Laís achava que voltar para sua cidade natal seria apenas uma pausa — um estágio, uns meses e tchau. Mas o reencontro com Eduardo, seu amigo de infância, vira tudo do avesso. Ele não era mais o garoto que ela lembrava. E ela já não era mais a mesma também. Enquanto cafés são divididos e silêncios começam a dizer mais do que palavras, um desejo antigo ressurge. Entre beijos inesperados, noites que queimam e conversas que tocam fundo, Laís e Eduardo descobrem que amar não é só estar junto — é decidir ficar, mesmo quando o mundo diz o contrário. Mas e quando os fantasmas do passado aparecem? E se o amor for interrompido por uma nova proposta, uma outra cidade… uma chance de futuro? Ficar pode doer. Partir, ainda mais. Entre café e saudade, existe o espaço onde os corações se encontram. E talvez, só talvez, seja lá que o amor realmente começa.
Ler maisLaís nunca imaginou que voltaria para Santa Amora — uma cidadezinha
encravada entre morros e plantações de café, a 180 km da capital, São Paulo, onde ela morava com os pais desde os dezessete anos. Mas lá estava ela, mais de uma década depois, com duas malas, um contrato de estágio e uma sensação incômoda de recomeço que apertava o peito a cada passo. Aos vinte e três, Laís era uma jovem de presença serena, mas com olhos que sempre pareciam guardar um pensamento a mais, como se estivesse constantemente decifrando o mundo. Tinha cabelos castanhos escuros, lisos, que caíam sobre os ombros, e uma pinta discreta perto da boca — detalhe que odiava quando criança, mas que agora fazia questão de destacar com batom vermelho. Era discreta, mas nunca apagada; observadora, mas intensa quando resolvia se entregar. Uma dualidade que a tornava intrigante, mesmo quando ela tentava passar despercebida. A decisão de voltar não fora simples. A vaga de estágio em psicologia clínica surgira como uma oportunidade temporária, mas promissora, em um pequeno centro de apoio emocional de Santa Amora. Apesar da relutância, Laís sabia que precisava daquele espaço. Precisava de silêncio, de distância da rotina sufocante da cidade grande, e de tempo para lidar com o peso invisível que carregava há meses. Seus pais, Clarice e Mauro, permaneceram na capital. Nunca voltariam ao interior, mas respeitaram a escolha da filha. “É só por uns meses”, ela repetia para eles e para si mesma, tentando acreditar na própria frase toda vez que a saudade ameaçava pesar antes mesmo da partida. Laís havia saído de Santa Amora aos dezessete anos para cursar a faculdade e nunca mais voltara — até agora. Não fora por mágoas, mas por medo. Medo de encarar o que havia deixado para trás. E, principalmente, medo de encarar ele. Quando pisou na calçada quente da rodoviária, a sensação foi a de caminhar dentro de uma memória antiga. O calor do interior não era apenas temperatura: era cheiro de terra molhada, de pão fresco saindo das padarias da praça, de café forte servido em copos pequenos. Era infância, era passado, era lar e exílio ao mesmo tempo. E foi nesse turbilhão de memórias que ela o viu. Eduardo. Ele caminhava em sua direção com passos tranquilos, como se o tempo nunca tivesse passado. Não tinha mais o rosto de menino que Laís guardava na lembrança. O tempo o havia esculpido com paciência: traços firmes, barba bem-feita, e aquele olhar castanho que sempre parecia dizer mais do que devia. Usava jeans surrado, camiseta preta e tênis manchado de terra. Simples. Despretensioso. Mas Eduardo nunca precisara de muito esforço para mudar o peso do ar quando chegava. — E aí, sumida. — Ele sorriu, abrindo os braços num gesto natural, como se dez anos fossem apenas dez dias. O coração de Laís tropeçou dentro do peito. Um turbilhão de lembranças a invadiu: tardes de risadas adolescentes, segredos divididos no quintal da avó, o toque rápido de uma mão que nunca deveria ter se afastado. E, acima de tudo, o beijo apressado, mal resolvido, que ainda ecoava como um ponto de interrogação no passado. — Eduardo… — disse, como quem prova um nome antigo na boca, doce e amargo ao mesmo tempo. — A própria. Quer que eu leve uma das malas? Ela hesitou. O corpo queria ceder, mas a mente gritava autoproteção. Ele percebeu a indecisão e sorriu de novo, daquele jeito debochado e íntimo que parecia arrancar dela as defesas mais bem guardadas. Laís entregou a mala menor. — Obrigada. — disse, seca, na tentativa de se proteger. Não era frieza, era sobrevivência. Caminharam lado a lado pela calçada da rodoviária, em silêncio. Um silêncio carregado, cheio do que nunca havia sido dito. Eduardo foi o primeiro a quebrá-lo: — Ainda gosta de café com canela? Laís parou por um segundo, surpresa. — Você lembra disso? — De você? — Ele arqueou a sobrancelha com um meio sorriso. — É claro que eu lembro. Ela desviou o olhar, sentindo o rosto esquentar. Mal havia chegado e já estava à beira de um colapso emocional. Era cedo demais para tudo aquilo, mas o pior era saber: Eduardo era esse tipo de perigo. Não o que machuca de propósito, mas aquele em que a gente se machuca sozinha — só por se aproximar demais.Laís A semana correu como um filme que finalmente aprende o próprio ritmo. O relatório preliminar da Controladoria virou definitivo — sem alterações dramáticas, apenas ratificando as recomendações e registrando, por escrito, a “mobilização cidadã exemplar em torno da ONG”. Nanda leu a frase em voz alta, sorriu com o canto da boca e guardou a folha numa pasta transparente, como quem coloca fotografia em álbum. — Não é selo de perfeição. — ela disse. — É licença para continuar. Continuamos. Lucas levantou um painel simples, colorido, com prazos e responsáveis. Rafaela organizou as caixas do arquivo físico como quem monta um mapa do tesouro. Gabriela iniciou uma série de postagens curtas — “Como ler um relatório público sem dor de cabeça” — e, de repente, até quem não gostava de ler começou a comentar. O Coletivo de Tecnologia Cívica nos enviou o laudo acessível sobre a montagem do vídeo falso, e a rádio local convidou Nanda para uma conversa mais longa sobre transparência. A cidade
Laís Os dias seguintes ao relatório foram de correria. A ONG parecia uma colmeia em plena atividade. As recomendações dos auditores viraram listas pregadas em murais, planilhas coloridas no computador de Lucas, lembretes na voz de Nanda. Gabriela preparava textos para as redes explicando cada etapa de adaptação, Rafaela organizava oficinas educativas sobre transparência, e Breno trazia notícias de bastidores como quem carrega água para apagar incêndio. Eu, entre pastas e reuniões, mal percebia a semana avançar. Até que Nanda entrou na sala com um papel na mão e um sorriso enviesado. — Laís, você foi convidada para participar de um programa de rádio local. Querem ouvir uma voz jovem, alguém que represente o trabalho de dentro. Vai ser ao vivo, sexta à noite. Meu estômago deu um salto. — Eu? Sozinha? — Não sozinha. — Nanda tranquilizou. — Eduardo vai com você, nos bastidores. E lembra: você não precisa ter todas as respostas. Precisa só falar a verdade. Sua verdade. O resto vem.
LaísA segunda-feira chegou com cheiro de papel novo e nervos velhos. O e-mail da Controladoria aterrissou às 08:14 com um título tão burocrático quanto ameaçador: “Relatório Preliminar – Visita Técnica”. O coração deu um pulo; meus dedos hesitaram um segundo antes de tocar na tela.Nanda nos reuniu na sala grande. As janelas abertas deixavam entrar o barulho da praça, e, na mesa, o café de tia Zuleica fumegava ao lado de um prato de broas. Eduardo chegou por último, encostou discretamente a mão nas minhas costas; foi o suficiente para eu lembrar de respirar.— Vamos lá. — disse Nanda, abrindo o PDF no projetor.A leitura começou seca, mas foi amolecendo ao longo dos parágrafos. Havia ali um retrato que não nos diminuía: “boa mobilização comunitária”, “processos transparentes em linhas gerais”, “comunicação acessível à população”. O alívio veio em ondas silenciosas, até que surgiram as recomendações: padronizar datas e versões de relatório; criar um protocolo de registro de voluntaria
Laís O dia seguinte à vistoria amanheceu abafado. O céu guardava nuvens pesadas, como se refletisse o peso que pairava sobre todos nós. Na ONG, o cheiro de café recém-passado se misturava ao nervosismo. Cada olhar dizia o mesmo: alívio, sim, mas também a ansiedade pelo relatório que viria. Era como estar entre o fim de uma tempestade e o início de outra. Eduardo foi o primeiro a chegar. Trouxe pão fresco da padaria e um sorriso determinado. — Café da manhã coletivo. — anunciou, tentando arrancar sorrisos. Colocou os pães na mesa e abraçou Nanda de surpresa. — Você foi gigante ontem. — disse. Ela sorriu de leve, mas seus olhos revelavam que a mente já estava na próxima batalha. Eu tentava respirar fundo, mas sentia o peito apertado. Eduardo percebeu, aproximou-se por trás e pousou a mão na minha cintura. — Vai dar tudo certo. — murmurou. — Nós já atravessamos tempestades piores. — O calor do toque dele me ancorou. *** Nanda convocou uma reunião logo cedo. Estávamos na sala grande
Laís O sol nasceu tímido, escondido atrás de nuvens claras. Mesmo assim, o calor da expectativa já pesava no ar. A ONG estava em polvorosa desde as sete da manhã. Pilhas de pastas cuidadosamente revisadas se espalhavam pelas mesas, o café de tia Zuleica exalava aroma forte na cozinha, e o mural na entrada, reforçado com novas cores, brilhava como bandeira de resistência. Tudo parecia ensaiado, mas por dentro todos tremiam. Eu caminhava pelos corredores tentando respirar fundo. Sentia a tensão pairar em cada olhar, em cada gesto. Não era apenas uma visita técnica. Era um teste de credibilidade, a chance de provar que não tínhamos nada a esconder. Eduardo percebeu meu nervosismo e se aproximou devagar, pousando a mão na minha cintura. — Vai dar tudo certo. — disse, com a voz baixa. — Nós já atravessamos tempestades piores. Assenti, tentando acreditar tanto quanto ele. *** Às nove em ponto, uma caminhonete preta estacionou em frente à ONG. Dois auditores desceram: uma mulher de ca
Laís Acordei com o celular vibrando sem parar. Três chamadas perdidas de Rafaela, duas mensagens de Gabriela, uma de Lucas com um link e o aviso: “Não abre sozinha”. O coração desandou antes dos passos. Abri assim mesmo. Um vídeo curto, cortes secos, minha imagem em close no pátio da ONG. A legenda gritava: “ELA ADMITE: É TUDO MANIPULAÇÃO”. No áudio, minha voz — só que costurada para dizer o oposto do que falei semanas atrás: “a melhor mentira é… simples”. O resto, amputado. A montagem era tosca, mas eficaz. Eduardo, ainda com a voz de sono, sentou na cama. — O que aconteceu? Mostrei a tela. Ele assistiu e ficou vermelho. Fechou os punhos, respirou fundo, e depois me puxou para um abraço que segurou meu corpo antes que o pânico me tomasse. — A gente vai resolver. Juntos. *** A sala da ONG virou gabinete de crise. Nanda estava com o cabelo preso alto e os olhos afiados. Lucas abriu o notebook em cima da mesa. — Postaram de madrugada, 03h17. Perfil novo, sem foto, mas a replicação
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