Ane, uma pedagoga baiana de 42 anos, sempre acreditou que o amor verdadeiro viria como resposta de suas orações. Firme, inteligente e com uma ponta de sarcasmo, ela encontrou refúgio em sua fé — mas também carrega no peito uma necessidade silenciosa de afeto e cumplicidade. Do outro lado do mar, em Cienfuegos, Cuba, está Moreno. Ex-atleta, professor de educação física, dono de várias medalhas e de um coração inquieto. Cético por natureza, prefere acreditar na lógica e na força de suas próprias mãos, mas guarda uma alma romântica que desafia suas convicções. O destino, ou talvez o acaso, os apresentou em um aplicativo de namoro. O que parecia apenas uma conversa trivial logo se transformou em longas madrugadas de mensagens, risadas, discussões e confissões. Entre eles nasceu um laço que desafiava fronteiras, religiões e certezas. Mas há barreiras que não se rompem com palavras. A distância oceânica, as limitações financeiras e o choque entre fé e descrença colocam à prova um sentimento que cresce a cada dia. Será que o amor pode sobreviver sem encontros reais? É possível conciliar crença e ceticismo quando os corações já escolheram? Entre orações e silêncios, entre sorrisos e dúvidas, Ane e Moreno descobrirão que às vezes o amor mais forte é justamente aquele que não se pode tocar.
Leer másO despertador tocava, mas Ane já estava acordada. O cheiro do café preparado pela mãe vinha da cozinha e misturava-se ao barulho das panelas e da TV ligada em volume alto demais para aquela hora.
A vida em Salvador tinha dessas coisas: barulhenta, viva, cheia de gente em volta. As cores vibrantes das casas coloniais, o burburinho constante das ruas e o calor úmido que abraçava a cidade eram parte intrínseca de sua existência, moldando sua resiliência e seu jeito de encarar o mundo. Ela amava a energia caótica, a forma como a vida transbordava em cada esquina, mas às vezes, a intensidade a deixava exausta.Aos 42 anos, Ane equilibrava a rotina de ex pedagoga com o caos da casa que dividia com duas mulheres: a mãe, de 68 anos, e a filha de 22, estudante de Direito, determinada e cheia de opiniões. Às vezes, parecia que Ane tinha duas adolescentes sob o mesmo teto, cada uma querendo dar a última palavra. A dinâmica familiar era um espetáculo à parte, com discussões acaloradas sobre tudo, desde a política local até a melhor forma de cozinhar. Ane, navegava por essas águas turbulentas com um sorriso no rosto, sabendo que, no fundo, era tudo amor.— Mãe, você sempre deixa a TV muito alta! — resmungava a filha. — E você fala alto demais, menina! — retrucava a avó, sem tirar os olhos da novela reprisada. Ane ria, acostumada. Apesar das pequenas discussões, sabia que tinha sorte: a mãe era seu apoio, e a filha, sua esperança. A solidão, no entanto, era uma sombra persistente, um vazio que nem mesmo o amor da família conseguia preencher. Ela ansiava por uma conexão mais profunda, um parceiro para compartilhar os altos e baixos da vida. Ainda assim, havia dias em que sentia falta de algo — ou de alguém.“Deus, eu sei que tudo tem seu tempo... mas o meu relógio já está cansado de esperar”, pensou, ajeitando o cabelo diante do espelho. A fé de Ane não era dogmática, mas uma crença profunda na ordem do universo e na existência de um propósito maior, uma força que guiava seus passos e a mantinha de pé. Do outro outro lado do mar, em Cienfuegos, Moreno percorria a orla ainda vazia. O sol nascia, refletindo na pele negra e alta de 1,84m que carregava a disciplina de quem já fora atleta. O cheiro salgado do mar e a brisa suave da manhã eram seus companheiros diários, um lembrete constante da simplicidade que ele buscava na vida. Agora, aos 42, ele ensinava jovens a amar o esporte como ele um dia amou competir, transmitindo não apenas técnicas, mas também a paixão e a dedicação que o esporte exigia. A vida dele, no entanto, era simples demais. Poucos amigos — quase nenhum. Apenas colegas de trabalho, duas irmãs mais velhas, alguns sobrinhos, e os pais, com quem dividia a casa. Os dois tinham 68 anos, e mesmo aposentados, o pai ainda saía cedo para trabalhar. Moreno sentia o peso da rotina, a ausência de um propósito maior além do trabalho e da família. Ele ansiava por algo que o tirasse da monotonia, algo que reacendesse a chama da vida. Moreno não se iludia: já tinha vivido relacionamentos intensos, mas em muitos fora trocado, descartado. Carregava cicatrizes no coração. Apesar disso, ainda acreditava no amor, mesmo sem acreditar em Deus. Sua descrença não era uma negação, mas uma constatação de que a vida era feita de escolhas e consequências, e que o amor, para ele, era uma construção humana, não divina. Naquela noite, cansado, pegou o celular. Rolou a tela sem ânimo, até que o aplicativo de namoro piscou. No Brasil, Ane, quase por impulso, tinha feito o mesmo. Preencheu o perfil sem grandes expectativas. “Se não der em amor, pelo menos dá pra rir das histórias”, murmurou.Foi então que o destino — ou talvez o algoritmo — entrou em cena.Na tela de Ane surgiu Moreno: olhar profundo, sorriso carregado de histórias, semblante que misturava força e melancolia. Na tela de Moreno apareceu Ane: uma mulher de postura firme, mas com um brilho escondido que denunciava doçura e fé.Ela hesitou. Ele também. Mas quase ao mesmo tempo, deslizaram o dedo para a direita.E assim, com um simples “olá”, duas rotinas diferentes se chocaram.Ane e Moreno ainda não sabiam, mas aquela conversa mudaria tudo.Capítulo 14Ane havia passado a tarde na igreja. O culto falava sobre paciência e confiança no tempo de Deus, palavras que ecoaram em seu coração. Ela se perguntava até que ponto sua fé poderia sustentar aquela relação que, embora tão viva em sentimentos, permanecia presa em uma tela. No caminho de volta para casa, o vento quente da Bahia a envolveu, trazendo-lhe uma sensação de inquietação.Quando chegou, a mãe estava sentada no sofá vendo televisão e a filha estudava na mesa da sala, cercada de livros de direito. Ane subiu para o quarto, tomou um banho demorado e se deitou, já sabendo que em breve Moreno chamaria. Não demorou muito, e o celular vibrou.A tela iluminou o rosto dele. Moreno estava suado, provavelmente vindo do ginásio. — Hola, mi bombón de chocolate. — O sorriso largo escondia um certo cansaço. — Hoje os meninos treinaram duro. Mas eu pensei em você o tempo todo.— Moreno… você sempre diz isso. — Ane sorriu, mas seu olhar carregava outra preocupação. — Eu acredito, ma
Capítulo 13Na manhã seguinte, o sol se erguia forte sobre a Bahia. Ane acordou mais tarde que de costume, sentindo uma preguiça gostosa. Preparou um café simples, sentou-se à mesa com a mãe e a filha e riu das histórias da noite anterior. O domingo cheio ainda ecoava na casa, e ela se sentia grata por ter sua família por perto. Enquanto mexia no celular, percebeu uma mensagem de Moreno: “Bom dia, bombón. Hoje sonhei que te ensinava a dançar salsa.”Ela riu alto. — Esse Moreno não existe! — disse, mostrando a mensagem para a filha, que também sorriu e comentou:— Vai treinando, mãe, porque dançar não é o seu forte.Rindo sozinha, Ane respondeu: “Se eu dançar salsa, você vai ter que aprender forró. Negócio fechado?”Minutos depois, a chamada de vídeo entrou. Moreno aparecia com o cabelo um pouco desalinhado, a camiseta colada de suor, mas com aquele sorriso irresistível.— Então você quer me ver dançando forró, é? — ele provocou. — Vou precisar de aulas particulares… só de você.— Olha
Capítulo 12O calor em Cienfuegos era sufocante naquele dia. Moreno já havia suado antes mesmo de chegar ao ginásio desportivo onde trabalhava com jovens atletas. O barulho das bolas quicando no chão misturava-se às vozes animadas dos meninos. Ele sorria ao orientar cada movimento, lembrando-se do tempo em que era ele quem competia, correndo pelo mundo com a bandeira de Cuba no peito. Agora, treinava os que poderiam ser o futuro do esporte em sua cidade.Depois do treino, ao chegar em casa, ajudou a mãe a varrer o quintal e lavar algumas roupas. O pai, apesar da idade, ainda saíra para um bico na construção, e Moreno carregava no peito a responsabilidade de apoiar sempre que podia. As horas sem energia eram um desafio diário. O ventilador parado, o silêncio pesado da casa e o suor escorrendo lembravam-no de como sua ilha era resistente, mas também limitada. Às vezes, quando a pressão alta o incomodava, voltava àquele tempo do COVID, quando a saúde o abalara profundamente. Nessas horas
📖 Capítulo 11 Os dias passavam como se fossem capítulos de um mesmo livro inacabado. Ane acordava cedo, organizava pequenas tarefas com a mãe e acompanhava de perto os estudos da filha. Tentava preencher o tempo com o curso de crochê, as sessões de Pilates e hidroginástica, além das consultas com o psicólogo. Mas, por mais que se ocupasse, havia sempre um espaço vazio reservado apenas para pensar em Moreno.Naquela manhã, o sol da Bahia entrava pela janela com força. Ane, ainda de camisola, sentou-se na beira da cama e pegou o celular. Uma notificação piscava: mensagem de Moreno.— Buenos días, bombón de chocolate. Hoy soñé contigo. Estabas en mi ciudad, caminando a mi lado por el malecón. No quería despertar.Ane sorriu, mas logo suspirou. Como gostaria que fosse verdade. Respondeu com um áudio suave:— Bom dia, meu amor. Eu também sonhei com você. Estávamos caminhando pela praia aqui da Bahia. Acho que nossos sonhos estão tentando se encontrar no meio do caminho.Do outro lado, Mo
📖 Capítulo 10 Ane passou o dia inquieta. Tentava se concentrar no crochê que a mãe insistia para que ela não largasse, mas a mente estava em outro lugar. Cada ponto feito era interrompido por um pensamento sobre Moreno. O celular, sobre a mesa, parecia vibrar mesmo quando estava em silêncio.Não era ciúme no sentido puro, ela se dizia. Era mais um incômodo que brotava quando lembrava do passado dele: os relacionamentos, as decepções, o fato de já ter sido trocado por outras mulheres. Tudo isso voltava à memória como se fosse uma sombra constante. “E se eu for apenas mais uma história?”, pensou, sentindo um aperto no peito.Moreno, por outro lado, passava o dia no trabalho. Orientava jovens no ginásio, corrigia posturas, incentivava com seu jeito firme e sereno. Mas, quando se afastava da quadra, o celular na mochila chamava sua atenção. A cada intervalo, buscava uma mensagem dela, como quem procura oxigênio.Naquela tarde, foi ele quem quebrou o silêncio. Enviou uma foto do céu de C
📖 Capítulo 9 A manhã na Bahia começou clara e quente. Ane havia se levantado cedo para a hidroginástica. Vestiu o maiô azul-marinho, ajeitou os cachos e saiu de casa com a mochila nos ombros. O percurso até a academia era curto, mas suficiente para que ela respirasse o ar úmido e se lembrasse de como a vida havia mudado nos últimos meses.Antes, sua rotina era marcada pelas crianças na escola, pelos planos de aula, pelo barulho dos pequenos corredores. Agora, era feita de consultas médicas, exercícios de recuperação e longas pausas para refletir. Não deixava de ser um aprendizado.Na piscina, enquanto seguia os movimentos indicados pela professora, Ane sorria ao imaginar o que Moreno diria se a visse ali. “Ele ia rir do meu jeito desengonçado”, pensou, soltando uma risadinha que chamou a atenção da colega ao lado.De volta para casa, tomou banho, fez um café leve e se sentou na varanda com o celular na mão. Havia várias mensagens não lidas, mas a que importava estava no topo da tela
Último capítulo