O terceiro dia começou com um céu opaco, daquele tom de branco que promete calor antes do meio-dia. Eu tinha dormido melhor, embora ainda acordasse com aquela sensação de que tudo era provisório — até o ar parecia emprestado.
No galpão, June já organizava sacos de arroz e revisava etiquetas. Eu me ofereci para ajudar, mas ela me mandou ao refeitório. “Deborah vai precisar de alguém pra dar uma mão hoje. O caminhão chegou tarde e não tem ninguém descansado o bastante pra aguentar o turno todo.”
O refeitório ainda estava quieto quando entrei. Deborah estava de costas, lavando panelas maiores do que eu mesma. O vapor subia em espirais preguiçosas. Por um instante, hesitei. Havia algo naquela mulher que me intimidava — não por ser rude, mas por parecer enxergar muito além do que eu conseguia esconder.
Ela virou devagar, segurando uma concha. Me mediu de cima a baixo sem mudar de expressão.
“Veio ajudar?” perguntou, sem rodeios.
“Se precisar.”
“Preciso,” disse, como se já soubesse a resposta antes de perguntar. “Pode começar secando essas louças. Depois vai ter que separar os legumes. Não inventa de reclamar, que não tenho paciência.”
Assenti, pegando um pano. Enquanto eu secava uma montanha de pratos, Deborah começou a cantar baixinho — uma melodia que eu não conhecia, mas que tinha alguma coisa de antigo, como se pertencesse a outro tempo. A voz dela enchia o espaço de um jeito que nenhum rádio seria capaz.
“Você cozinha?” perguntou depois de um tempo, sem olhar pra mim.
“Mais ou menos.”
“Mais ou menos quer dizer o quê?”
“Quer dizer que eu nunca precisei muito,” admiti, sentindo o rosto esquentar.
Ela soltou um som que parecia um riso contido. “Pois agora vai precisar. Aqui todo mundo aprende.”
A pilha de pratos foi diminuindo devagar. Eu não sabia dizer se me sentia útil ou só exausta. Talvez as duas coisas.
Quando terminei, ela me entregou uma tábua e uma faca cega.
“Corta essas cenouras,” ordenou. “Não se preocupe em fazer bonito. Só não corte seus dedos.”
Obedeci, concentrada na tarefa como se aquilo fosse o trabalho mais importante do mundo. Era mais fácil pensar no ritmo da faca do que em tudo o que me faltava. Mais fácil focar no cheiro de legumes do que no vazio que ainda se agarrava a mim.
Depois de um tempo, ouvi passos pequenos entrando no refeitório. Ergui os olhos e vi Gracie. Ela carregava a boneca, como sempre. Ficou parada perto da porta, observando.
Deborah não precisou olhar para perceber. “Senta aí, menina,” disse num tom que não aceitava discussão. “Tá com fome?”
Gracie balançou a cabeça, mas aproximou-se devagar, escolhendo uma cadeira no canto. Ficou ali, sem dizer nada, abraçada à boneca. Por um momento, nossos olhares se encontraram, e eu tive vontade de sorrir. Mas não fiz. Achei que sorrir cedo demais podia assustá-la.
Deborah terminou de mexer uma panela e se virou pra mim. “Você tem jeito de quem nunca precisou se ocupar das coisas básicas,” disse, sem julgamento, só constatação. “Mas o mundo fica mais suportável quando a gente tem algo pra picar ou limpar.”
“Eu estou começando a perceber.”
“Vai perceber mais,” disse, entregando outra porção de cenouras. “Aqui ninguém fica só esperando. É a espera que acaba com a gente.”
Olhei para Gracie, que balançava a perna de leve, sem erguer os olhos. Pensei em como devia ser assustador ter só nove anos e não saber onde era casa. Talvez, no fundo, eu não estivesse tão distante dela quanto parecia.
“Ela fica aqui com frequência?” arrisquei.
“Quando não tem pra onde ir, fica,” respondeu Deborah, pegando um pano pra enxugar as mãos. “A gente se acostuma. Crianças têm olhos bons pra saber quem não vai fazer mal.”
Não soube o que responder. Então voltei a cortar as cenouras, deixando que o som ritmado da faca preenchesse o silêncio.
Perto do meio-dia, o refeitório começou a encher. Deborah assumiu o balcão como uma general. As pessoas vinham em filas longas, algumas falando alto, outras só baixando a cabeça. Eu fiquei atrás, ajudando a repor bandejas e garrafas de água. Às vezes alguém agradecia. Outras vezes ninguém dizia nada.
Quando a fila diminuiu, consegui respirar. Deborah se virou pra mim e me ofereceu um prato. “Senta. Você trabalhou o suficiente pra comer de graça.”
Sentei numa cadeira perto da janela, o prato quente entre as mãos. Pela primeira vez desde que chegara, senti um gosto que não era só sobrevivência. Era comida feita com atenção, mesmo que Deborah não dissesse isso em voz alta.
Gracie continuava na mesma cadeira, a boneca no colo. Quando meus olhos encontraram os dela, dessa vez eu arrisquei um sorriso pequeno. Ela não retribuiu, mas também não desviou. Talvez isso já fosse muito.
Quando terminei de comer, fui lavar e depois guardar meu prato. Deborah me olhou com aquele jeito que não pedia licença pra entrar nos pensamentos dos outros.
“Você tem cara de quem carrega mais peso por dentro do que fora,” disse, como se fosse só um comentário sobre o clima.
“Não sei o que fazer com isso,” respondi, antes de pensar.
Ela assentiu, enxugando o balcão. “Vai descobrir. Se não descobrir, pelo menos vai aprender a conviver.”
E virou-se pra próxima panela, como se aquela conversa não fosse nada demais.
No pátio, o sol já ardia alto. Vi Nico conversando com dois voluntários perto de uma caminhonete. Callum estava mais afastado, empilhando vigas com a paciência de quem não tem pressa de ir embora. Por um instante, pensei em como ele parecia deslocado ali, tão estrangeiro e, ao mesmo tempo, tão parte de tudo.
Eu não fiquei olhando muito tempo. Não queria que ninguém — nem ele — achasse que eu tinha alguma expectativa.
Voltei ao galpão, onde June revisava planilhas com uma caneta roxa. Quando me viu, ergueu uma sobrancelha.
“Sobreviveu à Deborah?”
“Por enquanto,” murmurei.
“Ela parece brava, mas te dar comida é o jeito dela de dizer que aprova.”
Senti uma pontada estranha no peito. Talvez fosse alívio. Talvez fosse só a primeira sensação boa em dias.
O resto da tarde passou em silêncio confortável. Enquanto separava caixas de produtos de higiene, percebi que meus pensamentos não estavam tão barulhentos quanto antes. Eu ainda sentia falta de tudo que perdi, mas pela primeira vez, aquilo não me definia. Eu era mais do que uma mulher que tinha sido deixada para trás. Eu era alguém que podia ser útil.
Quando o sol começou a cair, sentei um instante na beira do pátio, respirando fundo. Deborah passou por mim carregando uma sacola e, sem parar, disse apenas:
“Volta amanhã para ajudar.”
Era uma ordem. Mas também soava, de algum jeito, como um convite.
E eu soube que voltaria.