Mila acordou no dia seguinte com a sensação de que algo tinha mudado. Não soube dizer exatamente o que — talvez fosse só o modo como a luz entrava pelas frestas, suave, quase cúmplice.
Fez café na cozinha, ainda impregnada do cheiro antigo do porão. Depois se sentou à mesa onde havia empilhado as cartas e olhou para tudo aquilo como quem observa um território desconhecido.
Tinha prometido a si mesma que só leria uma carta por dia. Não queria engolir tudo de uma vez e depois ficar sem forças para continuar. Mas mesmo assim, passava os dedos pelos envelopes, sentindo o peso de cada lembrança guardada.
Quando terminou de arrumar a cozinha, pegou o celular e respirou fundo. Precisava avisar no trabalho que não voltaria tão cedo.
Discou o número da chefe, ensaiando mentalmente cada justificativa.
— Mila! — a voz animada de Sabine soou do outro lado. — Pensei que já estivesse de volta.
— Ainda estou em Berat — respondeu, tentando manter o tom profissional. — A situação aqui é... mais complicada do que imaginei.
— Complicada como?
— Preciso cuidar de uma herança. Uma casa. Está em estado crítico. Vou ter que ficar um tempo para resolver.
Houve um silêncio breve. Mila quase podia ver Sabine apertando os lábios, calculando custos e contratempos.
— Quanto tempo?
Mila fechou os olhos. Poderia mentir, dizer que em duas semanas resolveria tudo. Mas no fundo já sabia a verdade: não havia solução rápida para aquilo.
— Um mês — disse, enfim. — Talvez um pouco mais.
— Vai conseguir trabalhar de lá?
— Sim. — respondeu depressa. — A internet funciona. Vou montar um canto para fazer reuniões e acompanhar tudo. Não pretendo me ausentar de nada.
Outro suspiro do outro lado da linha.
— Está bem — Sabine disse, por fim. — Mas preciso que me mande os relatórios das importações hoje. E que fique disponível no horário de sempre.
— Eu sei. — Mila apertou o telefone contra o ouvido. — Obrigada por entender.
— Cuide-se — Sabine murmurou, antes de desligar.
Quando o silêncio voltou, Mila apoiou o aparelho sobre a mesa e ficou ali parada, olhando para a própria mão. Um mês. Talvez mais.
Era estranho como dizer aquilo em voz alta tornava tudo mais concreto.
Passou o resto da manhã limpando o antigo quarto de hóspedes. Era pequeno, mas tinha uma janela que se abria para o rio Osum. Quando a luz entrava, iluminava as tábuas do chão e desenhava formas douradas nas paredes.
Ali, Mila decidiu que faria seu canto de trabalho.
Arrastou uma mesa estreita que encontrara no depósito e limpou com cuidado. Depois, pegou uma das cadeiras menos tortas da cozinha. Cobriu o assento com uma manta azul e colocou o notebook no centro, ligando-o à tomada que Blerim verificara no dia anterior.
Quando terminou, afastou-se um passo e observou tudo. Não parecia com seu antigo escritório, nem com o apartamento ordenado de Tirana. Mas havia algo naquela simplicidade improvisada que a confortava.
O sinal de internet oscilava, mas existia. E, por ora, isso era o bastante.
Ligou o computador e abriu a planilha de relatórios. À medida que digitava, sentia o silêncio da casa se estender ao redor — não como uma ameaça, mas como uma presença que a aceitava.
De vez em quando, erguia os olhos e encarava a vista. O rio se movia num ritmo que nada tinha a ver com os prazos que a pressionavam.
Talvez fosse isso que tanto a desconcertava: perceber que ali o tempo tinha outra medida. E que, mesmo sem querer, ela começava a se ajustar a esse compasso.
No início da tarde, quando salvou o último documento, Blerim apareceu na porta com a jaqueta aberta e os cabelos bagunçados pelo vento.
— Interrompo? — perguntou, inclinando a cabeça para ver o notebook.
— Não — Mila disse, sorrindo de leve. — Eu precisava mesmo de uma pausa.
Ele entrou devagar, olhando ao redor.
— Ficou bom aqui. — comentou. — Tem uma vista bonita.
— É o único lugar onde consigo trabalhar sem sentir que as paredes vão cair sobre mim.
— Ainda acha que tudo isso é temporário? — a pergunta veio num tom tão suave que Mila quase fingiu não ouvir.
— Não sei — respondeu, baixando os olhos para as próprias mãos. — Acho que sim. Pelo menos, é o que repito para mim mesma.
— Às vezes, repetir não faz diferença. — Blerim disse. — O corpo entende antes da cabeça.
Ela soltou um riso curto, nervoso.
— Você sempre fala assim, como se soubesse de tudo?
— Não — ele sorriu, sem arrogância. — Mas já vi muitas casas e muitas pessoas tentando fugir daquilo que já era delas.
Por um instante, ela não teve resposta. Apenas voltou a olhar para a janela, como se encontrasse alguma coragem no brilho do rio.
Quando o silêncio se prolongou, ele pigarreou e mudou de assunto.
— Consegui arrumar os degraus do porão. Amanhã podemos começar a separar o que fica e o que vai embora.
— Tudo bem — Mila disse, grata pela mudança de foco. — E... obrigada.
— Pelo quê?
— Por não me tratar como uma estranha. — ela respondeu, com a voz baixa. — Eu não sei muito bem quem sou aqui.
Blerim inclinou a cabeça, e por um segundo seus olhos pareceram mais escuros.
— Talvez ninguém saiba — disse. — Mas isso não quer dizer que não pertença.
Quando ele saiu, Mila ficou alguns minutos em pé, observando o canto que tinha montado. Sobre a mesa, o notebook piscava com notificações atrasadas.
Ela ignorou todas.
Pegou uma das cartas e saiu para o quintal, onde o vento soprava frio entre os arbustos altos. Sentou-se num degrau de pedra e deixou que o papel descansasse sobre os joelhos.
Leu cada linha devagar, como quem descobre o idioma de um lugar que já era seu sem saber.
Quando ergueu o olhar, o céu estava ficando dourado. E, pela primeira vez, não teve pressa de voltar para dentro.