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Capítulo 2 – Quando a Dor Vira Casa

A casa da minha tia Lurdes não tinha cheiro de lar.

Tinha cheiro de fritura velha, mofo e raiva guardada. Era como entrar num lugar que te odeia antes mesmo de te ver.

Depois do velório, com a casa que era nossa sendo vendida às pressas para pagar dívidas, foi ela quem “nos acolheu”.

Pelo menos era assim que os vizinhos comentavam — “a Lurdes é dura, mas tem bom coração”.

Mentira!

Se ela tinha algum coração, tava escondido num buraco escuro demais para qualquer alma achar.

O quarto que ela nos deu era minúsculo, abafado, com um colchão velho jogado no chão e uma janela que não abria. Minha mãe, que já não dizia muita coisa, ficava ali deitada quase o dia inteiro, encarando o teto, murmurando nomes que eu nunca reconheci. Às vezes, sorria sozinha. Outras, chorava baixinho. E eu só podia olhar, impotente.

— Mulher fraca — dizia Lurdes. — Vive num mundo que já acabou, faz tempo.

Enquanto isso, eu...

Virava adulto à força.

Sem aviso, sem escolha. Só me restava obedecer.

Acordava antes do sol nascer para carregar sacos de lixo para o marido dela — o infeliz do Zé — que agora me tratava como um escravo.

— Vai lá buscar a lenha.

— Limpa a pocilga dos porcos.

— Enche o balde no poço.

— Anda, moleque, sem moleza!

A cada ordem, vinha um empurrão.

Às vezes, um tapa. Às vezes, mais.

E eu fazia.

Engolia a raiva.

A vergonha.

O medo.

Mas o que eles não sabiam — o que ninguém via — era que, por dentro, eu tava queimando.

Cada gota de suor, cada humilhação, cada vez que Zé me chamava de “bosta” ou Lurdes me olhava como se eu fosse um verme... tudo isso virava combustível.
Eu ia me vingar, porra.

Daquele desgraçado do Israel Ravena.

Ele destruiu minha família, tirou tudo que a gente tinha — ele matou meu pai.

E um dia, eu ia fazer ele pagar.
Com juros. Com sangue. Com tudo. Que se foda o mundo.

Às vezes, enquanto eu esfregava merda de porco com uma escova velha, o cheiro me fazia quase vomitar, mas minha mente fugia…

Lembrava de antes.

De quando minha mãe me chamava de "meu príncipe", me dava beijo na testa e dizia que eu era o orgulho dela.

Do meu pai me ensinando a andar de bicicleta na rua calma, a gente rindo quando eu caía na grama.

Do nosso sofá grande, das tardes assistindo filme com pipoca feita na panela.

Do perfume da minha mãe, da risada dele.

Do meu quarto azul com prateleiras cheias de livros e brinquedos.

Da cozinha cheirando a bolo de fubá com canela.

Agora, tudo era entulho na memória. Tudo fodido. Tudo longe.

Minha mãe foi ficando cada vez mais ausente.

De vez em quando, saía pela rua sem rumo, com os pés descalços, falando sozinha.

Uma vez, tentou fazer chá com água sanitária. Disse que “era remédio para limpar a alma”.

Ela tava despencando e ninguém ligava.

A vizinhança começou a cochichar.

Lurdes dizia que era “encosto”.

Zé dizia que ela era uma inútil, e ameaçava interná-la “nem que fosse à força”.

E ele fez.

Um dia, voltando do trabalho, encontrei a casa em silêncio.

Minha mãe tinha sido levada.
Internada num hospital psiquiátrico público, com mais baratas do que enfermeiras, com cheiro de mijo seco e grito engasgado nas paredes.

Lurdes nem olhou para mim quando disse:

— Melhor assim. Louco não ajuda em nada. Só dá despesa.

Naquela noite eu chorei.

Chorei como nunca, antes. Sozinho. Encolhido naquele colchão sujo, com a barriga roncando.

Eu só queria sumir.

Não tinha ninguém. Não tinha mais nada.

No dia seguinte, me fizeram cavar uma vala para os porcos. Com as mãos.

A enxada estava quebrada, e Zé queria aquilo feito antes do almoço.

Eu escorreguei na lama, cortei o joelho numa pedra. Sangrei.

Ele me chamou de frouxo. Cuspiu no chão, bem na minha frente.

— Tu não vale o nome que carrega. Igual teu pai. Fraco.

Foi ali que decidi.

Que se fodesse Lurdes.

Que se fodesse aquele bêbado escroto do marido dela.

Que se fodesse essa porra toda.

Esperei a madrugada chegar.

Juntei minhas coisas — o pouco que tinha: uma camiseta furada, uma calça rasgada, e um retrato desbotado da minha mãe sorrindo, antes de tudo desmoronar.

Saí pela porta dos fundos, descalço. Sem olhar para trás.

Fugi.

Fui para a rua.

Debaixo de pontes, dentro de prédios abandonados, entre outros invisíveis como eu.

A fome virou rotina. O frio, normal. A solidão, um amigo constante.

Mas, pela primeira vez em muito tempo...

Eu estava longe do peso daquela casa.

Longe da voz de Zé, dos olhos de Lurdes, do vazio da minha mãe nos corredores escuros.

E, por mais estranho que pareça...

Me senti livre.

Não era o fim.

Era o começo da minha guerra.

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