Revisava manuscritos, essas coisas.”

Fiquei surpresa. “E por que largou?”

Ela puxou outra caixa para perto e respirou fundo antes de responder.

“Porque eu tinha a sensação de que minha vida estava… parada. Sabe quando parece que você só ocupa espaço?”

“Sei.”

June ergueu os olhos, me estudando com aquele jeito calmo que eu começava a entender.

“Eu achei que vir pra cá ia me fazer sentir útil,” continuou. “E faz, na maior parte do tempo. Mas também é difícil. Você vê gente que perdeu tudo. E percebe que às vezes você também perdeu, só não tinha coragem de admitir.”

Fiquei em silêncio. O jeito como ela dizia essas coisas — tão simples e tão verdadeiras — me fazia pensar que talvez fosse possível conversar sem ter medo de ser julgada.

“E você?” perguntou, depois de um instante. “Antes disso tudo… o que fazia?”

“Eu era professora,” contei, com a voz baixa. “História, ensino médio. Não era ruim. Mas também não era… nada.”

Ela assentiu, como se entendesse mais do que eu dizia.

“Então, pelo menos nisso, a gente se parece.”

Talvez se parecesse mesmo.

Perto do meio-dia, fomos ao refeitório ajudar Deborah a montar as bandejas. Quando entramos, ela estava no fundo, cortando legumes com movimentos precisos. Só ergueu o olhar rápido e disse:

“Cheguem logo. O caminhão novo vem hoje.”

June riu. “Bom dia pra você também.”

“Dia só vai ser bom se eu conseguir terminar isso antes que o sol fique insuportável,” retrucou Deborah, mas havia um tom quase divertido na voz dela. Quase.

Começamos a organizar as mesas e separar talheres. A cozinha fervia de calor. Eu amarrei o cabelo, tentando não pensar que meu rosto devia estar vermelho como um tomate. Deborah terminou de cortar os legumes e passou por mim, parando um segundo ao meu lado. Quando olhei, ela só disse:

“Você tem jeito pra isso.”

“Pra quê?”

Ela encolheu os ombros, enxugando a faca no pano. “Pra ficar. Tem gente que não aguenta três dias.”

Não soube o que responder. Então só concordei com um aceno pequeno.

Quando a fila começou, Gracie apareceu, com a boneca no colo e a expressão que nunca mudava muito. Ela se sentou no canto, o olhar atento a tudo. Eu percebi que, às vezes, ela não olhava as pessoas — olhava as mãos, como se tentasse entender o que cada gesto dizia.

Depois que a maioria já tinha se servido, fui levar algumas garrafas de água para as mesas. Quando passei por Gracie, ela desviou o olhar, mas não se encolheu como antes. Era um progresso minúsculo, mas suficiente pra me fazer sentir que talvez não fosse uma intrusa tão estranha.

Deborah reparou e soltou um comentário enquanto lavava a concha.

“Ela te observa,” disse, sem tirar os olhos da pia.

“Eu sei.”

“É bom. Quer dizer que você não faz ela querer fugir.”

Senti uma pontada de calor no peito. Não era exatamente alegria, mas algo que parecia quase familiar. Talvez fosse só o início de uma rotina que, devagar, começava a parecer menos insuportável.

Quando terminei, June me esperava na porta com duas latas de refrigerante.

“Presente,” disse, entregando uma.

“Obrigada.”

“Hoje você trabalhou por três.”

“E você por cinco.”

Ela sorriu, e pela primeira vez percebi que tinha covinhas quase imperceptíveis quando relaxava a expressão. Era estranho pensar que, dias atrás, eu não sabia nem o nome dela.

“Você vai ficar no ginásio mais tempo?” perguntou, depois de um gole.

“Por enquanto, sim.”

“Se quiser… depois de alguns dias, pode dormir no meu alojamento. Não é nada demais, mas tem menos gente.”

Fiquei tão surpresa que precisei de um instante pra responder.

“Obrigada,” disse, baixinho. “Eu… eu vejo depois.”

“Sem pressa,” disse ela, como se soubesse que eu precisava do meu tempo.

Naquela tarde, o calor foi ficando tão denso que parecia que o ar pesava no peito. Trabalhamos até o sol começar a baixar. Quando o pátio ficou silencioso, sentei num caixote e respirei fundo. Eu ainda não sabia o que viria depois. Mas, naquele momento, pela primeira vez, isso não me paralisava.

June passou por mim e parou, apoiando uma caixa no quadril.

“Você devia anotar o que sente,” disse ela de repente. “Quando tudo isso acabar, vai esquecer detalhes.”

“Anotar?”

“Diário, caderno, guardanapo… qualquer coisa.”

Pensei nisso enquanto observava Deborah fechar as portas do refeitório e Gracie sair de fininho atrás dela. Talvez fosse bom escrever. Eu sempre tinha sido melhor com palavras no papel do que em voz alta.

Quando levantei pra ir embora, June falou, sem virar:

“Até amanhã, Isabelle.”

“Até.”

E, estranhamente, aquela despedida simples me soou mais próxima de casa do que qualquer coisa que eu tinha ouvido nos últimos meses.

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