A primeira manhã na base parecia uma extensão da noite — quente, abafada, tão pesada que eu tinha certeza de que o sol nascia só por obrigação. Eu acordei antes de todo mundo, ou pelo menos antes de ouvir qualquer voz. O rádio estava desligado. O ventilador rodava devagar demais pra fazer diferença.
Sentei no colchão emprestado e fiquei olhando para o teto manchado, tentando me lembrar por que eu ainda estava ali. Não por que eu tinha vindo, mas por que não tinha ido embora assim que coloquei os pés naquele chão úmido de suor e promessas quebradas.
Talvez porque eu não soubesse mais aonde voltar.
Ou talvez porque, de algum jeito, ficar fosse mais fácil que admitir que eu não tinha nada — nem casa, nem casamento, nem coragem de começar de novo.
Passei as mãos pelos cabelos, que grudavam na nuca. Eu devia procurar um banheiro, uma xícara de café, qualquer coisa que se parecesse com rotina. Mas fiquei ali, com a coluna doendo e o coração ainda pior.
Quando ergui o olhar, percebi que não estava sozinha.
Ela estava parada a alguns metros de distância, encostada numa das divisórias improvisadas, segurando duas canecas de plástico. Não me olhava exatamente. Observava o nada, como quem pensa antes de decidir se vale a pena puxar conversa.
Eu não sabia o nome dela. Só lembrava dos cabelos ruivos presos num coque que parecia pronto pra desmanchar. E do jeito como tinha dito boa sorte com os mosquitos, sem nem erguer a voz.
Dessa vez, ela respirou fundo antes de falar comigo.
“Você acorda cedo.”
A frase não foi bem um convite. Nem um julgamento. Foi só uma constatação, como se dissesse que o dia estava quente ou que o mundo, de modo geral, era difícil demais.
“Não consegui dormir direito,” respondi, minha voz mais rouca do que eu esperava.
Ela assentiu, como se entendesse. Então se aproximou e estendeu uma das canecas.
“Café,” explicou. “Se é que isso aqui pode ser chamado assim.”
Eu peguei. O líquido estava morno, meio aguado, mas tinha cheiro de alguma coisa conhecida. Alguma coisa que lembrava manhãs menos complicadas.
“Obrigada.”
Ela deu de ombros. Bebeu um gole do próprio café e desviou os olhos para o corredor.
“Primeira vez em um abrigo?”
“Primeira vez em… tudo isso,” admiti.
Se fosse outra pessoa, talvez eu tivesse mentido. Mas havia nela uma ausência de pressa, de curiosidade invasiva. Era como se eu pudesse dizer qualquer coisa e ela não fosse reagir com pena ou interesse excessivo.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, olhou de novo pra mim.
“Eu sou June.”
A voz dela era firme, mas não dura. Como se já tivesse dito aquele nome muitas vezes nos últimos dias, repetindo uma parte de si que ainda lembrava quem era.
“Isabelle.”
“Isa ou Isabelle?” perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Pensei nisso um instante. Ninguém me chamava de Isa desde que meu casamento começou a desandar. Virou um apelido que doía, sem que eu soubesse exatamente por quê.
“Isabelle,” decidi.
June sorriu, quase imperceptível.
“Tá bem.”
Ela se virou como se fosse embora, mas parou no meio do movimento. Me estudou com atenção que não era desconfortável, só cuidadosa.
“Você parece… jovem e inteira,” disse, escolhendo as palavras com cuidado. “Quero dizer, não tá machucada. Nem grávida. Nem com febre. A gente sempre precisa de mais braços. Se quiser… tem espaço pra voluntária.”
Eu baixei o olhar para minhas mãos, onde o café tremia um pouco. Eu não tinha certeza se conseguia ajudar alguém. Eu mal conseguia me manter de pé. Mas havia algo na maneira como ela falava que soava menos como convite e mais como… oportunidade. Não de redenção. Só de ocupação. De não pensar tanto.
“Eu… eu não sei fazer muita coisa,” murmurei.
“Eu também não,” ela respondeu, com um sorriso cansado. “Aqui a gente faz de tudo um pouco — às vezes é cuidar de gente, outras é carregar caixa. Se vira do jeito que dá.”
Houve uma pausa. June se aproximou um passo e abaixou a voz.
“Ficar parada aqui dentro só faz o barulho na cabeça piorar. Confia em mim.”
Eu respirei fundo, sentindo o peito doer com uma pontada de medo — ou quem sabe de alívio. Não tinha certeza.
“Tá bem,” falei por fim. “O que eu faço?”
O sorriso dela dessa vez foi inteiro, ainda que cansado.
“Primeiro, termina esse café horroroso. Depois, a gente vai até o galpão.”
O galpão ficava no outro lado do pátio, num prédio que talvez tivesse sido uma quadra de esportes. Agora era um depósito de doações empilhadas até o teto. Caixas, sacos, latas, colchões enrolados. Tanta coisa que parecia impossível qualquer pessoa precisar daquilo tudo e, ao mesmo tempo, tão pouco diante do que se perdera.
June me explicou onde ficavam as listas, quem controlava a entrada e saída dos mantimentos. Tudo num tom prático, sem rodeios. Às vezes, parava para cumprimentar alguém. Ninguém parecia estranhar que ela me trouxesse junto. Talvez ali todo mundo fosse estranho de alguma forma.
Eu segurava uma prancheta que tremia de leve na minha mão suada. June percebeu, mas não comentou. Só me entregou um elástico de cabelo, como se fosse um gesto automático.
“Você vai suar,” disse, e por um instante soou quase maternal. “Prende isso aí.”
Prendi. E, pela primeira vez desde que saí de Belle Rive, senti que talvez não fosse invisível.
Começamos a separar caixas de comida. O som do plástico e do papelão sendo rasgado ocupava o espaço dentro da minha cabeça onde normalmente só havia perguntas. Foi melhor assim.
“Você é de onde?” June perguntou depois de um tempo.
“Belle Rive.”
Ela ergueu uma sobrancelha.
“A cidade que virou notícia. Todo mundo aqui fala dela.”
“É,” murmurei, tentando não pensar na lama cobrindo meu quintal, no vestido de noiva encharcado, na vida que parecia ter afundado comigo. “Virou notícia.”
Ela não insistiu. Em vez disso, estendeu uma caixa para mim e disse, com aquela calma estranha:
“Bem-vinda, Isabelle.”
E foi nesse instante — com as mãos sujas de poeira e o peito ainda cheio de coisas que eu não sabia nomear — que percebi que, apesar de tudo, eu ainda estava viva.
E, talvez, isso fosse o começo de alguma coisa.