ISABELLA
Dizem que a primeira morte nunca se esquece. Mentira. Ela nunca te deixa. Ela fica. No cheiro da terra molhada. No som do sangue escorrendo pelas folhas. No eco do coração que parou — e que, de alguma forma, continua batendo dentro de você. Eu tinha onze anos. Mas aquela noite me envelheceu uma década. Donatella não me deixou dormir. “Dormir é fuga”, dizia. “E fuga é fraqueza.” Fez uma fogueira, simples, discreta. O fogo refletia em seus olhos e pintava o rosto dela de vermelho e sombra. Ficamos em silêncio por longos minutos — até ela finalmente falar: — “Você sabe o que fez?” Assenti, os olhos fixos na chama. — “Matei alguém.” Ela balançou a cabeça devagar. — “Não. Você manteve nosso segredo. E salvou a nós duas.” Engoli em seco. Não queria ouvir aquilo. Eu não queria ser forte. Queria que ela me dissesse que estava tudo bem chorar. Que eu ainda era uma criança. Mas Donatella não dava esse tipo de consolo. Ela dava lições. — “Lembra o que eu disse, Isabella?” — continuou. — “Fraqueza é morte. Ele hesitou. Você não.” Olhei para ela, as lágrimas ardendo nos olhos. — “Mas eu sinto medo.” — “Então sinta.” — respondeu com frieza. — “Mas aprenda a escondê-lo. A controlá-lo. O medo é a primeira arma de quem sobrevive.” Ela se levantou e jogou uma pequena adaga no chão, aos meus pés. — “Levante.” — “Agora?” — perguntei, confusa. — “Agora.” Fiz o que ela mandou. As mãos ainda tremiam, o corpo doía, e o frio cortava como gelo. Ela ficou à minha frente, imóvel, os olhos fixos em mim. — “Feche os olhos.” Eu obedeci. — “O que você ouve?” — “O fogo.” — “Mais.” Silêncio. Respirei. — “O vento… e… a respiração.” — “De quem?” Engoli em seco. — “Sua.” Ela sorriu de leve. — “Aprenda, Isabella. O som é vida. E a ausência dele é morte.” Abri os olhos. O fogo tremulava entre nós duas. — “Agora me ataque.” — “O quê?” — “Me ataque. Com tudo que tem.” Hesitei. E ela me empurrou. Forte. O corpo caiu no chão, o impacto roubou o ar. — “Você ainda hesita.” — disse, fria. — “A hesitação te matará antes que alguém tenha chance de atirar.” Eu me levantei. Tremendo. E fui. Golpeei, errei. Ela desviou com facilidade. Mais um ataque. Outro. Ela não revidava. Apenas desviava — fria, calculada, avaliando. Até que, sem perceber, a raiva substituiu o medo. E o medo se transformou em foco. Me movi rápido. Baixo. Preciso. A lâmina passou rente à pele dela, cortando um fio de cabelo. Donatella parou. Sorriu. Um sorriso curto, mas real. — “Aí está.” — disse, baixando o tom. — “O que eu esperava.” Ficamos frente a frente, ofegantes. Ela encostou o punho na minha testa, como um juramento silencioso. — “Hoje, Isabella, você perdeu a infância.” — sussurrou. — “Mas ganhou o direito de viver.” Nos dias seguintes, ela não tocou mais no assunto. Não falou sobre o homem, nem sobre o que havíamos enterrado. Mas cada novo treino ficou mais intenso, mais cruel, mais calculado. Correr com ferimentos. Treinar sem comer. Dormir com um olho aberto e o arco ao alcance da mão. Era o jeito dela de garantir que, se o mundo nos encontrasse, só uma de nós sairia viva — e seria eu. À noite, eu sonhava com o homem. Com os olhos dele, surpresos. Com o som da flecha. Mas, toda vez que acordava assustada, a voz dela ecoava dentro de mim, firme, imutável: “Você não matou, Isabella. Você sobreviveu.” E, aos poucos, comecei a acreditar. Não porque quisesse… Mas porque precisava. Quando completei doze anos, já sabia desaparecer sem deixar rastro, ferir sem hesitar, atirar sem pensar. Donatella não dizia mais que eu era sua filha. Dizia que eu era seu legado. E, mesmo que eu não entendesse totalmente o que isso significava, eu sabia: A garota que chorou diante de um corpo ficou enterrada naquela floresta. O que restou dela… foi a sombra que aprendeu a sobreviver