Ela aprendeu a ser impecável. A ser bela. A ser dele. Melina Duarte, 34 anos, viveu nas sombras de um amor que a moldou, a feriu e a tornou fria. Ao lado de Miguel Torres — um homem poderoso, mais velho, manipulador — ela aprendeu que submissão pode parecer segurança... até que a dor se torna insuportável. Mas nada prepara Miguel para o momento em que sua “obra-prima” decide se libertar. Quando Kauan Silva cruza seu caminho — um ex-policial tatuado, debochado e leal apenas ao que acredita — Melina começa a questionar tudo. Não o amor. Mas o que realmente é liberdade. Entre o poder, o desejo e o perigo, Melina terá que escolher: voltar a ser moldada… ou incendiar o mundo com as próprias mãos.
Leer másA primeira lição que ela aprendeu foi o silêncio.
Melina sentava-se à mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mãos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisível, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estômago estava revirado. Obediência era amor, ele dizia. E amor era sacrifício. Ela repetia isso como um mantra, noite após noite, até que parou de ouvir a própria voz.
Naquela manhã, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero — salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma história que não era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questioná-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.
Miguel odiava desobediência. E Melina era uma aluna exemplar.
Desceu as escadas da mansão com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz — dizia que era música de homens inteligentes. O cheiro de café recém-passado flutuava no ar, misturado ao perfume caro que ele usava: âmbar, couro e algo levemente metálico.
Ela o encontrou sentado, camisa branca impecável, mangas dobradas, dedos tamborilando lentamente no braço do sofá. Não sorriu ao vê-la. Nunca sorria. Apenas acenou com o queixo para que ela se aproximasse.
— Você atrasou — disse ele, sem tirar os olhos da xícara de café.
— O motorista se perdeu no desvio da avenida nova — respondeu, baixo, como se sua própria voz a punisse por tentar se justificar.
Ele a olhou, finalmente. Aqueles olhos castanhos escuros, duros, como rochas molhadas por tempestades.
— Isso não é desculpa. Se você fosse importante o suficiente, ele teria chegado a tempo.
Silêncio. Melina apenas assentiu. Sentou-se na poltrona à frente, mantendo a postura impecável. Sabia exatamente como deveria parecer: frágil, mas não burra. Bonita, mas não vulgar. Inteligente, mas não desafiadora.
— Você vai ao jantar com os espanhóis hoje à noite — Miguel avisou, tomando um gole do café.
Melina hesitou. Havia outra reunião, uma que ela própria organizara com as mulheres da comunidade da zona norte, para distribuir suprimentos e recrutar discretamente mais colaboradoras para sua rede. Era algo pequeno, mas importante. Algo que ela mesma havia construído, longe dos olhos dele.
— Pensei que você iria com o Ruan — disse, medindo o tom.
O som da xícara sendo colocada com força demais sobre o pires a fez estremecer.
— Ruan não causa impacto. Você, sim. Quero você do meu lado.
E lá estava: o "quero". Nunca foi "gostaria", "preciso", ou "aceitaria". Sempre uma ordem disfarçada de afeto. Miguel a queria como seu troféu — a mulher bela, silenciosa e obediente ao lado do traficante refinado. Um símbolo de poder.
Ela não respondeu de imediato. Uma parte dela queria explodir. Gritar. Dizer que tinha outras prioridades. Mas então, os olhos dele se estreitaram — e ela lembrou. Daquela vez no quarto, o vidro quebrado, a porta trancada, os hematomas em lugares escondidos. Lembrou da dor. Do gosto de sangue na boca. Da solidão.
— Está bem. Irei — disse, e seus olhos pareceram se desligar.
Miguel sorriu, satisfeito, e voltou ao jazz.
Horas depois, Melina estava na suíte, observando a cidade pela janela. A mansão de Miguel ficava em um dos morros mais altos da zona sul — um trono de concreto e violência. As luzes lá embaixo brilhavam como se o mundo fosse belo, como se ela não estivesse presa a um conto de terror disfarçado de romance.
Pegou o celular. Havia uma mensagem de Raissa, sua aliada mais próxima, perguntando se a reunião com as mulheres seria mantida.
"Vai sem mim. Dê as instruções. E diga a elas que logo... tudo muda."
Digitou com os dedos tensos. Enviar aquela mensagem era, por si só, um ato de rebeldia.
No fundo, Melina sabia. Algo dentro dela começava a se agitar. O eco de uma mulher que existia antes de Miguel. Uma faísca. Uma vontade de não obedecer.
Mas ela precisava de tempo. Discrição. Precisava parecer perfeita — até não ser mais.
À noite, no jantar com os espanhóis, ela brilhou.
Cabelo preso num coque milimetricamente desalinhado, olhos esfumados em tons escuros, vestido preto que delineava seu corpo sem gritar. Miguel a apresentou como “minha mulher”. E ela sorriu, como ensaiado. Riu das piadas, fingiu estar interessada nas propostas. Mas seus olhos estavam atentos aos detalhes.
O mais jovem dos espanhóis, Diego, parecia observá-la mais do que devia. Era bonito. Atraente de um jeito perigoso. Mas não foi nele que seus olhos pararam quando o salão se abriu para receber o novo convidado.
Ele entrou como quem não devia nada ao mundo. Jeans escuros, blazer amassado, barba mal feita. Era a antítese de tudo o que aquele ambiente representava.
— Kauan Silva — disse o espanhol, orgulhoso. — Nosso reforço vindo do Brasil. Ex-policial. Sabe como lidar com polícia e com vagabundo.
Melina não escondeu a surpresa. Ele olhou diretamente para ela, como se já a conhecesse. E sorriu. Um sorriso lento, cheio de desafio.
— Encantado, senhora…?
— Melina — respondeu, antes que Miguel o fizesse.
— Melina — repetiu ele, como se provasse o nome na língua. — Bonito. Forte. Nome de mulher que comanda.
Miguel estreitou os olhos. A tensão flutuou no ar como cheiro de pólvora. Mas Melina não desviou o olhar. Pela primeira vez em muito tempo, não desviou.
Na madrugada, deitada ao lado de Miguel, escutando-o roncar, Melina olhava para o teto com os olhos abertos.
Uma palavra martelava em sua cabeça:
Obediência.E ela soube, com a clareza de uma lâmina:
Estava pronta para desobedecer.
01h37 da manhã.A sede da HEM dormia.Ou fingia dormir.Clara cruzava os corredores internos com passos leves. Sabia onde as câmeras estavam. Sabia os pontos cegos. Sabia demais — e isso, agora, era um problema.A Mamba a observava há três dias.Sem ser vista. Sem interferir. Apenas recolhendo.Hoje, Clara carregava algo no bolso. Um pen drive? Um bilhete? Não dava para saber ainda. Mas a Mamba não precisava de certezas para agir. Ela precisava de padrão. E aquele padrão… estava quebrado.Pela manhã, Melina analisava relatórios no escritório, quando a Mamba entrou sem bater.— Temos um problema. Um problema de dentro.Melina não tirou os olhos da tela.— Clara?— Ela anda acessando arquivos antigos. Inclusive da época do “Dente de Leão”.Melina parou. Fechou o notebook devagar. Acendeu um cigarro.— Você quer agir?— Quero autorização pra testá
A convocação para os advogados aconteceu às 10h da manhã.Melina exigiu silêncio absoluto na sala. Só os três principais nomes da equipe jurídica da HEM estavam presentes: um tributarista, uma penalista e um constitucionalista. Todos com contrato de sigilo. Todos pagos para pensar como predadores.Ela os ouviu por vinte minutos. Cada palavra analisada, cada possível consequência do vídeo de Bianca esmiuçada.— O que é mais perigoso: o que ela disse, ou como ela disse? — perguntou Melina, fria.— O como. — respondeu o penalista. — A entonação. A lágrima sem lágrima. A linguagem corporal. Ela performou uma verdade que o público quer acreditar.— Podemos processar? — perguntou Clara.— Podemos. Mas será pior. Vai parecer perseguição. Vai parecer verdade. A melhor jogada agora é…Melina ergueu a mão. Silêncio.— A melhor jogada agora é esperar.Os advogados se entreolharam.— Vocês não me pagam pra
11h47 da manhã.A reportagem estourou como uma bomba — não em um site obscuro, mas no maior canal do país, em rede nacional.A apresentadora, com a voz ensaiadamente indignada, anunciou:“E agora, uma denúncia estarrecedora: uma ex-integrante da organização HEM, que atua em projetos sociais e empresariais com mulheres em situação de vulnerabilidade, afirma que a rede é, na verdade, uma fachada para manipulação psicológica, corrupção interna e aliciamento emocional. Vejam o relato.”O vídeo começou.A mulher era jovem. Devia ter pouco mais de vinte e cinco. Cabelos castanhos, rosto maquiado com sobriedade. Mas o olhar... vazio. “No começo parecia um projeto lindo. Acolhimento, empoderamento, essas palavras que fazem a gente acreditar. Mas com o tempo, fui percebendo que havia regras. Silêncios. Punições. A Melina... ela sabia de tudo. Ela controlava tudo.”Ela chorava, mas sem lágrima.“Não podíam
Dois dias após a explosão.A sede da HEM em São Paulo estava em luto. Mas não era um luto visível — não havia flores, nem velas, nem lágrimas em público. Apenas silêncios profundos. Portas fechadas. Códigos desativados. E uma cadeira vazia na sala de reunião principal.Lorena, uma das fundadoras da HEM, havia sido assassinada.Não em campo. Não numa missão.Em casa.Um disparo certeiro, sem arrombamento, sem sinais de luta. A câmera de segurança havia sido apagada às 03h33 da manhã. Às 03h37, ela estava morta.Foi Clara quem deu a notícia. A voz não saiu da garganta. Apenas mostrou a foto: Lorena caída entre o sofá e o chão. Sangue no tapete bege.Melina olhou por longos segundos. Depois virou as costas.— Ativem o protocolo Fênix. Enterro simbólico. Nada público. Nada rastreável. Quero saber quem tinha acesso ao endereço dela.— Miguel? — Clara perguntou.— Miguel ou alguém de dentro. Ou algué
Não houve aviso.Não houve sinal.A explosão aconteceu às 05h47 da manhã, no coração da sede da HEM em Recife.Primeiro, o teto. Depois, o chão. Os arquivos em papel, os backups, os sorrisos das funcionárias da recepção — tudo virou poeira, grito e fogo.A fumaça subiu rápido, mas a dor se espalhou mais ainda.Em São Paulo, às 06h03, o celular de Melina vibrava sem parar. Clara entrou na cobertura sem pedir permissão, os olhos arregalados.— Recife. A sede. Alguém plantou um artefato no segundo andar. Foi… — ela travou.Melina já estava de pé. Cabelo preso. Roupão fechado até o pescoço. Imóvel.— Mortes? — perguntou.— Três até agora. Duas funcionárias e... — Clara engoliu em seco — e Kauan.O mundo parou.Por dois segundos, o corpo de Melina não respondeu. Depois ela piscou. Caminhou até o celular, ligou para Nayara.— Me diga o nome do hospital. Agora.
Era estranho ver a sede da HEM tão silenciosa depois de um dia tão barulhento. Manchetes, mensagens em massa, telefonemas de aliados perdendo o chão — tudo conspirava para empurrar Melina ao limite.Mas ela estava ali. Na sala de guerra. Sozinha.A cidade rugia do lado de fora, mas ela só ouvia o som da própria respiração.A porta se abriu. Sem anúncio.A Mamba entrou.Pretas das botas à gola. Passos firmes, respiração baixa, olhos como duas lâminas sem brilho. Ainda tinha manchas de sangue seco na manga — vestígios da operação da noite anterior, quando resgatou Aline sem deixar rastros.Melina se virou para ela. Nenhum sorriso. Apenas o respeito de quem sabe o que a outra é capaz de fazer.— Ela está bem? — perguntou.— Dopada, mas viva. Vai levar um tempo pra voltar a confiar em alguém.— Todas nós levamos.Silêncio.A Mamba caminhou até o centro da sala, onde um painel exibia nomes,
Último capítulo