Laís
O ventilador fazia um barulho monótono no canto do quarto, misturado ao som distante de grilos e cachorros latindo. A cidade dormia cedo — e isso era algo que Laís ainda estava tentando se acostumar. Na capital, o silêncio vinha depois das duas da manhã. Em Santa Amora, antes das dez já havia um tipo de sossego que, para ela, era quase ensurdecedor. Sentada na cama, de pijama e cabelo preso num coque torto, ela escrevia no caderno que carregava desde o ensino médio. Tinha tentado começar um diário várias vezes na vida, mas só agora aquilo fazia sentido. “Primeira semana: Sobrevivi. Mas não sei se saí ilesa.” A convivência com Eduardo estava mexendo com ela mais do que queria admitir. Ele não fazia nada — não dizia nada. Mas a presença dele era constante, ocupava espaço, pensamento, pele. E isso era perigoso. Fechou o caderno e se jogou de costas na cama. Do andar de baixo, vinha o cheiro do chá de camomila que a tia Zuleica preparava todas as noites. Ela era irmã de sua mãe e morava sozinha desde que ficou viúva. Receber Laís tinha sido uma alegria declarada — “essa casa já estava calada demais”, dizia com um sorriso cheio de rugas e afeto. — Tá viva aí em cima, menina? — a voz da tia subiu pelas escadas. — Tô! Já vou descer pra tomar chá. — Tem biscoitinho de polvilho! Aqueles que você gostava. Laís sorriu. Aquela casa tinha cheiro de infância e aconchego. Desceu descalça, tropeçando nos próprios pensamentos. Na cozinha, encontrou também Rafaela — a amiga de infância que agora morava ali perto e aparecia quase todo dia. — Olha só quem sobreviveu ao furacão Eduardo. — Rafa falou, com uma sobrancelha arqueada e a língua afiada de sempre. — Ele não é um furacão. — Laís disse, tentando parecer indiferente. — Não? Você viu o jeito que olhou pra ele na segunda-feira? Achei que ia pegar fogo naquele refeitório da ONG. — Ela riu alto, bebendo o chá como quem assistia a uma novela ao vivo. Tia Zuleica apenas observava, rindo com os olhos. — Ele é bonito mesmo — disse a tia, passando mel no pão. — E tem um sorriso meio malandro. Mas cuidado, viu? Os olhos dele têm segredos. Laís mordeu o biscoito de polvilho com raiva. Dela mesma. — A gente trabalha junto, só isso. E por enquanto, tá tudo tranquilo. Mas não estava. Durante a semana, ela conheceu os outros colegas da ONG: Leandro, o biólogo calmo que usava camisas floridas e tinha um humor tímido, mas adorável. Já deu pra perceber que ele seria um bom amigo — talvez até estivesse interessado nela, mas Laís não tinha certeza. E Nanda, a coordenadora, era firme, prática e direta — do tipo que resolve problemas com meia dúzia de palavras e ainda arruma tempo pra acolher os estagiários com bolo de cenoura nas sextas-feiras. O ambiente era bom. A cidade era tranquila. A casa da tia, um refúgio. Mas nada disso impedia a inquietação que Eduardo causava. Cada vez que os olhos dele encontravam os dela, era como se o passado viesse puxar seu braço e dissesse: “e agora, vai fazer o quê?” Laís terminou o chá e se despediu das duas, dizendo que ia dormir. No quarto, se enfiou debaixo do lençol fino e ficou encarando o teto. O celular vibrou. [23:41 - Eduardo] “Espero que o chá da sua tia ainda tenha o mesmo gosto. Eu ainda lembro. :) Foi bom te ver essa semana. Mesmo que em silêncio. Boa noite, Laís.” O coração dela deu um salto. Ela não lembrava de ter mencionado o chá. Ele lembrava sozinho. Da infância. Da casa. Dela. E aquela última frase… “Mesmo que em silêncio.” Laís releu a mensagem umas cinco vezes. Depois apagou a resposta três vezes antes de finalmente digitar: “É… o gosto ainda é o mesmo. Silêncios também falam, né?” Não mandou. Bloqueou a tela e deixou o celular de lado. Porque sim — os silêncios falavam. E agora, pareciam gritar.