Capítulo 6

O dia amanheceu úmido e cinzento, como se Berat inteiro estivesse em suspenso. Mila acordou antes do despertador tocar.

Por um instante, ficou deitada, observando as sombras que dançavam no teto. Pensou que podia simplesmente desistir, fechar tudo de novo e inventar outra desculpa para não avançar.

Mas havia algo em seu peito — uma vontade teimosa que ela não sabia mais ignorar.

Quando Blerim chegou, trazia um casaco mais grosso e duas lanternas. Ela abriu a porta antes que ele batesse, sentindo o coração acelerar.

— Bom dia — ele disse, como se aquilo fosse apenas mais um trabalho comum. Mas o modo como seus olhos a estudaram entregava que não era.

— Bom dia. — respondeu, baixando o olhar para as lanternas. — Vai me dizer que estou exagerando?

— Não. — ele balançou a cabeça, sério. — Vou dizer que é corajosa.

Ela quase riu. Se ele soubesse o quanto suas mãos tremiam, talvez não usasse essa palavra.

— Vamos fazer isso logo — disse, num sopro. — Antes que eu me arrependa.

Caminharam em silêncio pelo corredor estreito que levava ao fundo da casa. O piso rangia sob seus passos, e Mila pensou em todas as pessoas que já haviam percorrido aquele caminho — a avó, sua mãe, talvez outras que nunca conheceu.

Blerim parou diante da pequena porta de madeira, quase do mesmo tom das paredes. Parecia tão insignificante que Mila se perguntou como algo tão pequeno podia conter tantos medos.

Ele se abaixou, passando os dedos pelas frestas.

— Foi lacrada por dentro — disse, num tom neutro. — Mas não muito bem. Talvez não quisessem que fosse impossível abrir. Só... difícil o bastante para desanimar.

— Consegue? — ela perguntou.

— Com cuidado. — Ele ergueu o olhar. — Se quiser, pode esperar lá fora.

— Não. — Mila respirou fundo. — Se comecei, vou até o fim.

Os olhos dele se suavizaram, mas ele não discutiu. Apenas assentiu e abriu a caixa de ferramentas.

Levaram quase uma hora para retirar a tábua que prendia a porta. Cada prego arrancado fazia um estalo que ecoava na casa inteira, como se acordasse coisas que preferiam continuar dormindo.

Quando a madeira finalmente cedeu, Mila recuou meio passo. O cheiro que escapou dali era antigo — uma mistura de terra úmida e algo que lembrava ferro.

Blerim pegou uma das lanternas, ligou-a e a apontou para o vão escuro.

— Cuidado com o degrau. — disse, antes de descer.

Mila esperou alguns segundos, até ouvi-lo pisar o chão. Então respirou fundo e o seguiu.

O porão não era grande, mas a escuridão parecia multiplicar o espaço. Havia prateleiras encostadas às paredes, caixas empilhadas e sacos de juta empilhados num canto.

A lanterna iluminava partículas de pó que dançavam no ar. Mila teve a impressão de que cada partícula carregava alguma lembrança esquecida.

— Há muito tempo que ninguém vem aqui — Blerim disse, passando a luz pelos objetos. — Talvez desde antes da sua mãe ir embora.

Ela não respondeu. Estava ocupada demais tentando manter a respiração calma.

Passou os olhos pelas caixas. Algumas tinham etiquetas desbotadas, outras, nada. Parou diante de uma que parecia ter sido aberta muitas vezes — a tampa frouxa, a madeira mais gasta que as outras.

— Posso? — perguntou, sem saber por que pedia permissão.

— Claro — ele respondeu, afastando-se para lhe dar espaço.

Mila ajoelhou-se devagar e abriu a tampa. Lá dentro, encontrou pilhas de cadernos, cartas amarradas com barbante, recortes de jornais antigos.

Ela passou a mão sobre o topo da pilha. O barbante se desfez com um estalo baixo. Pegou um dos envelopes. O destinatário não era ela, mas o nome na frente fez seu estômago revirar.

Emine Qyra — o nome de sua mãe.

Sentiu o peito apertar.

— São dela — sussurrou, como se confessasse algo.

— Quer que eu te deixe sozinha? — Blerim perguntou, num tom baixo.

— Não. — respondeu, rápido demais. — Pode ficar. Por favor.

Ele se aproximou, apenas o bastante para que ela sentisse seu calor próximo. Não tentou tocar nela, e Mila agradeceu. Não sabia se aguentaria qualquer gesto que a fizesse desmoronar.

Por alguns minutos, ela só ficou ali, lendo datas e remetentes, sem coragem de abrir as cartas de verdade. Parte dela temia descobrir que a mãe não a esquecera — mas que também nunca quis voltar.

— Preciso levar isso para cima — disse, por fim, com a voz rouca. — Preciso de tempo.

— Eu te ajudo — Blerim disse. E quando a olhou, seus olhos pareciam enxergar muito mais do que ela queria mostrar.

Subiram devagar, cada um com um punhado de cadernos. O ar fresco da cozinha pareceu mais limpo depois do cheiro adormecido do porão. Mila empilhou tudo sobre a mesa e passou os dedos pelos papéis, tentando absorver a coragem que sabia que ia precisar.

— Obrigada — disse, sem erguer o olhar.

— Não tem de quê. — ele respondeu. — Mas, Mila...

Ela levantou o rosto devagar.

— Talvez seja melhor você não ler tudo de uma vez.

— Por quê?

— Porque algumas verdades doem mais do que a gente imagina.

Ela respirou fundo.

— Eu sei. Mas mesmo assim... preciso saber.

Blerim assentiu, devagar. Depois olhou em volta, como se medisse o espaço.

— Vou começar a reforçar o batente da porta do porão. Não quero que ceda enquanto você estiver aqui.

— Está bem. — ela disse, grata por ter uma tarefa prática que quebrasse o peso daquele momento.

Enquanto ele pegava as ferramentas, Mila puxou uma cadeira e se sentou. Pegou a primeira carta do topo. Reconheceu o carimbo de Berat. A data — 1993 — era do ano em que sua mãe foi embora.

Por um instante, ficou só olhando para a caligrafia. O nome da avó escrito no canto, como um lembrete de que, no fim, todas aquelas histórias eram só delas — das mulheres que haviam amado, partido, sobrevivido.

Abriu o envelope com cuidado.

E ali, entre palavras curtas e espaçadas, encontrou a primeira pista do que tinha sido perdido — e do que ainda podia ser recuperado.

Quando ergueu os olhos, Blerim a observava da soleira da porta. Não disse nada. Mas na forma como ele ficou ali, em silêncio, Mila entendeu que, de algum jeito, ele também já tinha aprendido que certas casas — e certas pessoas — nos escolhem antes que possamos escolher de volta.

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