Mila Dervishi passou grande parte da vida tentando escapar do peso das tradições familiares. Filha de imigrantes albaneses, cresceu na Itália, criada pela avó Liridona, uma mulher severa e cheia de silêncios sobre o passado. Quando Liridona morre, Mila acredita que finalmente poderá seguir adiante — até descobrir que herdou uma antiga propriedade em Berat, que sempre ouviu ser amaldiçoada. Determinada a vender a casa o quanto antes, Mila retorna à Albânia pela primeira vez desde a infância. Mas nada é tão simples quanto imaginou. A residência, uma construção de pedra branca do período otomano, parece pulsar memórias que ninguém quer contar. O advogado sugere que ela permaneça ali por um mês para resolver documentos. Nesse tempo, Mila conhece Blerim Hoxha, o restaurador contratado para avaliar os danos estruturais. Blerim é introspectivo, mas curioso sobre o que a trouxe de volta. Entre paredes descascadas e móveis cobertos de poeira, os dois descobrem fragmentos de histórias — cartas não enviadas, fotografias antigas e rumores sobre o desaparecimento da mãe de Mila. Cada pista aproxima Mila de uma verdade desconfortável: talvez tudo que acreditava sobre sua família fosse apenas uma versão conveniente. Dividida entre o desejo de vender e a necessidade de compreender, Mila confronta dilemas que nunca pensou enfrentar: Pode uma casa carregar a culpa e a redenção de gerações? O que significa pertencer a um lugar que sempre foi sinônimo de dor? Enquanto as paredes se restauram, Mila se vê envolvida em um romance inesperado com Blerim. Juntos, precisam decidir se alguns segredos devem permanecer ocultos ou se deixar ir é o primeiro passo para se libertar.
Leer másA correspondência estava onde sempre ficava: embaixo do tapete da porta, dobrada como um segredo. Mila quase não a viu — teria passado direto, como tantas outras vezes, se não fosse pelo embrulho pardo preso com barbante e o carimbo estrangeiro.
Ela o pegou devagar, como se algo pudesse explodir ali dentro. Tinha o nome da avó impresso no canto: Liridona Dervishi. E logo abaixo, o dela, com todas as letras do sobrenome estendidas como um lembrete de quem ela era — ou de quem tentava não ser.
Fechou a porta do apartamento com o ombro e atravessou a sala com os sapatos ainda nos pés. Jogou as chaves em cima da pilha de livros na mesa da cozinha. O barulho foi seco, como um ponto final.
Sentou-se. Respirou. Abriu.
Dentro, uma carta, três papéis oficiais com um brasão estranho e uma cópia amarelada da planta de uma casa.
“Informamos que, conforme testamento registrado, a senhora Mila Dervishi é a única herdeira da propriedade localizada na Rua e Qetësisë, bairro Mangalem, Berat, Albânia.”
“Recomenda-se que compareça pessoalmente para inventário, identificação de bens e assinatura de transferência.”
Ela leu a palavra “herdeira” três vezes.
Depois, a palavra “Berat”.
Então, a planta da casa — feita à mão, linhas trêmulas, desenhos de cômodos que pareciam nunca ter visto luz. Uma marca vermelha no centro dizia: “Dhoma kryesore”. Sala principal.
O nome trouxe um gosto metálico à boca. Berat. A cidade onde sua avó nasceu. Onde sua mãe viveu até desaparecer. Onde tudo que era feio, velho ou não dito da história da sua família parecia ter sido enterrado — ou trancado.
Ela largou os papéis sobre a mesa e ficou ali, parada, como se sua vida tivesse tropeçado em algo invisível.
Naquela noite, ela não dormiu.
Abriu o notebook. Pesquisou fotos da cidade — “Berat + casa Dervishi + Mangalem”.
Nada.
Depois: “casa amaldiçoada Berat”.
Resultados demais.
Havia fóruns obscuros, postagens antigas de moradores locais contando histórias de luzes que acendiam sozinhas, de um homem que desapareceu no porão da casa nos anos 80, de crianças que evitavam passar pela rua à noite. Um blog dizia que ninguém ficava ali por mais de três noites. Outro mencionava a casa “branca e torta onde o sol não entrava”.
A casa da avó.
A casa que, agora, era dela.
No dia seguinte, Mila reservou um quarto numa pensão no centro histórico. Duas estrelas. Café da manhã incluso. Cama de solteiro. Se tudo corresse como esperava, não ficaria mais de uma semana.
Berat era distante, mas não inalcançável. Três horas de voo até Tirana, depois mais duas de carro pelas montanhas. Ela hesitou ao comprar a passagem — não pelo valor, mas pela sensação incômoda de estar voltando para um lugar que nunca conheceu de verdade.
Quando criança, a avó falava da cidade com frases cortadas e palavras cuspidas como espinhos: “Nunca olhe pra trás”, “Quem parte não volta” ou “A casa ficou com os mortos”.
Agora, tudo isso parecia menos metáfora e mais aviso.
O táxi estacionou na entrada da pensão no fim da tarde. O sol já começava a baixar, refletindo nas janelas das casas empilhadas sobre a colina, como olhos assistindo à sua chegada.
A recepcionista sorriu com simpatia ensaiada, entregou a chave e apontou as escadas. Mila subiu carregando a mala pequena, evitando os retratos antigos nas paredes do corredor — mulheres de olhos duros, como se a julgassem por estar ali.
No quarto, a colcha era de crochê e o lençol, áspero. Mila se deitou com as roupas ainda no corpo. Não dormiu. De novo.
Na manhã seguinte, caminhou até a rua indicada nos documentos.
A Rua e Qetësisë. Rua da Tranquilidade. Uma ironia.
A casa estava lá. Isolada, torta, com janelas como cicatrizes. A madeira da porta principal estava rachada. A tinta, gasta em tons de cinza e vermelho-escuro, escorria como sangue seco.
Ela encostou a mão na maçaneta e sentiu o frio do metal passar pela pele até os ossos. Um rangido respondeu quando empurrou a porta.
A casa cheirava a poeira, ferro e alguma coisa que não sabia nomear — algo velho, engarrafado, como uma lembrança podre.
Havia móveis cobertos por lençóis brancos, teias de aranha nos cantos do teto, e um espelho rachado no corredor.
Ela deu dois passos e parou.
Não sabia por que, mas teve certeza: alguém já estivera ali depois da avó.
Sentiu um arrepio subir pelas costas.
Talvez fosse o vento.
Talvez não.
Na volta, parou numa pequena construção ao lado — parecia um anexo ou oficina. Um homem de calça manchada de tinta e camisa branca dobrada até os cotovelos estava agachado, avaliando tábuas antigas com olhos concentrados.
Ele levantou o rosto ao ouvi-la se aproximar.
Pelo menos dez anos mais velho, pele dourada de sol, barba curta e olhos muito claros — tão claros que pareciam não combinar com o restante.
— Você é Mila Dervishi? — perguntou, antes que ela dissesse qualquer coisa.
Ela assentiu, surpresa.
— Sou Blerim. Fui chamado pra avaliar a estrutura da casa.
Mila olhou de volta para a construção.
— E?
Ele deu de ombros, encostando-se na parede de pedra.
— Tem alma. Mas tá quase afundando.
— Dá pra deixar habitável?
— Depende do que você chama de habitável.
— Quero passar uns dias lá. Organizar o que for preciso. Depois vendo.
Blerim a encarou com uma expressão difícil de ler — como quem sabe algo que não pode dizer.
— Posso limpar dois cômodos. Tirar os entulhos maiores. Consertar o básico.
Ela assentiu, decidida.
— Então faça isso.
Ele virou de costas, mas antes de entrar na oficina, disse:
— Não vá pra lá sozinha antes disso.
— Por quê? — Mila perguntou, com um sorriso irônico. — A casa é assombrada?
— Não. — ele respondeu, sem olhar para trás. — A casa está acordando.
A noite chegou com o céu limpo, estrelas brotando devagar como se também quisessem participar da festa.As luzes penduradas entre as árvores tremeluziam sobre as mesas cheias de comida, flores e histórias prontas para serem contadas.Mila caminhava entre os convidados com um pano de prato no ombro, um sorriso largo no rosto e um brilho nos olhos que nenhuma maquiagem seria capaz de reproduzir.Blerim, ao seu lado, distribuía vinho, riso e simpatia com a mesma tranquilidade de quem sempre pertenceu ali.— Olha essa mesa, Mila! — disse Valdete, ajeitando uma travessa de queijo. — Isso aqui é o que acontece quando a gente mistura mãos boas e corações inteiros.— Isso aqui é amor em forma de pão e vinho — respondeu Mila, rindo.— E esperança — completou Valdete, apertando o ombro dela. — Muita esperança.Toto deslizava entre as pernas dos vizinhos como anfitrião oficial.Crianças corriam entre os bancos, o cheiro da comida se misturava ao da terra úmida, e a casa — ah, a casa — parecia ex
Os dias seguintes correram num ritmo calmo, como se até o tempo tivesse aprendido a respeitar o silêncio bom da casa.A reforma do galpão avançava.Blerim, com o avental manchado de tinta e madeira, passava as manhãs entre pregos e martelo, falando sozinho com as prateleiras como se fossem velhas conhecidas.Mila o observava pela janela da cozinha enquanto passava pano na mesa ou organizava potes de vidro recém-esterilizados.Às vezes anotava algo no caderno de rascunhos.Às vezes só sorria.Naquela manhã, o som das ferramentas deu lugar ao farfalhar das plantas balançando no vento.Blerim surgiu à porta da cozinha, com um pedaço de papel na mão.— Convite oficial — disse ele, estendendo o papel.— Convite?Ela pegou e leu em voz alta:— “Convidamos todos os corações bons desta vila para celebrar o que foi reconstruído com silêncio, paciência e café.”— É assim que você quer chamar o jantar?— Foi Valdete quem escreveu. — Ele riu. — Disse que estava na hora de chamar as coisas pelo no
Na manhã seguinte, o barulho da serra acordou Mila antes do despertador.Ela ficou alguns segundos deitada, ouvindo aquele som ritmado vindo do fundo da casa.Em qualquer outro tempo, teria soado como incômodo.Mas agora, era música.Era prova de que ele estava ali — de que aquela casa já não era só dela.Vestiu um suéter grosso, prendeu o cabelo e foi até a cozinha.Toto seguia seus passos, abanando o rabo com ansiedade.Na porta dos fundos, Blerim estava inclinado sobre uma das tábuas antigas, medindo com precisão.O sol da manhã batia nos cabelos dele, iluminando o pó de madeira que se acumulava nos ombros.— Bom dia — disse Mila, encostando no batente.Ele ergueu o rosto e sorriu.— Bom dia, escritora.— Isso tudo vai virar a nova entrada?— Vai. — Ele passou a mão no canto do batente. — Quando a gente abrir essa parede, o quintal vai se ligar à oficina. Sem mais divisórias.— Parece perfeito.— Eu quero que tudo seja parte da mesma coisa. — A voz dele saiu firme. — Que não exista
Na manhã seguinte, Mila acordou antes do sol.Ficou alguns minutos deitada, ouvindo o silêncio que só as casas antigas têm — um silêncio que não era vazio, mas cheio de pequenas memórias que pareciam se aninhar nos cantos.Blerim dormia ao lado, a respiração tranquila.Toto estava enroscado no tapete perto da cama, como um guardião cansado.Tudo parecia exatamente como devia ser.Quando levantou, foi até o canto da sala onde havia guardado as lembranças que encontrara no porão.Abriu uma das caixas com cuidado. Dentro, havia papéis antigos, alguns retalhos de tecido, anotações que a mãe fizera num idioma que Mila não conhecia bem.Ela sentou no chão da sala, o sol começando a entrar pelas frestas, e passou um tempo olhando cada objeto.Dessa vez, não havia nó na garganta.Só gratidão.Mais tarde, Blerim apareceu na porta, ainda sonolento, e parou, observando.— Tá fazendo inventário? — perguntou, coçando os olhos.— Tô decidindo o que vai ficar à vista. — Ela sorriu. — E o que vai pro
Arben sentou-se na poltrona mais próxima da lareira.Blerim ofereceu café, mas ele recusou com um aceno gentil.— Eu só quero conversar um pouco — disse ele, olhando para as mãos. — Se você permitir.Mila respirou fundo.Sentou-se no sofá, com as mãos entrelaçadas no colo.— Eu quero ouvir. — Sua voz saiu firme, embora o coração parecesse pequeno dentro do peito. — Eu sempre quis entender.Arben levantou os olhos e sorriu, um sorriso gasto pelo tempo, mas ainda cheio de ternura.— Sua mãe… — começou ele, como quem procura a palavra certa — era uma mulher muito mais forte do que ela mesma acreditava. E muito mais assustada do que deixava transparecer.Mila sentiu os olhos arderem.Blerim se aproximou em silêncio e se sentou ao lado dela, a mão pousando em seu joelho — um lembrete suave de que ela não estava sozinha.— Eu conheci Emine antes dela vir morar aqui. — Arben continuou, a voz baixa, como se conversasse com fantasmas. — Ela trabalhava na biblioteca de Tirana. Era jovem, cheia
O domingo amanheceu com o cheiro de café e pão fresco invadindo cada canto da casa.Mila acordou devagar, espreguiçando-se debaixo do cobertor.A luz entrava suave pela janela, como se até o sol tivesse decidido descansar um pouco naquele dia.Blerim já estava na cozinha, assobiando uma melodia que ela não conhecia.Toto, encolhido num canto, acompanhava tudo com o olhar atento — como se quisesse garantir que o café ficaria do jeito certo.— Bom dia — disse Mila, passando os braços pelos ombros dele.— Bom dia. — Ele virou o rosto e beijou a têmpora dela. — Dormiu bem?— Melhor impossível.— Então tá tudo como devia estar.Ela se encostou à bancada e ficou observando enquanto ele cortava o pão.Era curioso como aqueles gestos simples — pôr água pra ferver, separar o queijo — tinham se tornado quase sagrados.Mais que rotina: eram prova de que estavam ali, juntos, vivendo uma vida escolhida.Tomaram café na varanda, olhando o quintal úmido de orvalho.O silêncio era tão confortável que
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